Missa de corpo presente

 

                        Daqueles que estavam presentes, ninguém faltou.

                        Dos que faltavam, ninguém fez falta.

                        Assim pensava, enquanto participava da missa de corpo presente.

                       Missa rezada à moda antiga, em latim, com o celebrante de costas para os fiéis e de frente para o altar, como exigira o finado e fora atendido pelo vigário, com autorização do bispo, em especial deferência à saudosa e ilustre figura.

                        Durante o réquiem, ainda a pedido do extinto, foram entoados cantos gregorianos (ou cantus planus, como ele gostava de dizer).

                        De onde estava, podia ver a viúva e os filhos ao lado do caixão. Ela, quase vinte anos mais nova que o marido defunto, ainda era uma bela mulher, com seus cabelos volumosos escorrendo pelo vestido preto e justo, que lhe caía muito bem, realçando a pele alva, as formas perfeitas, os seios fartos, as pernas longas  ressaltadas pelas meias também negras e o salto alto.

                        Não lhe faltariam pretendentes para novo marido ou para amante, se ela assim preferisse, já que estava bem amparada pelos generosos recursos deixados pelo pranteado, e não mais dependeria de homem algum.

                        Os filhos adolescentes, o rapazinho imberbe, com o ar apalermado de quem não entendia bem o que estava acontecendo, e a menina, com os olhos inchados e vermelhos pelo choro, mas já  a desvelar a  moça que sobrevinha, mantendo a postura hierática e amparando a mãe,  também não passariam dificuldades até que ambos se formassem e tivessem vida própria.

                        Acompanhou a longa liturgia da missa solene com certo enfado e alguma impaciência.

                        Na homilia, o padre discorreu sobre a efemeridade da vida terrena e das pompas do mundo, além de fazer os elogios de praxe ao falecido, definindo-o como um homem da ciência e do saber, “com lógica de ferro e coração de ouro”.

                        Após a benção final, quando o sacerdote proclamou “Ite, missa est”,  já não estava presente.

 

 

 

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6 comentários

  1. 23/09/09 at 17:24

    Boa crônica

  2. Lilian
    24/09/09 at 11:13

    Ultimamente, as suas crônicas, Dr.Gama, querido Professor, estão me fazendo lembrar algum escritor (“imortal”) dos mais lidos e reverenciados da literatura brasileira. Mas não consigo “identificar” qual… Entenda, esta minha associação entre escritores não significa demérito, muito pelo contrário, representa intenso apreço. Espero que o senhor ou seu pai, Dr.Annibal, me ajudem a desvendar o “mistério”… (me perdoa pela ousadia; sei que a curiosidade pode matar um gato, mas… não resisto a tentar estabelecer a correlação correta entre os escritores Dr.Gama e…)
    Bom dia!

  3. sonia kahawach
    24/09/09 at 11:40

    Muito bem escrita sua matéria, como sempre.
    Consegui me sentir na igreja, com o cheirinho de velas queimando, do incenso se esparramando… até ouvi a campainha tocando pra ajoelhar… Talvez seja, além de minha fértil imaginação e do seu bem escrever, a emoção e a lágrima ao lembrar que ontem – 23/9 – fez 1 ano que nosso inconfundível Sergio se foi para alegrar outros planos.

    • Antonio Carlos
      24/09/09 at 15:28

      Sonia,

      Estou muito impressionado com a coincidência de ter escrito o post exatamente na data em que fazia um ano da morte do nosso querido Sérgio. Confesso que não tinha a mínima ideia disso, embora nunca me esqueça dele. Não sei também porque surgiu o assunto, de repente, quando, no trecho de um livro, li a expressão “missa de corpo presente” e ao reler, pois não fazia sentido, era outra coisa muito diferente.
      A Lilian diz que meu estilo (terei algum?) a tem feito lembrar um escritor que não consegue identificar, e a Bell entrevê algo do Nelson Rodrigues (quem me dera…).
      Revendo agora o texto ressalta-me um tom iconoclasta e irreverente, bem ao jeito do Sérgio. Será possível?
      Alguma de vocês terá imaginado que o narrador possa ser o próprio defunto, de corpo presente?

      • sonia kahawach
        25/09/09 at 9:42

        Iniciando por sua última pergunta: em nenhum momento imaginei o autor como o personagem.
        Iconoclasta, no meu entender, acho que nenhum dos dois. Ambos criam figuras sobre outras. Irreverente ele sempre o foi e muito, mas de uma irreverência engraçada e constante que sinto muita saudade. V. só o é de vez em quando, cabendo a situação.
        Diz-se que coincidências não existem, assim como nada é por acaso. Acredito muito nisso. Talvez, quem sabe, sua inspiração tenha vindo através de um sopro de além vida. Até pelo enfastio da cerimônia e saída antes do término, coisas bem próprias dele, não acha? Beijos

  4. bellgama
    24/09/09 at 14:54

    Papilly, ótima crônica. Como Sônia disse, nos transporta para o local. Como Lilian disse, a ironia me lembra o maravilhoso Nelson Rodrigues. Amei as duas primeiras frases, são geniais. Como a gente sempre fala, uma boa crônica ganha o leitor na primeira frase. Ti doro. bjo Bell

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