Posts from outubro, 2009

O estranho íntimo

                    

 

                        — Bom dia (ou boa tarde ou boa noite). Como vai? É um prazer revê-lo!

                        — Bom dia (ou boa tarde ou boa noite). Igualmente.

                        A cordialidade entre nós soa falsa. Ambos sabemos disso. Mas com velada ironia insistimos nela.

                        Os encontros (ou confrontos) são sempre tensos. Porque nos conhecemos tanto, vivemos a nos estranhar.

                        Raramente nos sentimos apaziguados. Num fim de noite, num meio de página, num verso, num acorde de canção, numa taça de vinho, num suspiro.

                        Ele sabe o que penso. Eu penso que sei o que ele sabe e pensa.

                        Ele conhece meus disfarces e eu, as máscaras que usa.

                        Siameses contrapostos, fazemos as vezes um do outro.

                        Eu vivo nele e ele existe em mim.

                        Um dia (ou uma tarde ou uma noite), nos despediremos enfim.

 

 

                     

                        Nas Pílulas, um grande de ator, ainda pouco conhecido, atuando Nos campos de Piratininga.

 

 

 

                        Nas Pílulas, o 5º Prêmio Bravo! Prime de Cultura.

 

O díspar e o par

                       

 

                        Aparentemente tão díspares, Tarantino e Almodóvar, que para mim são dois craques, têm muito em comum.

                       tarantino 4

Enquanto Tarantino é mestre da aventura, da ação e até mesmo da violência, Almodóvar é mestre da condição humana, das relações familiares e pessoais, das paixões.

Mas ambos “brincam” com o cinema, nos transportam para o seu universo particular, são excepcionais nos diálogos, na escolha do casting, em descobrir ou redescobrir atores e atrizes, e deles tirar o melhor. Tarantino reinventou John Travolta em Pulp Fiction, como Almodóvar o fez com Penélope Cruz, sua nova musa, que sempre me pareceu apenas razoável como atriz e mulher, mas nas mãos de Almodóvar desabrochou um extraordinário talento e também uma beleza madura e insuspeitada, despertando o interesse até de Woody Allen (o que lhe valeu um merecido Oscar pela atuação em Vicky Cristina Barcelona).Almodóvar e Penélope 2

                        Tarantino e Almodóvar têm uma marca inconfundível. Impossível não reconhecer que o filme é de um deles após assistir por poucos minutos, seja no começo, no meio ou no final. A esse respeito, em recente entrevista sobre o seu mais recente filme, Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos), que se trata de um filme dentro de outro filme, por ele mesmo definido como sua declaração de amor ao cinema (todos os seus filmes em verdade o são, como os de Tarantino), Almodóvar conta ter ficado farto de si mesmo e da fama:

                        — Meu nome na Espanha virou um adjetivo. As pessoas dizem: “Isso é muito almodovariano”. Para alguns, pode parecer glorioso, mas eu me sentia estranho. Era como se não falassem de mim. Comecei a ter nostalgia do anonimato.

                        O protagonista de Abraços Partidos, um diretor de cinema que se acha em crise e se apaixona pela estrela do filme (Penélope Cruz, é claro) que está rodando, tem o nome de Harry Caine, que Almodóvar havia cogitado de adotar para recomeçar do zero, mas concluiu que isso seria impossível porque “ninguém escapa de si mesmo”.

                        No seu caso, ainda bem!

 

 

 

                        Veja a pílula ácida das segundas-feiras: O senador Luxemburgo.

 

 

                        Nas Pílulas, a volta de House.

Meu Brasil brasileiro

 

                        O conde Afonso Celso publicou no ano de 1900 um livro denominado Por que Me Ufano do Meu País, que consta ter sido traduzido em doze línguas e vendido muito.

                        A obra é uma coletânea de máximas acacianas ou simplesmente ridículas (a maioria delas), que pretendem demonstrar a superioridade do Brasil em relação aos demais países, tais como:

ufanismo•          “O Brasileiro, em última análise, passa os dias mais felizes do que o alemão, o francês, o inglês, dias mais serenos, mais risonhos, mais esperançosos.”

•          “Feridas e amputações cicatrizam mais depressa do que nos hospitais do Velho Mundo.”

•          “Em alguns pés, em Mato Grosso, as laranjas, já muito doces, quando murcham nos galhos reamadurecem dulcíssimas. Verdadeira ressurreição.”

•          “Quase todos os homens políticos brasileiros legam à miséria as suas famílias. Qual o que já se locupletasse à custa do benefício público?”

                        Deixemos o pobre conde descansar em paz, com seu patriótico e ingênuo ufanismo, sem esquecer, porém, das tragédias provocadas pelos “ismos” exacerbados, entre os quais os patriotismos ou nacionalismos cegos e intolerantes. Não sem razão já se disse que, muitas vezes, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas (o que não é o caso do conde, diga-se).

                        Eu por mim não me ufano nem desdenho do Brasil. Creio que devemos reconhecer o que temos de bom e também de ruim, como todos os demais povos e países, o que não deixa de ser acaciano. Infelizmente os nossos defeitos têm suplantado em muito nossas qualidades.

                        Mas se há uma coisa de que nós brasileiros podemos nos orgulhar é a extraordinária riqueza da nossa música popular, a sua exuberância rítmica, a profusão de gêneros, o grande talento de nossos compositores e músicos.

                        Entre tantos, o mineiro de Ubá, mas carioquíssimo da gema, Ary Evangelista Barroso é uma das figuras mais legendárias, cuja obra musical não fica atrás das dos maiores compositores norte-americanos, como Cole Porter e os irmãos Gershwin.

            Ary Barroso 2                

Além de excelente compositor e pianista, Ary Barroso foi locutor esportivo (que não escondia a sua paixão pelo Flamengo, e quando este estava sendo atacado perigosamente pelo outro time não hesitava berrar em pleno ar: — Eu não quero nem ver!), humorista e animador de programas de rádio, como o famoso Calouros em Desfile, em que, além de exigir que os candidatos cantassem somente música brasileira e anunciassem o nome dos compositores, gongava e escrachava sem piedade os desafinados, mas sabia reconhecer e ajudava os talentosos, tendo revelado inúmeros cantores, entre os quais Ângela Maria e Lúcio Alves.

                        A propósito, o não menos notável José Vasconcelos, no show em que se consagrou, Eu sou o espetáculo, gravado depois em LP, fazia uma imitação impagável de Ary às voltas com um calouro, Seu Chiado, a quem Ary pergunta:

                        — O senhor é Chiado por parte de pai ou de mãe?

                        E depois de receber a resposta de que o sobrenome era paterno, acrescenta:

                         — E quando o seu pai chiava a sua mãe não reclamava?

                        Para desespero de Ary, Seu Chiado se propõe a cantar um “sambinha”, e depois de tomar outro esculacho do apresentador por debochar do samba, usando o diminutivo, revela que o tal “sambinha” é nada mais nada menos do que Aquarela do Brasil.

                        Quando o calouro é gongado, não apenas por desafinar, mas por dizer “vou cantar-te nos meus velsos”, Ary se regozija e não resiste:

                        — Pode parar Seu Chiado. O senhor vai cantar nos seus “velsos”, porque nos meus versos não vai cantar não!

                        Embora seja de altíssima qualidade, e uma das mais belas do nosso cancioneiro, tendo consagrado Ary Barroso em todo o mundo, Aquarela do Brasil sempre foi criticada por alguns ranzinzas, que apontam defeito ou pouca inspiração em versos como “Meu Brasil brasileiro”, “esse coqueiro que dá coco”, o que deixava Ary furioso.

                        Por que estou me lembrando agora do grande Ary Barroso?

                        Por causa da interpretação arrepiante de Aquarela do Brasil por um coral que acabo de ver no You Tube, e pode ser acessada clicando  aqui.

                        Vá ver a apresentação do coral e leia depois o post scriptum nas Pílulas.

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                        Conheça O admirável mundo novo, nas Pílulas.

 

Bastardos Inglórios (mas bestiais)

 

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                        Gosto muito de cinema. Um bom filme (cada vez mais raro), como toda obra de arte, nos transporta e transforma, nos explica e questiona, deixa em nós a sua marca. Maus filmes podem nos divertir, rindo dos seus defeitos e absurdos.

                        Escolher o filme, ir até o cinema, comprar o ingresso, entrar na sala de exibição, aguardar que as luzes se apaguem e então ser tragado para o ventre da tela, constitui uma liturgia própria e insubstituível.

                        Apesar disso, tenho ido pouco ao cinema. Só tenho disponíveis as noites de sábado e domingo, dias em que os shoppings, onde as salas de exibição foram se alojar, estão sempre abarrotados, sem vaga para estacionar, numa sofreguidão e acotovelamento exasperantes.

                        Resta a comodidade preguiçosa da TV e do DVD, que apesar de toda a tecnologia, não é o mesmo que assistir ao filme no cinema, como não é a mesma coisa assistir a uma partida de futebol no conforto de casa, sem ir ao estádio.

                        Mas no último sábado, incentivado pelos pais da Manuela, fui com eles ao cinema, assistir a Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. Como já pontificou o grande escritor e filósofo contemporâneo José Sarney, que avô é capaz de resistir ao pedido de uma neta (ainda que de dentro da barriga materna)?  Sarney facilitou o ingresso em cargo público do namorado da neta. Eu fui ao cinema com os pais da neta, e paguei meu ingresso.

                        Valeu a pena. Há muito um filme não me agradava tanto.

                        Os filmes de Tarantino são sempre cinematográficos, no sentido de que observam a estética onírica do cinema, representativa do real. Do real que poderia ser.

                        Isso foi levado às últimas consequências em Bastardos Inglórios, que retrata um grupo de soldados judeus, voluntários, que espalha o terror dizimando nazistas na França ocupada.

                        O próprio Tarantino explicou que não se preocupou em ser fiel à História (e nisso está a grande sacada do roteiro), já que suas personagens não existiram e, portanto, podiam fazer a sua própria história, que poderia ter sido a verdadeira História. Aliás, o que sabemos da História além do que foi registrado e contado pelos que a viveram?

                        Trata-se, pois, de um filme de guerra sobre os filmes de guerra, como também disse Tarantino, com propriedade. Todos os elementos clássicos dos filmes de guerra estão presentes: o sofrimento das vítimas, a coragem e o heroísmo dos soldados, crueldade, violência, morte e redenção. Não faltam a espiã bela e fatal (Bridget Von Hammersmark, interpretada pela ótima atriz alemã Diane Kruger), a jovem judia que presenciou o massacre da família (Shosanna Dreyfus, a não menos linda e talentosa Mélanie Laurent), o destemido tenente norte-americano Aldo Reine, O Apache, misto de John Wayne e Sylvester Stallone, que quando tenta se disfaçar de italiano parece o Don Vito Corleone de Marlon Brando, com algodão na boca (um divertido Brad Pitt) e, o maior de todos — para mim o protagonista, embora os filmes de Tarantino não costumem tê-lo —, o cínico, traiçoeiro e inteligentíssimo oficial nazista da SS, tenente-coronel Hans Landa, numa interpretação soberba, digna do Oscar e outros prêmios (já ganhou o de melhor ator no Festival de Cannes), do desconhecido austríaco Christoph Waltz.

                        A longa cena de abertura, em que o tenente-coronel Hans Landa chega com uma patrulha nas terras de um fazendeiro francês para interrogá-lo sobre uma família judia (a de Shosanna), escondida por ele debaixo do assoalho da sala, o tenso e dissimulado diálogo entre os dois, o jogo de gato e rato até o desfecho trágico, tudo é simplesmente antológico e conduzido de forma magistral, incluindo o desempenho notável do também pouco conhecido Denis Menochet como o fazendeiro LaPadite, sustentando sem ser ofuscado um instante sequer o confronto com o magnífico Christoph Waltz.

                        Nessa sequência em especial é bastante evidente — o que já foi ressaltado por quase todos os críticos — o tributo de Tarantino aos grandes filmes de western spaghetti (como os de Sérgio Leone), pelo enquadramento, pela música, pelo ritmo e até pelo cenário. Aliás, o western spaghetti não é, nem poderia ser, uma recriação da saga do oeste norte-americano, mas sim do universo cinematográfico dos filmes de cowboy, como Bastardos Inglórios o faz em relação aos filmes de guerra.

                        Não percam esses bastardos inglórios, porém bestiais, na acepção lusitana do termo.

 

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Assista aqui ao trailer de Bastardos inglórios.

 

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Da arte de se perder

 

 

 

“Viajar! Perder países!”

(Cancioneiro, Fernando Pessoa)

 

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos, têm sido campeões em tudo”

                     (…)

“Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?”

(Poema em linha reta, Álvaro de Campos)

 

 

 

                        We are the champions!champion 2

                        Nosso carro tem de ser o mais moderno e potente,  nossa mulher ou namorada, a mais bonita e gostosa, nossos filhos, os mais inteligentes e capazes, nosso time, o melhor do mundo, nossa casa, a mais chique, nosso computador e celular, de última geração!

                        Temos de ser um vencedor na profissão ou no trabalho, viajar para os lugares da moda, usar roupas da moda e de marca da moda, ter os dentes mais brancos e o corpo malhado, frequentar os eventos mais in!

                        Pensar positivo, mentalizar sempre o sucesso, fazer o mundo conspirar a nosso favor, para não perder nunca, jamais ser traído!

                        Nada é mais vergonhoso e ofensivo do que ser tachado de perdedor, loser, um gauche na vida.

                        Como Pessoa (ou Álvaro de Campos), estou farto de príncipes e semideuses, e me reconheço nas tantas vezes em que tenho sido ridículo e grotesco, que tenho perdido e me perdido.

                        A exemplo do que apregoam os mascates sobre os produtos que vendem, perder ou se perder não requer prática nem habilidade.

                        Gosto especialmente de me perder numa cidade, como num bosque ou numa floresta, que as cidades não deixam de ser.

                        Vale-me muito nesse mister certo talento inato para a desorientação. Confundo-me com os mapas, as direções e as placas de sinalização. Estas, aliás, são particularmente úteis para aqueles que já conhecem muito bem o local e sabem para aonde vão e onde estão.

                        Ao me perder numa cidade, acabo por conhecê-la numa geografia própria, que não consta de nenhuma cartografia, e então a cidade se torna minha. É assim que tenho minha São Paulo, minha Ribeirão Preto (onde ainda me perco constantemente), minha Rio de Janeiro, minha Paris, minha Lisboa, minha Buenos Aires, entre outras.

                        Na nossa viagem pela Europa, há mais de dez anos, saí do hotel em Nice ao cair da noite para ir até à gare onde no dia seguinte tomaríamos o TGV para Paris, a fim de marcar os lugares dos bilhetes previamente comprados, enquanto meu pai tirava a sua indefectível soneca.

                        Ao regressar, não o encontrei no quarto, nem no hall, tampouco nas imediações. Com o passar do tempo, minha preocupação crescia diante do inexplicável sumiço. Depois de mais de uma hora, no auge da aflição, vi que ele se aproximava por uma rua lateral. Quando finalmente chegou na esquina em que o aguardava, disse com uma cara desolada:

                        — Je suis un homme perdu!

                        Ao que lhe respondi, com alívio e satisfação:

                        — Moi aussi!

 

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