Nas Pílulas, o Rio Olímpico.
Nas Pílulas, o Rio Olímpico.
A lucidez, quando há, é sempre contundente, como um súbito jorro de luz que incomoda e parece cegar a princípio, para em seguida descortinar o que antes as trevas encobriam ou dissimulavam.
Na abertura de O Mito de Sísifo, Albert Camus afirma de modo lúcido e contundente: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranquilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente.”
Muitos decidiram ficar pelo caminho.
O poeta Torquato Neto, um dos maiores talentos da sua geração e um dos principais formuladores do movimento Tropicalista, suicidou-se no seu apartamento no Rio de Janeiro, na madrugada seguinte ao seu aniversário de 28 anos, deixando este bilhete de despedida: “FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que em me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de bananas caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar.”
Bem antes de Torquato, Sócrates (o filósofo, e não o doutor corintiano), mesmo depois de destroçar a acusação feita por Meleto de que corrompia a juventude e não reconhecia a existência dos deuses, não pediu clemência, nem se dispôs a deixar Atenas, por considerar que nada fizera de mal ou de errado. Anunciou ainda que, se lhe fosse permitido viver, jamais deixaria de praticar a filosofia, pronunciando a célebre sentença: “Uma vida sem questionamento não vale a pena ser vivida.” Condenado à morte, tomou cicuta, como era o costume, e morreu de forma serena, solicitando prosaicamente (como Torquato, ao recomendar que não perturbassem o sono do filho) a um de seus pupilos e amigos que pagasse por ele a dívida de um galo, que não pudera honrar.
Vários outros também resolveram ficar, cada um a seu modo: Hemingway, Stefan Zweig, Gogol, Raul Pompéia, Pedro Nava, Camilo Castelo Branco, Mário de Sá-Carneiro, para citar apenas alguns, e que eram escritores. Sá-Carneiro disse ao amigo Fernando Pessoa na última carta que lhe enviou de Paris: “Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registadamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que você pode dispor para todos os fins como fosse seu. (…) Adeus. Se não conseguir arranjar amanha a estricnina em dose suficiente deito-me para debaixo do “metro”… Não se zangue comigo.” (Note-se, uma vez mais, a referência a assuntos triviais e práticos, a revelar o apelo da vida?)
Justamente esse trecho da carta de Sá-Carneiro encerra o livro de Enrique Vila-Matas, Suicídios exemplares, que ainda não havia lido, e a Bell me recomendou. De Vila-Matas, barcelonês, considerado um dos grandes escritores contemporâneos e qualificado como escritor de escritores ou metaescritor, li antes (e muito me agradou) o romance Paris não tem fim, de inspiração autobiográfica, baseado na sua experiência em Paris quando, aos 20 anos e ainda aspirante a escritor, morou num cômodo que lhe foi alugado por Marguerite Duras.
Suicídios exemplares (Cosac Naify, 208 páginas, 2009) trata-se de um conjunto de dez contos em que Vila-Matas, como é do seu estilo, não romantiza o suicídio, antes trata com ironia e até com certo escárnio algumas das personagens e suas tentativas canhestras de se matar. Como bem anota Alan Pauls na orelha do livro, “De fato, são exemplares — ou seja: dignos de serem narrados — os suicídios impossíveis, os indefinidamente adiados, os mal-sucedidos, os esquecidos. Na verdade, o que se revela a Vila-Matas é a idéia do suicídio, ou melhor: sua possibilidade, essa faísca de mistério regozijante com o qual o projeto de um morrer original, ou tortuoso, ou sofisticado, ou cruel, acende uma vida apagada e a faz reviver, tornando-a tensa de energia, excepcional, apaixonante, como a corda de aço de onde os equilibristas nos fazem perder o fôlego.”
O próprio Vila-Matas explica que Suicídios exemplares foi resultado do desejo de entender as pessoas que abandonam determinada atividade. Tema que reaparece em outro livro seu, escrito depois, Bartleby e companhia, numa referência ao inesquecível personagem criado por Herman Melville, o escrivão que se sente incapaz de fazer qualquer coisa, ou acha melhor não fazer.
Da minha parte, como a Camus, o suicídio me interessa e me provoca intelectualmente do ponto de vista filosófico e também literário, mas pelo menos até agora, como o turrão Bartleby, prefiro não fazer.
Enrique Vila-Matas e o livro Suicídios exemplares
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