“Viajar! Perder países!”
(Cancioneiro, Fernando Pessoa)
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos, têm sido campeões em tudo”
(…)
“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”
(Poema em linha reta, Álvaro de Campos)
Nosso carro tem de ser o mais moderno e potente, nossa mulher ou namorada, a mais bonita e gostosa, nossos filhos, os mais inteligentes e capazes, nosso time, o melhor do mundo, nossa casa, a mais chique, nosso computador e celular, de última geração!
Temos de ser um vencedor na profissão ou no trabalho, viajar para os lugares da moda, usar roupas da moda e de marca da moda, ter os dentes mais brancos e o corpo malhado, frequentar os eventos mais in!
Pensar positivo, mentalizar sempre o sucesso, fazer o mundo conspirar a nosso favor, para não perder nunca, jamais ser traído!
Nada é mais vergonhoso e ofensivo do que ser tachado de perdedor, loser, um gauche na vida.
Como Pessoa (ou Álvaro de Campos), estou farto de príncipes e semideuses, e me reconheço nas tantas vezes em que tenho sido ridículo e grotesco, que tenho perdido e me perdido.
A exemplo do que apregoam os mascates sobre os produtos que vendem, perder ou se perder não requer prática nem habilidade.
Gosto especialmente de me perder numa cidade, como num bosque ou numa floresta, que as cidades não deixam de ser.
Vale-me muito nesse mister certo talento inato para a desorientação. Confundo-me com os mapas, as direções e as placas de sinalização. Estas, aliás, são particularmente úteis para aqueles que já conhecem muito bem o local e sabem para aonde vão e onde estão.
Ao me perder numa cidade, acabo por conhecê-la numa geografia própria, que não consta de nenhuma cartografia, e então a cidade se torna minha. É assim que tenho minha São Paulo, minha Ribeirão Preto (onde ainda me perco constantemente), minha Rio de Janeiro, minha Paris, minha Lisboa, minha Buenos Aires, entre outras.
Na nossa viagem pela Europa, há mais de dez anos, saí do hotel em Nice ao cair da noite para ir até à gare onde no dia seguinte tomaríamos o TGV para Paris, a fim de marcar os lugares dos bilhetes previamente comprados, enquanto meu pai tirava a sua indefectível soneca.
Ao regressar, não o encontrei no quarto, nem no hall, tampouco nas imediações. Com o passar do tempo, minha preocupação crescia diante do inexplicável sumiço. Depois de mais de uma hora, no auge da aflição, vi que ele se aproximava por uma rua lateral. Quando finalmente chegou na esquina em que o aguardava, disse com uma cara desolada:
— Je suis un homme perdu!
Ao que lhe respondi, com alívio e satisfação:
— Moi aussi!
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