Gosto muito de cinema. Um bom filme (cada vez mais raro), como toda obra de arte, nos transporta e transforma, nos explica e questiona, deixa em nós a sua marca. Maus filmes podem nos divertir, rindo dos seus defeitos e absurdos.
Escolher o filme, ir até o cinema, comprar o ingresso, entrar na sala de exibição, aguardar que as luzes se apaguem e então ser tragado para o ventre da tela, constitui uma liturgia própria e insubstituível.
Apesar disso, tenho ido pouco ao cinema. Só tenho disponíveis as noites de sábado e domingo, dias em que os shoppings, onde as salas de exibição foram se alojar, estão sempre abarrotados, sem vaga para estacionar, numa sofreguidão e acotovelamento exasperantes.
Resta a comodidade preguiçosa da TV e do DVD, que apesar de toda a tecnologia, não é o mesmo que assistir ao filme no cinema, como não é a mesma coisa assistir a uma partida de futebol no conforto de casa, sem ir ao estádio.
Mas no último sábado, incentivado pelos pais da Manuela, fui com eles ao cinema, assistir a Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. Como já pontificou o grande escritor e filósofo contemporâneo José Sarney, que avô é capaz de resistir ao pedido de uma neta (ainda que de dentro da barriga materna)? Sarney facilitou o ingresso em cargo público do namorado da neta. Eu fui ao cinema com os pais da neta, e paguei meu ingresso.
Valeu a pena. Há muito um filme não me agradava tanto.
Os filmes de Tarantino são sempre cinematográficos, no sentido de que observam a estética onírica do cinema, representativa do real. Do real que poderia ser.
Isso foi levado às últimas consequências em Bastardos Inglórios, que retrata um grupo de soldados judeus, voluntários, que espalha o terror dizimando nazistas na França ocupada.
O próprio Tarantino explicou que não se preocupou em ser fiel à História (e nisso está a grande sacada do roteiro), já que suas personagens não existiram e, portanto, podiam fazer a sua própria história, que poderia ter sido a verdadeira História. Aliás, o que sabemos da História além do que foi registrado e contado pelos que a viveram?
Trata-se, pois, de um filme de guerra sobre os filmes de guerra, como também disse Tarantino, com propriedade. Todos os elementos clássicos dos filmes de guerra estão presentes: o sofrimento das vítimas, a coragem e o heroísmo dos soldados, crueldade, violência, morte e redenção. Não faltam a espiã bela e fatal (Bridget Von Hammersmark, interpretada pela ótima atriz alemã Diane Kruger), a jovem judia que presenciou o massacre da família (Shosanna Dreyfus, a não menos linda e talentosa Mélanie Laurent), o destemido tenente norte-americano Aldo Reine, O Apache, misto de John Wayne e Sylvester Stallone, que quando tenta se disfaçar de italiano parece o Don Vito Corleone de Marlon Brando, com algodão na boca (um divertido Brad Pitt) e, o maior de todos — para mim o protagonista, embora os filmes de Tarantino não costumem tê-lo —, o cínico, traiçoeiro e inteligentíssimo oficial nazista da SS, tenente-coronel Hans Landa, numa interpretação soberba, digna do Oscar e outros prêmios (já ganhou o de melhor ator no Festival de Cannes), do desconhecido austríaco Christoph Waltz.
A longa cena de abertura, em que o tenente-coronel Hans Landa chega com uma patrulha nas terras de um fazendeiro francês para interrogá-lo sobre uma família judia (a de Shosanna), escondida por ele debaixo do assoalho da sala, o tenso e dissimulado diálogo entre os dois, o jogo de gato e rato até o desfecho trágico, tudo é simplesmente antológico e conduzido de forma magistral, incluindo o desempenho notável do também pouco conhecido Denis Menochet como o fazendeiro LaPadite, sustentando sem ser ofuscado um instante sequer o confronto com o magnífico Christoph Waltz.
Nessa sequência em especial é bastante evidente — o que já foi ressaltado por quase todos os críticos — o tributo de Tarantino aos grandes filmes de western spaghetti (como os de Sérgio Leone), pelo enquadramento, pela música, pelo ritmo e até pelo cenário. Aliás, o western spaghetti não é, nem poderia ser, uma recriação da saga do oeste norte-americano, mas sim do universo cinematográfico dos filmes de cowboy, como Bastardos Inglórios o faz em relação aos filmes de guerra.
Não percam esses bastardos inglórios, porém bestiais, na acepção lusitana do termo.
Assista aqui ao trailer de Bastardos inglórios.
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