Posts from novembro, 2009

A obra-prima ignorada

                       

 

 

                        O que é uma obra-prima? O que faz uma obra ser considerada como tal?

                        Antes dessas, outra indagação talvez seja mais controversa ainda: o que é uma obra de arte?

                      mona lisa duchamp 

 

A questão torna-se especialmente tormentosa em relação às artes plásticas. Segundo Marcel Duchamp e seus ready-mades, um urinol de louça ou uma reprodução da Mona Lisa com barbicha e bigodes são ou podem ser obras de arte.uriol de duchamp

 

                       

 

 

                        E o que dizer das chamadas instalações de hoje, cuja efemeridade, entre outras coisas, rompe com um dos atributos clássicos da obra de arte? Certa vez, numa visita ao Malba (Museu de Arte Latinoamericano) em Buenos Aires, deparei com uma instalação em que uma grande quantidade de batatas se espalhavam por diversas mesas, interligadas por fios de eletricidade, que de vez em quando eletrocutavam as pobres batatas, algumas das quais já apresentavam a casca enegrecida pelos choques. Não me lembra o nome da obra ou da instalação (As batatas chocadas?).  Ao vencedor, as batatas, diria nosso velho e bom Machado!

                        O copioso Honoré de Balzac escreveu uma pequena novela simplesmente apaixonante sobre o reconhecimento — ou, no caso, o não reconhecimento — de uma obra-prima, mais precisamente sobre uma pintura, Le chef-d’oeuvre inconnu (A obra-prima ignorada), da qual já ouvira falar e tinha várias referências, mesmo sem que a houvesse lido. Ocorre-me, a propósito, a classificação elaborada por Pierre Bayard no seu delicioso Como falar dos livros que não lemos? (a que fiz breve alusão num dos primeiros posts deste blog: A aventura da leitura).

                        Como muita gente, não li toda a obra de Balzac, nem mesmo a sua portentosa A comédia humana, que deveria compreender 150 volumes (dos quais ele conseguiu escrever “apenas”  88 ou 89), com cerca de 2.000 personagens e traçar uma visão geral da sociedade francesa da época. Li apenas o que me pareceu fundamental ou me atraiu por indicações, como A Prima Bette, Eugênia Grandet, Ilusões Perdidas, O Coronel Chambert, Pai Goriot (excepcional!). De alguns, confesso que saltei páginas, mas isso não me impede de ter Balzac em alta conta, não apenas como escritor, mas também como persona, ambos extraordinários.

                        Como grande parte da obra de Balzac, sempre às voltas com o assédio de credores, A obra-prima ignorada surgiu de uma encomenda da revista L’Artiste, para que escrevesse para seus leitores uma novela à maneira alemã, o que merecia então o rótulo de conte fantastique (subtítulo que constava a princípio da novela), significando uma narrativa imaginária e surpreendente.

                        A novela tem como temas a criação, o artista apaixonado por sua criação e, como já dito, o próprio reconhecimento de uma obra, ensejando que Balzac, por meio das personagens, discorra sobre idéias e concepções do que seja a arte e a sua missão, para muitos antecipando ou profetizando o nascimento e os caminhos da arte moderna.

                        Inúmeras curiosidades ou acontecimentos fantásticos cercam a trajetória da novela, publicada pela primeira vez no ano de 1831, em duas partes, na revista que a encomendara. Tornou-se livro de cabeceira e obsessão de Cézanne, que se achava retratado pela personagem de Frenhofer, embora a novela haja sido escrita antes de que ele nascesse! Duas das personagens são pintores que realmente existiram, Poussin e Porbus. O local que serviu de cenário para Balzac, conhecido como Hôtel de Savoie-Carignan, 7 rue des Grands-Augustins, a uma quadra do Sena, ao lado do Pont Saint-Michel, em pleno Quartier Latin, foi o mesmo em que se instalou Picasso em 1931 e onde teria pintado Guernica, exatamente cem anos depois da primeira publicação de A obra-prima ignorada!

                        O próprio Balzac se mostrou perturbado com a novela, tanto que modificou mais tarde o desfecho, coisa incomum já que ele, por escrever muito e quase sempre sob pressão, raramente revia ou revisitava seus textos. Há também uma estranha dedicatória acrescida por Balzac, em 1845: “A um lorde”, seguida de cinco linhas pontilhadas, sem nenhuma palavra (o que me remete mais uma vez a Machado de Assis e ao Capítulo LV de Memórias Póstumas de Brás Cubas: O Velho Diálogo de Adão e Eva).

                        Depois de ter lido, finalmente, A obra-prima ignorada, com um excelente posfácio, Entre a vida e a arte, de Teixeira de Freitas (ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP e professor da ECA), com mais páginas do que a própria novela (A obra-prima ignorada / Honoré de Balzac — São Paulo: Comunique, 2003, R$ 22,00, Livraria Cultura,  Livraria Saraiva), além de confirmar tudo de instigante que se dizia sobre a obra, pude uma vez mais reconhecer a obra-prima da minha santa e vasta ignorância.

obra prima ignorada 2

 balzac

 

 

 

 

 

 

 

 

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