A vida humana é uma sucessão de perdas e tristezas que se intensifica quando mais se vive, interrompida por momentos de não tristeza, a que se podem chamar alegrias, pouco ou menos breves, mas sempre passageiras como é próprio do instante.
Não creio na felicidade humana como um estado ou sentimento permanente, nem mesmo que o homem haja nascido para ser feliz, como apregoam os arautos da auto-ajuda. Dias desses assisti a um deles pontificado na televisão sobre a verdadeira maravilha de termos vencido a corrida com milhões de espermatozóides para fecundar o óvulo materno e, depois disso, de chegarmos ao termo da gestação, que inúmeras vezes se frustra sem que a mulher nem mesmo perceba que esteve grávida. Isso, para ele, significa que já nascemos vencedores! Não pude deixar de me lembrar de um dos primeiros filmes de Woody Allen, Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar, em que num dos episódios ele interpreta um espermatozóide em dúvida metafísica diante da ejaculação iminente, temendo não apenas a ferrenha disputa pelo óvulo, mas a possibilidade de que se tratasse de mera masturbação.
A simples perspectiva da morte, da inexorável finitude, os dilemas morais, os mistérios insondáveis que nos afligem cotidianamente são incompatíveis com a beatitude (salvo para os santos e os loucos, se é que eles existem). O que talvez possamos lograr é algum entendimento ou aceitação do que somos, certa concepção estética para a existência humana.
Isso não implica, porém, que não goste da vida, que não dê a ela valor ou significado algum. Muito pelo contrário. São esses desafios e inquietudes que lhe dão especial sabor e sentido, e talvez o que mais me perturbe seja o grande apego à vida.
A discreta morte de Claude Lévi-Strauss, às vésperas de completar 101 anos, me despertam essas reflexões, com as quais talvez ele não concordasse.
Não tenciono discorrer aqui, mesmo porque me faltam atributos para tanto, sobre as suas qualidades como antropólogo e pensador, a sua inestimável contribuição para a cultura brasileira ao participar da criação da USP e depois se embrenhar pelo interior do Brasil, para nos revelar aspectos de culturas indígenas formadoras em parte do que somos, ou poderíamos ser.
Li o seu mais famoso livro, ao menos no Brasil, Tristes Trópicos (cujo título é um verdadeiro achado) quando fazia o antigo curso Clássico, entre os 16 e 17 anos. Impressionaram-me então o estilo agradável e literário, as considerações acerca das culturas primitivas, da importância dos mitos (coisa que adoro até hoje), as críticas proféticas e ainda hoje absolutamente válidas sobre a ânsia insensata de crescer da cidade de São Paulo e acerca do ambiente acadêmico brasileiro, mas não posso dizer que o tenha compreendido bem àquela época. Nem mesmo sei se as ideias que faço hoje de Tristes Trópicos e do pouco mais que li de e sobre Lévi-Strauss não estejam deturpadas pela memória ou pela má apreensão (é bem provável que sim).
Tenho dúvidas, por exemplo, de que as ciências humanas ou culturais, como a antropologia, sejam capazes ou mesmo devam pretender elaborar leis gerais válidas para todos os casos iguais, como as leis das ciências físico-naturais. Não me parece, tampouco, que todas as culturas particulares mereçam sempre o mesmo reconhecimento ou a mesma dignidade. A cultura talibã ou culturas primitivas que praticam atrocidades impensáveis contra mulheres e outros seres humanos devem ser respeitadas mesmo assim, na sua pureza? Manifestações boçais como a famigerada farra do boi em Santa Catarina devem ser preservadas, em nome da tradição cultural? De outra parte, ao que me lembro, de modo contraditório Lévi-Strauss manifesta certa antipatia pelo Islã e pelo mundo mulçumano (em relação aos quais o Talibã, a Al Qaeda e os aiatolás são distorções ou perversões, diga-se), o que somente aprofundaria a crise de intolerância fundamentalista em que o mundo se acha mergulhado hoje.
O próprio Lévi-Strauss, numa de suas últimas declarações afirmou: “Caminhamos para uma civilização em escala mundial. Nela, provavelmente, aparecerão as diferenças. Não pertenço mais a esse mundo. O mundo que eu conheci, o mundo que eu amei, tinha 1,5 bilhão de pessoas. O mundo atual tem 6 bilhões de humanos. Não é mais o meu.”
Pode ser que agora eu estivesse um pouco mais preparado para a profundidade da obra de Lévi-Strauss, mas ainda há tanto por ler! Talvez, como dizia Borges, depois de certa idade só devêssemos nos dedicar a reler livros que nos foram importantes. Mas ele já havia lido quase tudo, ao passo que eu…
Talvez o mundo atual também já não seja o meu.
Um privilegiado esse homem… percebendo que este mundo já não era o “seu lugar” fez as malinhas e se mandou. Pior é quando notamos isto e não podemos fazer absolutamente nada a respeito, a não ser esperar as ordens do Pai.
Vejo a vida como uma grande viagem em cujas estações vamos parando. No momento estamos na “estação” na qual se inclui o ano 2009. Uma vez descendo do “trem”, há que se conhecer a “cidade”.
Mas tenho assistido alguns filmes em que, colocadas em situações extremas, as pessoas sempre escolhem a vida; ou seja, por pior que isto aqui possa parecer, dentre as opções, se é que existem, esta ainda é a melhor… Nesses filmes, fica bem clara a mensagem de que “jogar é bom”.
Também me vejo um tanto fora do script nesses tempos atuais. Neste final de semana, assisti uns dvd’s do Tom Jobim, em que aparecia todo o deslumbre do Rio de Janeiro. Achei tremendamente “injusto” que eu não tenha tido a mesma oportunidade que ele, vendo o Rio daquela maneira, com toda a sua beleza e sem o “lixo” de hoje. Paciência, fazer o que se ele desceu uma, ou duas, “estações” antes da minha…
E as pessoas, então? Parece não existir um “consenso” a respeito dos temas mais básicos da civilização, enfim o discernimento entre o certo e o errado, porque é aí que tudo se separa e define.
Parabéns, Lévi-Strauss! Conseguiu sair de uma história que já não considerava a sua, o que deve ser um extremo conforto para a alma. (Nesses momentos, fica impossível não lembrar as palavras do Apóstolo Paulo a Timóteo: “Combati o bom combate, terminei a carreira, guardei a fé”.)
(Me perdoem o excesso de aspas… rsrs)
Um abraço, Dr.Gama, e muito obrigada por me fazer conhecer um pouco mais a vida e o que pensava esse homem extraordinário!