Posts from novembro, 2009

A voz do albatroz

                     

 

 

                              “Os que conseguem chegar à velhice, entretanto, sabem que não adianta achar que são loucos, porque todos são e constitui faina das mais ingratas prender as loucuras dentro de gaiolas desconjuntadas, temendo sempre que elas se soltem. De forma que a pessoa a quem a idade deu um adequado senso da existência tira sempre um tempinho, conforme suas particularidades, para acomodar a loucura, a fim de que ela não se veja presa em demasia e se revolte.” (João Ubaldo Ribeiro, O Albatroz Azul).

 

 

                        Consta que Oscar Wilde, com seu sarcasmo ferino, ao rever um colega que há muito não encontrava, justificou-se:

                        ― Desculpe-me por não o ter reconhecido. Eu mudei muito!

                        Creio já haver dito em algum post anterior que reconheço um verdadeiro amigo quando, depois de muito tempo sem nos encontrarmos, simplesmente nos pomos a conversar, como se o assunto continuasse e o tempo não tivesse passado, sem perder mais tempo com explicações e desculpas da ausência.

                        Os escritores de que mais gosto, mesmo que não os tenha conhecido pessoalmente (o que talvez seja preferível), tornam-se esse tipo de amigo para mim.

                        Pode passar muito tempo sem que escrevam, porque morreram, ou justamente porque estão vivos, posso eu passar longo período sem ler ou reler seus escritos, mas quando finalmente nos reecontramos num livro, numa página, num verso, a magia do momento é só um prolongamento de outros momentos memorosos.

                        Quando abro um dos livros de Manuel Bandeira, ele entra pela minha casa pigarreando, com seus óculos grossos, o sorriso dentuço, sem nenhuma cerimônia, como alguém da família. Senta-se no sofá, faz festa para o cachorrinho que pula no seu colo e lhe lambe a mão.

                        Drummond, com a falsa timidez de mineiro, aparenta alguma relutância, mas pouco a pouco se solta, aceita o café e um copo d’água, e logo começa a desfiar sua fina ironia e seu ceticismo esperançoso com a voz frágil e melancólica. Ri muito das anedotas fesceninas, mas se preocupa em verificar se não há mulheres por perto.

                        Machado, claro, é aristocrático e formal. Homem de outros tempos, mas absolutamente atual. Senta-se aprumado na velha cadeira estofada que foi do meu avô. Observa mais do que fala. O que tem a dizer está na sua obra, um diálogo contínuo com o leitor.

                        São muitos outros bons amigos a me visitar: Pessoa, que, matreiro, tenta me confundir com qual deles estou tratando; Vinicius e João Cabral, que vivem a gozar um ao outro; Borges, que me faz ler para ele, mas frequentemente completa os trechos que comecei; Simenon, quase sempre acompanhado do Comissário Maigret; Poe, que só vem depois da meia-noite, com o corvo no ombro, como um papagaio de pirata; Camus, que deve andar feliz da vida com a classificação da sua Argélia para a Copa de 2010. E também as mulheres:  Cecília Meireles, cuja delicadeza contrasta com o vigor de seus versos; Clarice, sempre bem vestida, perfumada e com um cigarro entre os dedos. Fala bastante, mas às vezes cai em profundo silêncio, como se penetrasse num mundo só dela. Já a surpreendi  folheando, muito interessada, o livro de receitas da minha mulher (que quase  nunca o usa, preferindo criar pratos únicos, como já contei aqui).

                        Os vivos também dão o ar da graça: Ferreira Gullar, António Lobo Antunes, Saramago (com seu mau humor e descrença que às vezes me soam jogo de cena), Vargas Lhosa, Paul Auster, J. M. Cootzee, Salinger (que por mais que envelheça e se esconda, continua o mesmo adolescente rebelde).

                        Estava sentindo a falta de João Ubaldo Ribeiro, com seu vozeirão grave e sua simpatia cativante. Ao vê-lo conversando com alguém, mesmo quando entrevistado, fica evidente que se trata de um grande papo, daqueles que faz o próprio tempo deter-se para ouvi-lo. Esteve adoentado e deprimido, recuperou-se, voltou a trabalhar muito, mas nada de um novo romance.

                        A longa espera de sete anos valeu todas as penas quando ele me apareceu em casa com seu O Albatroz Azul. Li as primeiras páginas enquanto aguardava o almoço, e passei o resto do dia impaciente, louco para retomar a conversação. De volta para casa, varamos a noite e só nos despedirmos quando o sol nascia e o albatroz alçou voo pela janela, “a sombra de sua enverguadura majestosa por um momento cobrindo o céu”, deixando-me de olhos marejados com a história do velho Tertuliano Jaburu, de muitos filhos e netos, mas que de repente ganha um novo neto que nasce de cu pra lua.

                        No meu aprestamento para ser avô da Manuela,  foram-me valiosas as ensinanças do precatado e calejado Tertuliano, e com ele pude compreender o sorvedouro de emoções que me engolfa, mas em vez de aniquilar, me salva e redime.

                        Foi bom demais reencontrar João Ubaldo com seu jeitão deleitoso de sempre, de volta à sua Ilha de Itaparica e seu universo mítico. Nem ele, nem eu mudamos muito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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