Posts from novembro, 2009

Tristes tempos

      

 

                  A vida humana é uma sucessão de perdas e tristezas que se intensifica quando mais se vive, interrompida por momentos de não tristeza, a que se podem chamar alegrias, pouco ou menos breves, mas sempre passageiras como é próprio do instante.

                        Não creio na felicidade humana como um estado ou sentimento permanente, nem mesmo que o homem haja nascido para ser feliz, como apregoam os arautos da auto-ajuda. Dias desses assisti a um deles pontificado na televisão sobre a verdadeira maravilha de termos vencido a corrida com milhões de espermatozóides para fecundar o óvulo materno e, depois disso, de chegarmos ao termo da gestação, que inúmeras vezes se frustra sem que a mulher nem mesmo perceba que esteve grávida. Isso, para ele, significa que já nascemos vencedores! Não pude deixar de me lembrar de um dos primeiros filmes de Woody Allen, Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar, em que num dos episódios ele interpreta um espermatozóide em dúvida metafísica diante da ejaculação iminente, temendo não apenas a ferrenha disputa pelo óvulo, mas a possibilidade de que se tratasse de mera masturbação. woody allen

 

 

                        A simples perspectiva da morte, da inexorável finitude, os dilemas morais, os mistérios insondáveis que nos afligem cotidianamente são incompatíveis com a beatitude (salvo para os santos e os loucos, se é que eles existem). O que talvez possamos lograr é algum entendimento ou aceitação do que somos, certa concepção estética para a existência humana.

                        Isso não implica, porém, que não goste da vida, que não dê a ela valor ou significado algum. Muito pelo contrário. São esses desafios e inquietudes que lhe dão especial sabor e sentido, e talvez o que mais me perturbe seja o grande apego à vida.

                        A discreta morte de Claude Lévi-Strauss, às vésperas de completar 101 anos, me despertam essas reflexões, com as quais talvez ele não concordasse.

                        Não tenciono discorrer aqui, mesmo porque me faltam atributos para tanto, sobre as suas qualidades como antropólogo e pensador, a sua inestimável contribuição para a cultura brasileira ao participar da criação da USP e depois se embrenhar pelo interior do Brasil, para nos revelar aspectos de culturas indígenas formadoras em parte do que somos, ou poderíamos ser.lévi-strauss

 

                        Li o seu mais famoso livro, ao menos no Brasil, Tristes Trópicos (cujo título é um verdadeiro achado) quando fazia o antigo curso Clássico, entre os 16 e 17 anos. Impressionaram-me então o estilo agradável e literário, as considerações acerca das culturas primitivas, da importância dos mitos (coisa que adoro até hoje), as críticas proféticas e ainda hoje absolutamente válidas sobre a ânsia insensata de crescer  da cidade de São Paulo e acerca do ambiente acadêmico brasileiro, mas não posso dizer que o tenha compreendido bem àquela época. Nem mesmo sei se as ideias que faço hoje de Tristes Trópicos e do pouco mais que li de e sobre Lévi-Strauss não estejam deturpadas pela memória ou pela má apreensão (é bem provável que sim).

                        Tenho dúvidas, por exemplo, de que as ciências humanas ou culturais, como a antropologia, sejam capazes ou mesmo devam pretender elaborar leis gerais válidas para todos os casos iguais, como as leis das ciências físico-naturais. Não me parece, tampouco, que todas as culturas particulares mereçam sempre o mesmo reconhecimento ou a mesma dignidade. A cultura talibã ou culturas primitivas que praticam atrocidades impensáveis contra mulheres e outros seres humanos devem ser respeitadas mesmo assim, na sua pureza? Manifestações boçais como a famigerada farra do boi em Santa Catarina devem ser preservadas, em nome da tradição cultural? De outra parte, ao que me lembro, de modo contraditório Lévi-Strauss manifesta certa antipatia pelo Islã e pelo mundo mulçumano (em relação aos quais o Talibã, a Al Qaeda e os aiatolás são distorções ou perversões, diga-se), o que somente aprofundaria a crise de intolerância fundamentalista em que o mundo se acha mergulhado hoje.

                        O próprio Lévi-Strauss, numa de suas últimas declarações afirmou: “Caminhamos para uma civilização em escala mundial. Nela, provavelmente, aparecerão as diferenças. Não pertenço mais a esse mundo. O mundo que eu conheci, o mundo que eu amei, tinha 1,5 bilhão de pessoas. O mundo atual tem 6 bilhões de humanos. Não é mais o meu.”

                        Pode ser que agora eu estivesse um pouco mais preparado para a profundidade da obra de Lévi-Strauss, mas ainda há tanto por ler! Talvez, como dizia Borges, depois de certa idade só devêssemos nos dedicar a reler livros que nos foram importantes. Mas ele já havia lido quase tudo, ao passo que eu…

                        Talvez o mundo atual também já não seja o meu.

Levi-Strauss,-Claudetristes trópicos 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A obra-prima ignorada

                       

 

 

                        O que é uma obra-prima? O que faz uma obra ser considerada como tal?

                        Antes dessas, outra indagação talvez seja mais controversa ainda: o que é uma obra de arte?

                      mona lisa duchamp 

 

A questão torna-se especialmente tormentosa em relação às artes plásticas. Segundo Marcel Duchamp e seus ready-mades, um urinol de louça ou uma reprodução da Mona Lisa com barbicha e bigodes são ou podem ser obras de arte.uriol de duchamp

 

                       

 

 

                        E o que dizer das chamadas instalações de hoje, cuja efemeridade, entre outras coisas, rompe com um dos atributos clássicos da obra de arte? Certa vez, numa visita ao Malba (Museu de Arte Latinoamericano) em Buenos Aires, deparei com uma instalação em que uma grande quantidade de batatas se espalhavam por diversas mesas, interligadas por fios de eletricidade, que de vez em quando eletrocutavam as pobres batatas, algumas das quais já apresentavam a casca enegrecida pelos choques. Não me lembra o nome da obra ou da instalação (As batatas chocadas?).  Ao vencedor, as batatas, diria nosso velho e bom Machado!

                        O copioso Honoré de Balzac escreveu uma pequena novela simplesmente apaixonante sobre o reconhecimento — ou, no caso, o não reconhecimento — de uma obra-prima, mais precisamente sobre uma pintura, Le chef-d’oeuvre inconnu (A obra-prima ignorada), da qual já ouvira falar e tinha várias referências, mesmo sem que a houvesse lido. Ocorre-me, a propósito, a classificação elaborada por Pierre Bayard no seu delicioso Como falar dos livros que não lemos? (a que fiz breve alusão num dos primeiros posts deste blog: A aventura da leitura).

                        Como muita gente, não li toda a obra de Balzac, nem mesmo a sua portentosa A comédia humana, que deveria compreender 150 volumes (dos quais ele conseguiu escrever “apenas”  88 ou 89), com cerca de 2.000 personagens e traçar uma visão geral da sociedade francesa da época. Li apenas o que me pareceu fundamental ou me atraiu por indicações, como A Prima Bette, Eugênia Grandet, Ilusões Perdidas, O Coronel Chambert, Pai Goriot (excepcional!). De alguns, confesso que saltei páginas, mas isso não me impede de ter Balzac em alta conta, não apenas como escritor, mas também como persona, ambos extraordinários.

                        Como grande parte da obra de Balzac, sempre às voltas com o assédio de credores, A obra-prima ignorada surgiu de uma encomenda da revista L’Artiste, para que escrevesse para seus leitores uma novela à maneira alemã, o que merecia então o rótulo de conte fantastique (subtítulo que constava a princípio da novela), significando uma narrativa imaginária e surpreendente.

                        A novela tem como temas a criação, o artista apaixonado por sua criação e, como já dito, o próprio reconhecimento de uma obra, ensejando que Balzac, por meio das personagens, discorra sobre idéias e concepções do que seja a arte e a sua missão, para muitos antecipando ou profetizando o nascimento e os caminhos da arte moderna.

                        Inúmeras curiosidades ou acontecimentos fantásticos cercam a trajetória da novela, publicada pela primeira vez no ano de 1831, em duas partes, na revista que a encomendara. Tornou-se livro de cabeceira e obsessão de Cézanne, que se achava retratado pela personagem de Frenhofer, embora a novela haja sido escrita antes de que ele nascesse! Duas das personagens são pintores que realmente existiram, Poussin e Porbus. O local que serviu de cenário para Balzac, conhecido como Hôtel de Savoie-Carignan, 7 rue des Grands-Augustins, a uma quadra do Sena, ao lado do Pont Saint-Michel, em pleno Quartier Latin, foi o mesmo em que se instalou Picasso em 1931 e onde teria pintado Guernica, exatamente cem anos depois da primeira publicação de A obra-prima ignorada!

                        O próprio Balzac se mostrou perturbado com a novela, tanto que modificou mais tarde o desfecho, coisa incomum já que ele, por escrever muito e quase sempre sob pressão, raramente revia ou revisitava seus textos. Há também uma estranha dedicatória acrescida por Balzac, em 1845: “A um lorde”, seguida de cinco linhas pontilhadas, sem nenhuma palavra (o que me remete mais uma vez a Machado de Assis e ao Capítulo LV de Memórias Póstumas de Brás Cubas: O Velho Diálogo de Adão e Eva).

                        Depois de ter lido, finalmente, A obra-prima ignorada, com um excelente posfácio, Entre a vida e a arte, de Teixeira de Freitas (ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP e professor da ECA), com mais páginas do que a própria novela (A obra-prima ignorada / Honoré de Balzac — São Paulo: Comunique, 2003, R$ 22,00, Livraria Cultura,  Livraria Saraiva), além de confirmar tudo de instigante que se dizia sobre a obra, pude uma vez mais reconhecer a obra-prima da minha santa e vasta ignorância.

obra prima ignorada 2

 balzac

 

 

 

 

 

 

 

 

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Solidão

 

 

                                       A solidão

                                       é um encontro

                                       comigo só:

                                       atroz amigo

                                       aprazido inimigo.

 

                        A universidade nua, uma pílula curta sobre a minissaia que causou tanto tumulto.