Posts from janeiro, 2010

Sacola vazia

 

 

 

Para Carol, Marcel e Manuela,

que me fazem vencer o comodismo e voltar às salas de cinema.

 

 

 

                        A vida é um lento e permanente acúmulo, até que de súbito a morte venha nos despojar de tudo.

                        Vivemos de acumular o próprio tempo que passa, coisas, sentimentos e pessoas. Dias, semanas, meses e anos. Papéis, livros, discos, badulaques mil. Lembranças, amores, desilusões, vitórias e fracassos. Mulheres ou maridos, filhos, netos, amigos, inimigos ou desafetos.

                        Nem sempre é fácil carregar tanto peso, e às vezes nos sentimos como Atlas, a sustentar o mundo nos ombros.

                        Manuel Bandeira, que tem o talento de dizer as coisas mais complexas e fundamentais do modo mais simples e cativante, escreveu um poema essencial a esse respeito:

 

Canção do vento e da minha vida

 

                                   O vento varria as folhas,

                                   O vento varria os frutos,

                                   O vento varria as flores…

                                               E a minha vida ficava

                                               Cada vez mais cheia

                                               De frutos, de flores, de folhas.

 

                                   O vento varria as luzes,

                                   O vento varria as músicas,

                                   O vento varria os aromas…

                                               E a minha vida ficava

                                               Cada vez mais cheia

                                               De aromas, de estrelas, de cânticos.

 

                                   O vento varria os sonhos

                                   E varria as amizades…

                                   O vento varria as mulheres…

                                               E a minha vida ficava

                                               Cada vez mais cheia

                                               De afetos e de mulheres.

 

                                   O vento varria os meses

                                   E varria os teus sorrisos…

                                    O vento varria tudo!

                                               E minha vida ficava

                                               Cada vez mais cheia

                                               De tudo.

 

                        No filme Up in the Air (recuso-me a usar o título ridículo que lhe foi dado em português, que nada tem a ver), de Jason Reitman (que dirigiu antes os interessantes Obrigado por fumar e Juno), o protagonista Ryan Bingham, interpretado por George Clooney, é um homem muito bem sucedido  no estranho e cínico ofício de despedir pessoas para as grandes empresas (será que tal atividade já é explorada no Brasil?), e que tem como projeto de vida não acumular nada, a não ser milhagem de voo, até alcançar o seu objetivo de dez milhões de milhas, que lhe proporcionarão um cartão raríssimo com direito perpétuo a tratamento vip e até mesmo de ter um dos aviões da empresa aérea com o seu nome.

                        É um homem pragmático, que passa mais tempo nos aeroportos, voando e em hotéis nas mais diversas cidades dos EUA, do que na sua pequena quitinete, espartana e mais impessoal do que os quartos em que se hospeda.

                        No último ano viajou distância bem maior do que da Terra à Lua, e lamenta os pouco mais de quarenta dias miseráveis que passou em casa. Chega a causar inveja a desenvoltura e destreza com que arruma a mala, locomove-se pelos aeroportos, faz check in, embarca e desembarca. É um verdadeiro peixe n’água.

                        Ryan vive literalmente nas nuvens, ou acima delas, vendo do alto e à distância as preocupações mundanas e o acúmulo de coisas dos que vivemos cá embaixo, acorrentados ao chão. Faz palestras motivacionais que encantam o público sobre a sua filosofia da sacola vazia, segundo a qual fomos feitos para o movimento ininterrupto, para seguir sempre adiante, sem vínculos e âncoras que nos possam prender. Não somos cisnes, somos tubarões!

                        Antes de assistir ao filme, li alguns comentários que o relacionam com a atual crise econômica e o desemprego que assolam os EUA. Esse aspecto, embora presente, parece-me secundário. Mesmo porque, em maior ou menor escala, sempre haverá desemprego e demissão de funcionários no sistema capitalista.

                        Penso que o veio principal do filme seja o modo de viver de Ryan, protótipo do homem contemporâneo e cosmopolita, e da sua postura diante do mundo, dos outros e de si mesmo.

                        Não avançarei mais sobre o enredo e o que acontece no filme, para não ser o desmancha-prazeres de quem pretende assisti-lo (e recomendo que o faça). Posso dizer apenas que foge inteiramente dos padrões e maniqueísmos hollywoodianos.

                       Devo destacar, porém,  a magnífica atuação de George Clooney e a sua composição do personagem. Sóbria, exata, sutil, sem maneirismo algum.

                        A trajetória de George Clooney, que se tornou um grande ator, e melhor a cada filme, suas incursões vitoriosas pela direção e produção, lembra muito as de Clint Eastwood e de Robert Redford, que transcenderam a condição de meros galãs ou homens bonitos e demonstraram um grande talento não apenas como atores, mas também para se reinventarem e se tornarem ótimos diretores e realizadores.

                        Aliás, por feliz coincidência, ainda há pouco li no  uma crônica de Luis Fernando Veríssimo, como sempre deliciosa, intitulada O verdadeiro George Clooney, que começa assim:

 

                        “Longe de mim querer difamar alguém, mas acho que no caso do George Clooney o que está em jogo é a autoestima da nossa espécie, os homens que não são George Clooney.

                        Todas as nossas qualidades e todos os nossos atributos, físicos e intelectuais, desaparecem na comparação com o George Clooney.

                        As mulheres não escondem sua adoração pelo George Clooney. O próprio George Clooney nada faz para diminuir a idolatria e nos dar uma chance.

                        Fica cada vez mais adorável, cada vez mais George Clooney. E se aproxima da perfeição. É bonito. É charmoso. É rico. É bom ator. Faz bons filmes. Está envolvido com as melhores causas. E que dentes!

                        Não temos defesa contra esse massacre. Só nos resta a calúnia.”

 

                        E por aí vai, a vingar nós outros que nos roemos por não ser George Clooney.

 

 

                        Assista ao trailer de Up in the Air aqui.

 

 

 

 

                        Morte e vida, nas Pílulas (seja bem-vindo, Joaquim).

 

De luto

 

 

 

                        Acabo de saber da morte de J. D. Salinger, aos 91 anos de idade, de causas naturais, segundo o comunicado oficial divulgado pelo seu filho.

                        Estou de luto. Acho que minhas filhas e o Rockmann também.

                        Li O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye), seu livro mais famoso (sua obra é pequena), lançado em 1951 e que se tornou um clássico cult, quando tinha 16 ou 17 anos e fiquei absolutamente em êxtase ao me sentir retratado pelo personagem Holden Caulfield em muitas das angústias, incompreensões e revoltas de adolescente.

                        Mais tarde, prometi a mim mesmo que proporcionaria a meus filhos ou minhas filhas a leitura do livro no momento certo. Quando Carolina completou 16 anos, dei-lhe um exemplar e lhe contei a minha promessa. Ela adorou o livro e chamou a si a responsabilidade de presenteá-lo na mesma idade à Isabella, que fez o mesmo com a Júlia. A próxima será a Manuela.

                        Embora a tradução conjunta de Jório Dauster, Álvaro Alencar e Antonio Rocha para o português, na edição brasileira, seja muito boa, é claro que é quase impossível captar e reproduzir as elipses, expressões idiomáticas e gírias de Salinger. Carolina, que domina perfeitamente o inglês, leu depois no original e me disse que é realmente extraordinário.

                       

 Ainda conservo o meu exemplar, um tanto maltratado, da Editora do Autor (ao que me consta fundada por nada menos do que Rubem Braga e Fernando Sabino), 5ª edição, de 1965, que releio com frequência, pelo menos alguns trechos. A capa das edições mais recentes já é outra.

 

                        Depois de O Apanhador no Campo de Centeio (que, curiosamente, em Portugal vi numa livraria com o título de A Agulha no Palheiro), o livro mais conhecido de Salinger é Nove Estórias (Nine Stories), conjunto de contos ou short stories que muitos acham superior ao Apanhador, e cuja tradução da edição brasileira também foi feita por Jório Dauster e Álvaro Alencar.

 

                        Conquanto tenha vivido as últimas décadas em absoluto isolamento, Salinger afirmou numa raríssima entrevista que continuava a escrever regularmente, por puro prazer e que para isso queria ficar sozinho. Quem sabe venha a ser publicado agora, post mortem, o que escreveu nesse período, o que seria maravilhoso.  Mas tenho dúvidas, pois que  talvez ele possa haver deixado recomendações proibindo a publicação, ou seja mais interessante para os editores manter o mito.

                        Como diz Holden no final de O Apanhador, “Isso é tudo que eu vou contar. (…) A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo”.

 

 

 

Ruy Castro

 

 

 

                        Ruy de Castro, que sempre foi um craque e a cada dia escreve com mais sabor, lembrou na edição de terça-feira, dia 26, da Folha de S. Paulo (Caderno Ilustrada), a primeira vez em que Frank Sinatra se apresentou no Brasil, há trinta anos, num impressionante show no Maracanã, para 175 mil pessoas.

                        Relata a enorme (e santa) maluquice que foi a promoção do espetáculo, enfrentando limitações técnicas, estrutura precária, a exigência de Sinatra de um som perfeito, falta de tempo e até mesmo uma chuva que só permitiu a confirmação do show sete minutos antes do seu início.

                        Até então corriam diversas lendas acerca dos motivos pelos quais Sinatra nunca viera ao Brasil, a mais conhecida delas a de que uma vidente havia previsto que ele morreria se e quando aqui se apresentasse. Além de não se confirmar a profecia, no ano seguinte Sinatra voltou para algumas apresentações exclusivíssimas, para um pequeno e seleto público no teatro do Maksoud Plaza, então o hotel mais sofisticado de São Paulo, conforme conta no mesmo caderno a matéria do jornalista Thiago Ney.

                        Assisti ao show do Maracanã pela televisão. Frank Sinatra, que talvez tenha sido o maior cantor de todos os tempos, estava em plena forma aos 64 anos, e, fazendo jus à sua fama de durão, lembra-me que, mesmo enquanto cantava uma das músicas, deu um safanão no chatérrimo “Beijoqueiro”, que conseguiu invadir o palco para fazer o mesmo de sempre, que lhe rendera o cognome e os quinze minutos de fama.

                        Na sua coluna da edição de hoje, 27 (pág. A2), Ruy Castro discorre sobre as inúmeras pegadinhas diárias que nos tentam pespegar pela internet. Muita gente boa não resiste e acaba por cair em algumas dessas esparrelas, que nos ameaçam com protestos de dívidas, negativação do nome, enviam comprovantes de pagamentos ou orçamentos que não fizemos nem pedimos, requisitam recadastramento em bancos de que nunca fomos correntistas, prometem-nos brindes e presentes especiais. Uma das mais frequentes e divertidas é o e-mail enviado pelas diversas amantes que sequer suspeitávamos ter, enviando-nos fotos da nossa extraordinária perfomance no último encontro no motel e pedindo que as apaguemos em seguida, para não nos comprometer.

                        Já me aproveitei disso para escrever alguns posts aqui, como o recente As teias do Aranha, e lá atrás O grande milongueiro (28/5/2009) e Como se tornar líder (14/5/2009).

                        A exemplo de Ruy, às vezes quase sucumbo à curiosidade, “Mas sou alertado pelo uso rude da língua portuguesa nas ditas mensagens. Os piratas do ciberespaço não conseguem disfarçar o seu semianalfabetismo crônico”, que, de resto, e lamentavelmente, grassa para muito além da internet.

 

 

 

A Sereníssima República

 

 

 

“Vós sois a Penélope da nossa república — disse ao terminar —; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.” (Machado de Assis, A Sereníssima República).

 

 

                        Num conto, em que a sua ironia se apresenta mais afiada do que nunca, Machado de Assis narra uma conferência proferida pelo cônego Vargas, dando notícia de um grande feito por ele alcançado, consistente em organizar socialmente um grupo de aranhas:

 

“Não bastava associá-las; era preciso dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha: muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade.

Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena.

A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.”

 

                        Tomo emprestado do grande mestre o título e o tema para emoldurar o relato de dois episódios que me aborreceram neste final de férias, sobretudo porque são corriqueiros e representam o grau de nossa civilidade e nosso espírito republicano.

                        Como todos sabem, a república é uma da formas clássicas de governo que se caracteriza fundamentalmente pela igualdade (ao menos formal) de todos como cidadãos, sem a monárquica distinção entre nobres e plebeus, autoridades e servos. Aliás, na república, as autoridades é que são servos, ou seja, servidores públicos, e como tais têm muito mais deveres do que prerrogativas, as quais somente se justificam para lhes assegurar o cumprimento de suas obrigações de servidores, não se tratando em absoluto de privilégio pessoal.

                        Mas a tradição brasileira do “sabe com quem está falando?” é uma praga, uma erva daninha que se alastra desde os primórdios da nossa incipiente e trôpega república.

                        Na quarta-feira passada, dia 20, por volta das 19 horas, no Pão de Açúcar da Avenida Angélica, em São Paulo, Isabella, Júlia e eu estávamos no pequeno estacionamento do supermercado, aguardando que os manobristas trouxessem nosso carro, quando a poucos metros vi e ouvi um cidadão que envergava um terno bem talhado e uma vistosa gravata, de cabelos grisalhos, avançado nos sessenta, mas saudável e vigoroso, vociferando e repreendendo um dos manobristas, a lhe exigir satisfações por não haver deixado o seu automóvel numa vaga mais próxima. O rapaz, educadamente, tentava explicar, sem que ele lhe desse a menor atenção, que quando havia chegado todas as vagas estavam ocupadas, e por isso o seu veículo fora estacionado mais adiante. Aliás, o serviço de manobristas existe ali exatamente porque as vagas defronte do supermercado são poucas para o grande movimento e afluxo de clientes. Em menos de cinco minutos o automóvel do iracundo cliente chegou, mas ele seguiu a desancar o pobre moço mesmo depois disso, enquanto com uma senhora e mais uma ou duas pessoas que o acompanhavam entravam no carro em que finalmente partiram.

                        Estive prestes a acorrer em defesa do manobrista e interpelar o malcriado, mas minhas filhas me impediram, temendo que o incidente se agravasse e gracejando que estou me tornando um velho implicante (?).

                        Quando o rapaz se acercou de nós e lhe expressei a minha indignação com o tratamento que recebera, disse-me que “o homem é de um tribunal, e já estou acostumado com isso”. O sangue me ferveu ainda mais, e lamentei profundamente não ter interferido. Se soubesse quem era e a que tribunal pertence no mínimo faria uma representação contra o figurão, que muito provavelmente não resultaria em nada, mas pelo menos lhe daria alguma dor de cabeça.

                        No sábado, dia 23, em Congonhas, ao embarcarmos no voo das 11h58min da TAM para Ribeirão Preto, Júlia, eu e os demais passageiros ficamos retidos cerca de 20 minutos dentro do ônibus que nos conduziria ao avião, sem saber o porquê, até que três ou quatro atrasadinhos, com toda a calma do mundo, entraram e pudemos seguir. Nem reparei quem eram, pensando que talvez se tratasse de passageiros de alguma conexão, o que não justificaria a espera, mas a faria aceitável.

                        Quando ingressamos na aeronave Júlia me chamou a atenção para o fato de que Luana Piovani se achava a bordo, sentada num dos bancos da frente. Não percebemos se ela embarcou conosco ou já estava lá, mas aqueles retardatários do ônibus eram acompanhantes dela, um dos quais, ainda segundo a Júlia, seu atual namorado, um tipinho de galã que tem como único e grande mérito se exibir com artistas e mulheres famosas, como Ivete Sangalo, Adriana Cicarelli  e outras, que se dão ao desfrute. Agora é a vez da Luana.

                        Quando chegamos a Ribeirão Preto, é claro que Luana e seu séquito desceram antes de todos, mas ainda pudemos vê-los se afastando e passando direto por aquilo que deveria ser a esteira de bagagem do nosso “maravilhoso” aeroporto, que se acha em obras de ampliação.

                        Depois de aguardarmos nossas malas, como mortais comuns, ao sair da saleta quase trombei com Luana, que retornava esbaforida e chiliquenta, paparicada por vários sequazes, a reclamar em altos brados de alguma coisa, mas não perdi tempo nem me interessei em saber do quê.

                        O que me interessa saber é o que leva tais pessoas — como o “homem do tribunal”, celebridades de “Caras”, “Contigo” e “Big Brothers” da vida — a pensarem que têm direito a tratamento diferenciado?

                        E como companhias aéreas, repartições públicas, restaurantes, boates e seja lá o que for  ousam privilegiar esse tipo de gente, em detrimento dos demais cidadãos, usuários e consumidores?

                        A Sereníssima República aracnídea de Machado se viu em palpos de aranha à falta de acordo sobre a forma e o tamanho do saco eleitoral.

                        À nossa, falta muito mais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As teias do Aranha

 

 

 

                        De uma hora para outra notou que a mulher estava diferente, comportando-se de modo estranho.

                        Sussurros ao telefone, saídas repentinas, além de tratá-lo com certa frieza e ironia.

                        Resolveu prestar mais atenção e nada falar a ela.

                        Uma semana depois não tinha mais dúvidas: ela mudara, não era a mesma de antes.

                        Teria arrumado um amante?

                        Apesar dos quarenta anos recém-completados e de dois filhos, ela se mantinha em forma, o corpo tornara-se até mais voluptuoso, era inteligente e sagaz, tinha tudo para atrair um homem. Menos a ele, que se deixara tomar pela rotina do casamento e pouco reparava nela. Nem mesmo para o sexo tinha disposição e mantinham relações cada vez mais espaçadamente.

                        O quadro era perfeito para um par de chifres. Mulher ainda bonita e sensual, entediada com o marasmo da vida conjugal, que chega aos quarenta e lhe sobrevém o medo de envelhecer, manda tudo às favas e resolve desfrutar do tempo que lhe resta.

                        Coincidência ou não, começou a receber quase diariamente e-mails publicitários do Detetive Aranha, oferecendo-lhe seus serviços. O sujeito era um especialista no ofício, com uma empresa consolidada desde 1986 no ramo de investigação, com inúmeros casos solucionados, e ofertava um extenso rol de serviços: adultério, conjugal e familiar, flagrantes, com fotos e vídeos, dossiês de pessoas físicas e jurídicas, concorrência desleal, pessoas desaparecidas, infiltração de agentes (indústria e comércio), rastreamento de veículos “GPS” tempo integral, filmagens ocultas, em áudio e vídeo e muito mais!

                        Entrou no site da empresa para verificar. “Sigilo absoluto. Você pode confiar”.

                        Quando ia anotar o endereço, ainda hesitante se valia a pena investigar a mulher, deteve-se num detalhe do anúncio, no canto direito, ressaltado por uma bolota vermelha: “Flagrantes atravez de Fotos e Filmagens Provas Concretas para Justiça”.

                        Foi bem a tempo! Desistiu.

                        Quem escreve “atravez” com “z” não merece confiança. Talvez (com “z”) o Detetive Aranha devesse começar por investigar um dicionário.

                        E já não tinha certeza se queria ter certeza. O que faria? Expulsá-la de casa? O mais provável é que ele saísse, deixando a casa para as crianças e para ela, que sempre fora uma ótima mãe. Matá-la? Matar-se? Lavar com sangue a honra? Nunca tivera vocação para a tragédia, para ele a vida estava mais para o tragicômico.

                        Quem sabe ele também arrumasse uma amante?

                        Ainda em dúvida, nos dias seguintes começou a ter a sensação de que estava sendo seguido, o que a princípio reputou ser fruto da sua imaginação, em decorrência dos fatos recentes.

                        Todavia, embora tentasse afastar a ideia, sentia-se cada vez mais incomodado. Passou então a controlar pelos retrovisores do carro, pelo reflexo de vitrines ou espelhos e outros meios dissimulados, até perceber que era acompanhado por um mesmo carro verde metálico, e por um sujeito, que de vez em quando trazia enfiado na cabeça  um chapeuzinho de feltro, e o qual chegou a entrever com uma câmera nas mãos.

                        Manteve-se atento por mais algum tempo e teve a certeza de que estava mesmo sendo espionado.

                        Um dia, ao sair do restaurante em que costumava almoçar com amigos, e ver o sujeitinho parado numa banca de revistas próxima, como quem não queria nada, perdeu a paciência, avançou de surpresa sobre ele e o agarrou pelo colarinho. O tipo era franzino, ao contrário dele, alto e forte, jogador de basquete e vôlei na juventude. Não teve dificuldade em dominá-lo e deixá-lo tremendo de medo, ainda mais quando os amigos, grandalhões como ele, também se acercaram.

                        Pois se tratava do Detetive Aranha, que se vendo flagrado em vez de flagrar, admitiu que o estava investigando, contratado pela mulher, que desconfiava de que ele tivesse uma amante.

                        De volta para casa, chamou a mulher e lhe contou tudo. Há muito tempo não se falavam tão francamente, e acabaram às gargalhadas. Ela ficara fria e distante por ciúme de que ele a estivesse traindo e por lhe dar pouca atenção. As conversas ao telefone e as saídas de casa eram justamente para se encontrar com o Detetive Aranha e receber seus relatórios, que nada revelavam.                 

                        Do riso passaram a se acarinhar com ardor e desejo crescentes. Aos tropeções, arrancando-se as roupas, foram para o quarto e se amaram com há muito tempo não faziam.

                        De vez em quando, enroscados na cama, ainda se lembram do episódio (ou seria espisódio?) e admitem que afinal de contas o Detetive Aranha lhes prestou um ótimo serviço.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Janeiro de Rio

 

 

 

                        Gilberto Gil tinha e ainda tem razão: o Rio de Janeiro continua lindo!

                        Tragédias urbanas, violência, traficantes que, se aproveitando da ausência do Poder Público, impõem seu jugo a uma grande maioria de trabalhadores e pessoas de bem que habitam nas favelas.

                        Nada disso é capaz de tisnar a beleza avassaladora da cidade, serpenteando entre morros e praias, sua gente morena e sorridente, suas mulheres de perder o fôlego.

                        Há quem não goste dos cariocas, tachando-os de bairristas e arrogantes.

                        E não teriam motivos de sobra para isso?

                        Sempre me dei muito bem com eles (tanto que até me casei com uma). Adoram gozar os paulistas, como adoramos gozá-los. Trata-se de uma rivalidade amorosa semelhante à que mantemos com os avós portugueses e os hermanos argentinos.

                        Às vezes me ocorre se não teria sido um equívoco transferir a capital da República para Brasília. Juscelino, na época, com seu furor desenvolvimentista, tinha muitos e bons argumentos a favor, a maioria deles convincentes.  Mas passados 50 anos, Brasília se tornou uma ilha de cimento e fantasia, afastando (ou pondo a salvo) os governantes e parlamentares do povo, em especial o povo ferino e crítico do Rio de Janeiro, que admite tudo, menos o ridículo. Todos os presidentes, sem exceção, incluindo os da ditadura militar, isolados em Brasília e rodeados por seus acólitos, pensam-se grandes condutores da Pátria, sábios iluminados que nos levarão a um glorioso destino, levantando-nos finalmente do berço explêndido. A democracia se faz de homens comuns (como o era Juscelino), que governam para seus semelhantes, e não das figuras execráveis dos homens providenciais, de tão triste memória.

                        Mas voltemos aos nossos dias de sol e céu azul, a maioria sem uma única nuvem, o mar com as águas tépidas e cristalinas, as caminhadas pelo calçadão, onde revejo Drummond sentado no seu banco (e de óculos novos).

                        E também as maravilhas do centro antigo, a estreita Rua do Ouvidor, por onde andava Machado de Assis, tirando o chapéu às senhoras, a admirar uns braços expostos. A velha Lapa dos boêmios, em que Manuel Bandeira morou tanto tempo. A Ipanema de Vinicius, Tom Jobim e da Bossa Nova. O Leblon, agora de Chico Buarque. A deliciosa Livraria da Travessa, uma livraria realmente de livros, o que pode parecer uma redundância, mas se torna cada dia mais raro.

                       Reconcilhei-me com o mar e me despeço entardecendo  nas pedras do Arpoador, a ver o sol mergulhar lentamente nas águas do mar, deixando no final reflexos avermelhados (que lembram quadros de Monet), como a mão de quem se afoga, acenando o adeus.

                        Saber que a Manuela, ainda agasalhada no ventre materno, mexe-se como uma cabrocha ansiosa por desfilar, cresce e fica a cada dia mais linda. Não demorará muito tempo para que ela talvez esteja aqui ao meu redor, a ver o mesmo sol se pôr.

                        Às vezes, a felicidade é quase possível. Pena que dure tão pouco!

                         Lá se foram esses nossos dias de puro deleite no Rio. Amanhã, São Paulo nos aguarda.

 

 

 

 

Exercício de vida

 

 

                    O Rio é uma cidade que convida ao movimento, aos exercícios físicos,  atletas por toda a parte, corpos sarados.

                    Sempre gostei de exercitar o corpo, mas confesso que hoje em dia o exercício de vida a que tenho me dedicado com mais persistência é o de apagar certezas, o que não é nada fácil.

                    As certezas com que preenchemos a nossa existência, até mesmo para fazê-la possível, acabam muitas vezes se tornando uma luz demasiadamente intensa, que nos cega para as outras coisas que nos cercam ou nos ofuscam os outros lados de uma mesma coisa já conhecida.

                    Mas, me dirão alguns, apagar certezas é ficar no escuro, o que igualmente nos impede de enxergar as coisas.

                    Não é bem assim. Quando se apaga uma certeza, fica-se na penumbra, a vislumbrar os contornos das coisas, que podem ser aquilo mesmo que imaginamos ou coisas completamente diferentes, com que nos surpreenderemos.

                    Todos os gatos de fato poderão ser pardos, ou não.

 

                    

 

                    Nas Pílulas, um pequeno roteiro para “O filho do Brasil 2” (inspirado em fatos reais, como o primeiro).

Luiz Alfredo Garcia-Roza e eu

 

 

 

 

                    Dizia-se, com alguma razão, que era impossível escrever um bom livro policial ou criar um protagonista de tais histórias que se passassem no Brasil.

                    As histórias policiais, seus protagonistas e personagens exigem um certo clima, um ambiente próprio, uma certa cultura que não existiriam no Brasil.

                    Garcia-Roza desmistificou tais teorias. Desde o seu primeiro romance, O Silêncio da Chuva,  ganhador dos prêmios Nestlé de Literatura (1996) e Jabuti (1997), em que esboçava a figura do Delegado Espinosa (então ainda um investigador), vislumbrava-se que havia conseguido criar um tipo e um ambiente brasileirísssimos para suas tramas policiais.

                    A partir de então tenho acompanhado todos os seus livros do gênero. Depois do primeiro acima referido,  em alguns dos romances seguintes  oscilou um pouco, entre altos e baixos, como se o autor procurasse definir-se e encontrar-se, mas o Delegado Espinosa cada vez foi se tornando mais real e característico.

                    Garcia-Roza foi criado em Copacabana, onde também trabalhou e viveu na fase adulta. Conhece como ninugém a região, seus bares, inferninhos, livrarias, sebos e sua fauna urbana. A decadência experimentada pelo bairro, a violência crescente propiciaram-lhe um cenário perfeito para sua ficcção.

                    Todas as suas referências, o bairro Peixoto, o árabe da galeria Menescal, a Trattoria, a 12 DP onde trabalha Espinosa são rigorosamente exatas e já foram por mim conferidas pessoalmente.

                    Por feliz coincidência, quando venho ao Rio, normalmente em janeiro, há um novo livro dele, que faço sempre questão de ler aqui, in loco.

                    Assim me tornei íntimo do Delegado Espinosa e do seu universo, que em muitos aspectos se assemelham com o meu e a minha visão da vida. Daí a brincadeira que me permiti fazer (e espero não ter frustrado a expectativa daqueles que me leram).

                    Embora todos os livros de Garcia-Roza sejam bons, os dois últimos, Na Multidão (em que Espinosa quase morreu) e Céu de Origamis me parecem ter atingido a maturidade do autor, tanto estilística, quanto de elaboração ficcional.

                    Faço votos que o meu amigo, Delegado Espinosa, continue ainda por muito tempo na ativa a deliciar aqueles que, como eu, se tornarem partícipes das suas aventuras instigantes.