O pessoal da faixa dos 30 anos, minhas filhas, seus amigos, alguns alunos que tenho, os quais já me tratam como um provecto senhor, costumam me indagar coisas sobre os Beatles, admirados de que eu tenha sido jovem um dia e justamente naquela época de revolução musical e de costumes que o grupo encarnou.
Longe estou de ser especialista na história dos Beatles, ou um betleamaníaco que vasculha incansavelmente minúcias e segredos dos ídolos. Sei o que todo mundo sabe e pode encontrar com facilidade na internet. No recém-findo ano de 2009, por exemplo, fez 29 anos do estúpido e incompreensível assassinato de John Lennon (e alguma morte será compreensível?), 40 anos do lançamento de Abbey Road, e do último e improvisado show do telhado.
Alguns já me perguntaran como me senti quando soube da morte de Lennon. Outros querem que eu lhes diga se Paul realmente morreu e foi substituído secretamente por um sósia, graças aos boatos, as históricas fantásticas e teorias conspiratórias que atigingiram o ápice no lançamento daquele que talvez tenha sido o mais importante disco dos Beatles e do próprio mundo pop, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Haveria ainda, antes disso, pistas e referências veladas da morte de Paul nas capas de Rubber Soul e de Revolver, e em algumas canções.
Confesso que na época meus amigos e eu tentamos — sem sucesso, aliás — ouvir o disco tocado ao contrário para captar a mensagem cifrada de que Paul McCartney estava morto. Mas — caramba! —, se este que ainda está por aí, em ótima forma, é o que tomou o lugar do verdadeiro Paul, além da semelhança física será também sósia do seu extraordinário talento.
A música, como a literatura, sempre teve um papel muito importante na minha vida, cujos momentos mágicos (como costumo chamá-los) são indelevelmente pontuados por uma canção ou um livro. Em razão disso, talvez possa ser de interesse, ao menos para aqueles que tanto me indagam, registrar aqui alguns aspectos do que vivenciei, dos sentimentos e emoções daqueles tempos inesquecíveis.
Engraçado que, apesar de ter uma memória de elefante para essas coisas, não consigo precisar qual foi a primeira música dos Beatles que ouvi. Havia então os compactos simples (com uma música de cada lado) e os duplos (com duas canções de cada lado), além dos LPs. Mas antes de conseguir ter um compacto dos Beatles nas mãos, e quase furá-lo de tanto tocar, ouvimos pelo rádio suas primeiras canções, que ainda não eram o sucesso estrondoso que se tornariam. Digo ouvimos porque não tinha muita graça fazer isso sozinho, e estávamos sempre reunidos em tais momentos, compartilhando o entusiasmo, tentando tirar as letras em inglês, os acordes no violão, e vocalizar como eles.
As canções que me vêm à mente são exatamente as do primeiro disco de sucesso, Love Me Do / P.S. I Love You, de McCartney e Lennon, já com a produção de George Martin.
Impossível traduzir o que significava para nós ter um grupo e uma música com que nos identificávamos plenamente. E também com as roupas (no princípio meros ternos sem colarinho) e os cabelos com o corte característico, que procurávamos imitar. Aqueles com cabelos um pouco mais crespos ou ondulados, nos submetíamos durante a noite ao processo da touca feita das meias de nylon maternas, das irmãs ou das namoradinhas, para alisá-los e lhes dar a forma aproximada dos garotos de Liverpool. Aliás, as meninas faziam o mesmo para alisar os cabelos. A touca de nylon era a chapinha de então.
Pouco a pouco as roupas foram se tornando despojadas e coloridas, as bocas de sino das calças se alargando, os cabelos se alongando, barbas e bigodes incipientes (de nossa parte) sendo cultivados.
Era verdadeiramente libertador, apenas com três guitarras (baixo, base e solo) e uma bateria, formar um conjunto (como se dizia naqueles tempos) à semelhança dos Beatles. Quase todas as turmas formaram o seu, para infernizar a vida dos pais e vizinhos com os intermináveis ensaios para uma futura apresentação, que quase nunca aconteceu.
Lógico que tivemos o nosso conjunto, e com uma grande vantagem sobre os demais. Meu grande amigo, parceiro e irmão Brenno (musicalmente o mais talentoso de nós), morava na época em pleno centro de Ribeirão Preto, na esquina da Rua Barão de Amazonas com a General Osório, numa ampla casa acima do salão em que se instalava a casa de massas Bella Sicilia (onde hoje é uma loja de roupas), e o quarto dele defrontava com o antigo Cine Centenário (onde hoje é um supermercado).
Além disso, a casa toda era circundada por uma varanda não muito larga, mas em que se podia transitar facilmente. Valendo-nos dessa posição estratégica, feríamos as cordas das guitarras no maior volume suportado pelos toscos amplificadores, improvisávamos a bateria com um criado-mudo, uma mesinha e algumas latas (que ficavam escondidos da vista alheia), abríamos a ampla janela do quarto e nos exibíamos gloriosamente, às vezes saindo na varanda, para as longas filas que se formavam para comprar ingressos e entrar no cinema nas matinês de sábados e domingos, bem como para os que passavam pela rua e as meninas que moravam nos apartamentos do prédio do Cine Centenário.
Quanto a isso, antecipamos em muitos anos o célebre e derradeiro concerto dos Beatles, realizado no terraço da Apple.
Diversos outros grupos, de qualidade muito inferior aos Beatles, vieram no embalo e fizeram sucesso. Estabeleceu-se depois a grande rivalidade com os Rolling Stones (ou você era Beatles ou era Rolling Stones), esses, sem dúvida, uma banda de respeito, mas que insistem em continuar hoje como uma caricatura decrépita de si mesmos, sustentando-se em efeitos especiais, telões, back vocals e músicos de apoio.
Disso os Beatles felizmente escaparam, com a sua vida breve, embora na época a dissolução da banda tenha sido para nós uma verdadeira tragédia.
Sim, tive raiva de Yoko Ono e a responsabilizei pelo fim dos Beatles. Mas hoje se sabe que o grupo já estava em irremissível e crescente discordância, cada integrante com interesses artísticos e pessoais distintos, especialmente Paul e John, e não se manteria por muito tempo mais.
Quem era melhor, Paul ou John? Ambos se complementavam, se desafiavam e estimulavam. A propósito, George Martin, que teve uma importância decisiva para o sucesso e o amadurecimento artístico do grupo, valeu-se da feliz alegoria de que um escalava o ombro do outro sucessivamente, de modo que os dois cada vez mais subiam na qualidade de suas composições.
Se permanecessem juntos os Beatles provavelmente teriam se reinventado. Haja vista a flagrante evolução e as mudanças que apresentavam a cada álbum, a diversidade da sua paleta musical, a sofisticação crescente dos arranjos (George também passou a compor, e muito bem), ao contrário dos Rolling Stones que sempre fizeram o mesmo tipo de música.
Lembro-me do estranhamento (a começar pela capa), seguida do mais completo deslumbre depois de ouvi-lo várias vezes, que me causou o LP Revolver, que ainda tenho e me parece um dos melhores discos do grupo, um tanto subestimado. Estão nele, entre outras, Eleanor Rigby; Taxman; Love You To; Here, There and Everywhere; Good Day Sunshine; Yellow Submarine (Deus meu! O que era aquilo?).
Já não culpo Yoko Ono, mas continuo a não simpatizar com ela, nem vejo alguma qualidade artística nas instalações, obras experimentais e canções que teria feito. Ela foi boa para John? Para o homem, creio que sim. Deviam se dar muito bem na cama (de onde quase não saíam) e parece que foram felizes como casal. E isso importa muito na vida.
Para o grande músico, inquieto e criador John Lennon acho que ela foi um desastre. Supostamente de vanguarda, Yoko o domesticou e o mediocrizou, tornando-o um compositor de baladinhas bem comportadas, apaziguadoras, com mensagens edificantes, que, bem sei, quase todos adoram (e não digo que sejam ruins), principalmente os hippies tardios.
É o que vivi, senti e penso.
Que venham as pedradas.