Posts from janeiro, 2010

O Delegado Espinosa e eu (2)

 

 

   

“A verdade é que operamos o tempo todo numa zona de fronteira entre o bem e o mal, o legal e o ilegal, o certo e o errado. Essa fronteira não é uma linha que se possa traçar, delimitando claramente duas regiões: é uma fronteira larga o bastante para criar uma terceira região cujos limites não são nítidos nem rígidos. O mesmo acontece dentro de cada um de nós. Essa linha divisória é facilmente apagada, esses limites são facilmente ultrapassáveis – e são frequentemente ultrapassados. O policial trabalha nesse espaço que é quase irreal, mais imaginário do que real, no interior do qual ele constrói, dia após dia, seus valores, tão frágeis quanto a linha que separa o bem do mal.”   (Delegado Espinosa).

 

                     Passados dois dias, Espinosa me ligou no hotel, logo de manhã.

                     – Deixei você em paz nesses primeiros dias e imagino que, como todo bom paulista e caipira, você deve estar vermelho como um camarão com o sol que tem feito! Antes que sofra uma insolação ou queimaduras de terceiro grau, deixe o cartão de crédito para a Delucena e a Júlia se divertirem por Ipanema e Leblon e venha passar o dia comigo, até o jantar. Tenho novidades.

                    Não foi muito dificíl convencer as duas a ficarem sem mim por um dia em troca das andanças e compras pelas lojas cariocas.

                    Conforme combinado, fui encontrar Espinosa no seu apartamento no bairro Peixoto, e pude rever Júlio, seu filho, já com 23 anos, recém-formado em arquitetura nos EUA, que viera passar uma temporada com o pai e sondar o mercado de trabalho no Brasil para a sua área, de arquitetura de interiores.

                    Tornou-se um belo rapaz, alto, forte, inteligente e simpático. Confesso que por breve instante me ocorreu que Júlio e Júlia formariam um lindo casal, até na coincidência dos nomes. Mas logo afastei a ideia, pois além de jamais me prestar ao papel de pai alcoviteiro, Júlia não precisa disso, muito menos admitiria.

                    Júlio saiu para correr no calçadão e Espinosa me pôs a par do que acontecia.

                    – Na próxima segunda-feira devo me submeter a novo  exame médico e creio que em seguida reassumo a delegacia. Assim, antes que passe a tratar oficialmente do caso do dentista desaparecido, já que a ocorrência se deu na área da 12 DP, apesar das duas delegacias especializadas que já estão atuando, e me sufocar na rotina burocrática e demais investigações em curso, quero que você vá comigo conhecer as duas mulheres que fazem parte da vida do nosso sumido: a bela esposa e a secretária.

                    Fomos primeiro ao apartamento residencial do dentista, ali perto no Leme, onde nos aguardava a mulher dele. De fato, como dissera Espinosa, era lindíssima e sensual, o sonho de qualquer homem.

                    Espinosa me apresentou como um dos seus auxiliares e fiquei quieto, de lado, ouvindo o diálogo dos dois, ela cheia de charme para cima do Espinosa.

                    Em seguida fomos até o consultório, que também não era longe, num prédio em Copacabana, onde conheci a secretária, “uma moça magra, muito branca, algumas sardas no rosto, expressão inteligente e olhos azuis. Seu rosto era agradavelmente contraditório,” segundo a descrição de Espinosa.

                    Quando saimos, Espinosa comentou, como se pensasse em voz alta:

                    – Imagino esse dentista “convivendo com duas mulheres tão díspares: em casa, a esposa bela e sensual, porém sem mistério; no consultório, a secretária não tão bonita, mas interessante e com um incrível senso de humor. E ele, o feliz beneficiário dessa conjugação de diferenças, desaparece sem deixar vestígio. Simplesmente, puf.”

                    – Talvez fosse demais para ele, um sujeito pacato e metódico, como todos o descrevem. Quem sabe se apaixonou pela secretária não tão bonita, mas muito interessante e, sem coragem de enfrentar a mulher, desapareceu, puf!, ousei comentar, pensando na hipótese de desaparecimento voluntário, com a qual vinha trabalhando Espinosa.

                    – Não deixa de ser uma boa explicação, você não perdeu o jeito. Continua a ler muitos romances policiais?, respondeu-me sorrindo Espinosa.

                    Em vez de almoçar, comemos alguns quibes e esfirras no árabe da galeria Menescal, um dos lugares preferidos de Espinosa, onde a comida é realmente ótima.

                    Passamos o resto do dia na 12 DP, na Rua Hilário de Gouveia, onde Espinosa foi recebido efusivamente por todos, até mesmo os estagiários e o Delegado assistente que o estava substituindo no comando.

                    – “Delegado! Que bom ver o senhor aqui na delegacia. É pra valer ou é apenas um ensaio?, perguntou o Inspetor Ramiro.”

                    – “Todo ensaio ou é pra valer ou não é ensaio – respondeu Espinosa rindo.”

                    E depois, dirigindo-se ao colega que o substituía:

                   – “Delegado Josélio, do jeito que as coisas estão sob o seu comando, posso ficar mais dois meses afastado que ninguém vai notar.”

                    Da delegacia, fomos direto para um restaurante em Ipanema, onde Espinosa havia marcado encontro com um grande amigo que queria que eu conhecesse e achava poder ajudá-lo a entender melhor a figura enigmática do dentista desaparecido.

                     Foi então que conheci Luiz Alfredo Garcia-Roza, um homem de uns 70 anos, cabeleira branca, extraordinariamente inteligente e acolhedor. Formado em filosofia e psicologia, foi professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e escreveu oito livros sobre psicanálise e filosofia. Havia deixado a cátedra para se dedicar à ficção.

                    A conversa fluiu como um rio caudaloso, perspassando por diversos assuntos, especialmente literatura e filosofia. Quando  passamos a falar sobre o caso do dentista, alguns obstáculos pedregosos que tanto Espinosa como eu interpunhámos foram transpostos ou contornados com grande argúcia por Garcia-Rosa, que além do perfil psicológico do dentista, nos traçou também o da mulher, da secretária e de um advogado do desaparecido, um tipo que Espinosa achava estranho, fisicamente parecido com o porquinho Prático.

                     Posso dizer apenas que algum tempo depois, quando eu já tinha regressado para Ribeirão Preto, Espinosa me escreveu uma longa carta relatando como o caso tinha sido solucionado, em grande parte graças às ideias e os raciocínos desenvolvidos por Garcia-Rosa naquela noite e em outras conversas que mantiveram posteriormente.

                    Ontem, flanando por uma livraria, chamou-me a atenção um livro policial de autoria de Luiz Alfredo Garcia-Rosa, intitulado Céu de Origamis.

                    A história está toda lá para quem se interessar, com algumas poucas alterações, entre as quais a minha inexistência, já que não passo de um leitor intrometido.