Posts from janeiro, 2010

A Sereníssima República

 

 

 

“Vós sois a Penélope da nossa república — disse ao terminar —; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.” (Machado de Assis, A Sereníssima República).

 

 

                        Num conto, em que a sua ironia se apresenta mais afiada do que nunca, Machado de Assis narra uma conferência proferida pelo cônego Vargas, dando notícia de um grande feito por ele alcançado, consistente em organizar socialmente um grupo de aranhas:

 

“Não bastava associá-las; era preciso dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha: muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade.

Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena.

A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.”

 

                        Tomo emprestado do grande mestre o título e o tema para emoldurar o relato de dois episódios que me aborreceram neste final de férias, sobretudo porque são corriqueiros e representam o grau de nossa civilidade e nosso espírito republicano.

                        Como todos sabem, a república é uma da formas clássicas de governo que se caracteriza fundamentalmente pela igualdade (ao menos formal) de todos como cidadãos, sem a monárquica distinção entre nobres e plebeus, autoridades e servos. Aliás, na república, as autoridades é que são servos, ou seja, servidores públicos, e como tais têm muito mais deveres do que prerrogativas, as quais somente se justificam para lhes assegurar o cumprimento de suas obrigações de servidores, não se tratando em absoluto de privilégio pessoal.

                        Mas a tradição brasileira do “sabe com quem está falando?” é uma praga, uma erva daninha que se alastra desde os primórdios da nossa incipiente e trôpega república.

                        Na quarta-feira passada, dia 20, por volta das 19 horas, no Pão de Açúcar da Avenida Angélica, em São Paulo, Isabella, Júlia e eu estávamos no pequeno estacionamento do supermercado, aguardando que os manobristas trouxessem nosso carro, quando a poucos metros vi e ouvi um cidadão que envergava um terno bem talhado e uma vistosa gravata, de cabelos grisalhos, avançado nos sessenta, mas saudável e vigoroso, vociferando e repreendendo um dos manobristas, a lhe exigir satisfações por não haver deixado o seu automóvel numa vaga mais próxima. O rapaz, educadamente, tentava explicar, sem que ele lhe desse a menor atenção, que quando havia chegado todas as vagas estavam ocupadas, e por isso o seu veículo fora estacionado mais adiante. Aliás, o serviço de manobristas existe ali exatamente porque as vagas defronte do supermercado são poucas para o grande movimento e afluxo de clientes. Em menos de cinco minutos o automóvel do iracundo cliente chegou, mas ele seguiu a desancar o pobre moço mesmo depois disso, enquanto com uma senhora e mais uma ou duas pessoas que o acompanhavam entravam no carro em que finalmente partiram.

                        Estive prestes a acorrer em defesa do manobrista e interpelar o malcriado, mas minhas filhas me impediram, temendo que o incidente se agravasse e gracejando que estou me tornando um velho implicante (?).

                        Quando o rapaz se acercou de nós e lhe expressei a minha indignação com o tratamento que recebera, disse-me que “o homem é de um tribunal, e já estou acostumado com isso”. O sangue me ferveu ainda mais, e lamentei profundamente não ter interferido. Se soubesse quem era e a que tribunal pertence no mínimo faria uma representação contra o figurão, que muito provavelmente não resultaria em nada, mas pelo menos lhe daria alguma dor de cabeça.

                        No sábado, dia 23, em Congonhas, ao embarcarmos no voo das 11h58min da TAM para Ribeirão Preto, Júlia, eu e os demais passageiros ficamos retidos cerca de 20 minutos dentro do ônibus que nos conduziria ao avião, sem saber o porquê, até que três ou quatro atrasadinhos, com toda a calma do mundo, entraram e pudemos seguir. Nem reparei quem eram, pensando que talvez se tratasse de passageiros de alguma conexão, o que não justificaria a espera, mas a faria aceitável.

                        Quando ingressamos na aeronave Júlia me chamou a atenção para o fato de que Luana Piovani se achava a bordo, sentada num dos bancos da frente. Não percebemos se ela embarcou conosco ou já estava lá, mas aqueles retardatários do ônibus eram acompanhantes dela, um dos quais, ainda segundo a Júlia, seu atual namorado, um tipinho de galã que tem como único e grande mérito se exibir com artistas e mulheres famosas, como Ivete Sangalo, Adriana Cicarelli  e outras, que se dão ao desfrute. Agora é a vez da Luana.

                        Quando chegamos a Ribeirão Preto, é claro que Luana e seu séquito desceram antes de todos, mas ainda pudemos vê-los se afastando e passando direto por aquilo que deveria ser a esteira de bagagem do nosso “maravilhoso” aeroporto, que se acha em obras de ampliação.

                        Depois de aguardarmos nossas malas, como mortais comuns, ao sair da saleta quase trombei com Luana, que retornava esbaforida e chiliquenta, paparicada por vários sequazes, a reclamar em altos brados de alguma coisa, mas não perdi tempo nem me interessei em saber do quê.

                        O que me interessa saber é o que leva tais pessoas — como o “homem do tribunal”, celebridades de “Caras”, “Contigo” e “Big Brothers” da vida — a pensarem que têm direito a tratamento diferenciado?

                        E como companhias aéreas, repartições públicas, restaurantes, boates e seja lá o que for  ousam privilegiar esse tipo de gente, em detrimento dos demais cidadãos, usuários e consumidores?

                        A Sereníssima República aracnídea de Machado se viu em palpos de aranha à falta de acordo sobre a forma e o tamanho do saco eleitoral.

                        À nossa, falta muito mais.