Para Carol, Marcel e Manuela,
que me fazem vencer o comodismo e voltar às salas de cinema.
A vida é um lento e permanente acúmulo, até que de súbito a morte venha nos despojar de tudo.
Vivemos de acumular o próprio tempo que passa, coisas, sentimentos e pessoas. Dias, semanas, meses e anos. Papéis, livros, discos, badulaques mil. Lembranças, amores, desilusões, vitórias e fracassos. Mulheres ou maridos, filhos, netos, amigos, inimigos ou desafetos.
Nem sempre é fácil carregar tanto peso, e às vezes nos sentimos como Atlas, a sustentar o mundo nos ombros.
Manuel Bandeira, que tem o talento de dizer as coisas mais complexas e fundamentais do modo mais simples e cativante, escreveu um poema essencial a esse respeito:
Canção do vento e da minha vida
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.
O vento varria os sonhos
E varria as amizades…
O vento varria as mulheres…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos…
O vento varria tudo!
E minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.
No filme Up in the Air (recuso-me a usar o título ridículo que lhe foi dado em português, que nada tem a ver), de Jason Reitman (que dirigiu antes os interessantes Obrigado por fumar e Juno), o protagonista Ryan Bingham, interpretado por George Clooney, é um homem muito bem sucedido no estranho e cínico ofício de despedir pessoas para as grandes empresas (será que tal atividade já é explorada no Brasil?), e que tem como projeto de vida não acumular nada, a não ser milhagem de voo, até alcançar o seu objetivo de dez milhões de milhas, que lhe proporcionarão um cartão raríssimo com direito perpétuo a tratamento vip e até mesmo de ter um dos aviões da empresa aérea com o seu nome.
É um homem pragmático, que passa mais tempo nos aeroportos, voando e em hotéis nas mais diversas cidades dos EUA, do que na sua pequena quitinete, espartana e mais impessoal do que os quartos em que se hospeda.
No último ano viajou distância bem maior do que da Terra à Lua, e lamenta os pouco mais de quarenta dias miseráveis que passou em casa. Chega a causar inveja a desenvoltura e destreza com que arruma a mala, locomove-se pelos aeroportos, faz check in, embarca e desembarca. É um verdadeiro peixe n’água.
Ryan vive literalmente nas nuvens, ou acima delas, vendo do alto e à distância as preocupações mundanas e o acúmulo de coisas dos que vivemos cá embaixo, acorrentados ao chão. Faz palestras motivacionais que encantam o público sobre a sua filosofia da sacola vazia, segundo a qual fomos feitos para o movimento ininterrupto, para seguir sempre adiante, sem vínculos e âncoras que nos possam prender. Não somos cisnes, somos tubarões!
Antes de assistir ao filme, li alguns comentários que o relacionam com a atual crise econômica e o desemprego que assolam os EUA. Esse aspecto, embora presente, parece-me secundário. Mesmo porque, em maior ou menor escala, sempre haverá desemprego e demissão de funcionários no sistema capitalista.
Penso que o veio principal do filme seja o modo de viver de Ryan, protótipo do homem contemporâneo e cosmopolita, e da sua postura diante do mundo, dos outros e de si mesmo.
Não avançarei mais sobre o enredo e o que acontece no filme, para não ser o desmancha-prazeres de quem pretende assisti-lo (e recomendo que o faça). Posso dizer apenas que foge inteiramente dos padrões e maniqueísmos hollywoodianos.
Devo destacar, porém, a magnífica atuação de George Clooney e a sua composição do personagem. Sóbria, exata, sutil, sem maneirismo algum.
A trajetória de George Clooney, que se tornou um grande ator, e melhor a cada filme, suas incursões vitoriosas pela direção e produção, lembra muito as de Clint Eastwood e de Robert Redford, que transcenderam a condição de meros galãs ou homens bonitos e demonstraram um grande talento não apenas como atores, mas também para se reinventarem e se tornarem ótimos diretores e realizadores.
Aliás, por feliz coincidência, ainda há pouco li no uma crônica de Luis Fernando Veríssimo, como sempre deliciosa, intitulada O verdadeiro George Clooney, que começa assim:
“Longe de mim querer difamar alguém, mas acho que no caso do George Clooney o que está em jogo é a autoestima da nossa espécie, os homens que não são George Clooney.
Todas as nossas qualidades e todos os nossos atributos, físicos e intelectuais, desaparecem na comparação com o George Clooney.
As mulheres não escondem sua adoração pelo George Clooney. O próprio George Clooney nada faz para diminuir a idolatria e nos dar uma chance.
Fica cada vez mais adorável, cada vez mais George Clooney. E se aproxima da perfeição. É bonito. É charmoso. É rico. É bom ator. Faz bons filmes. Está envolvido com as melhores causas. E que dentes!
Não temos defesa contra esse massacre. Só nos resta a calúnia.”
E por aí vai, a vingar nós outros que nos roemos por não ser George Clooney.
Assista ao trailer de Up in the Air aqui.
Pai, o filme é mesmo mto bom… só ando me sentindo estranha com o fato de estar carregando uma bagagem tão preciosa, impossível de despachar (mas isso vc já sabe pq tb carrega tres há mais de 30 anos) Bj Carol
Essa bagagem preciosa (como as minhas três outras) carregaremos todos juntos, com imensa felicidade.
Talvez possamos diminuir o peso das nossas sacolas pondo fora as coisas desnecessárias, mas não me atrai nem um pouco a filosofia radical da sacola vazia do personagem, que nos esvazia a própria vida.
Que venha, pois, a nossa “bagagenzinha” querida.
Quanta riqueza num único post!!! Nem sei por onde começar… Embora já tenha lido Manuel Bandeira, não me lembrava desse poema. Parece que tudo, todos os poemas têm o momento certo de serem lidos. Deve ter chegado o momento deste poema pra nós… Realmente, acumulamos coisas sem fim, grandes demais para nosso “coraçãozinho”… Mas o que acho mais bacana nessa estória de coração é que, mesmo cheios de bagagens, das quais nem conseguimos nos desprender, sempre mantemos a esperança e a busca por novas emoções. Neste momento, pelo menos, o que mais me impressiona no ser humano é a sua capacidade de ter esperança. Ou seja, por mais carregados que estejamos, sempre esperamos mais e com o coração mais leve possível. Enfim, é fascinante ser humano! rsrs
Quanto ao magnífico George Clooney, nem há o que dizer, mas muito mesmo pra ver. E se encantar. No meu desktop, como plano de fundo, tenho uma foto linda dele, segurando um cãozinho… Falam muito de Brad Pitt. Mas tirando o seu mágico Tróia, não vejo tanto assim. Mas Clooney… é o Cary Grant de hoje: divino! Tentei reproduzir lado a lado as fotos de Grant e Clooney, mas a minha arte na informática não chega a tanto, infelizmente. Um dia, quem sabe, ainda aprenderei a reproduzir fotos nos posts…