Posts from janeiro, 2010

O Delegado Espinosa e eu (2)

 

 

   

“A verdade é que operamos o tempo todo numa zona de fronteira entre o bem e o mal, o legal e o ilegal, o certo e o errado. Essa fronteira não é uma linha que se possa traçar, delimitando claramente duas regiões: é uma fronteira larga o bastante para criar uma terceira região cujos limites não são nítidos nem rígidos. O mesmo acontece dentro de cada um de nós. Essa linha divisória é facilmente apagada, esses limites são facilmente ultrapassáveis – e são frequentemente ultrapassados. O policial trabalha nesse espaço que é quase irreal, mais imaginário do que real, no interior do qual ele constrói, dia após dia, seus valores, tão frágeis quanto a linha que separa o bem do mal.”   (Delegado Espinosa).

 

                     Passados dois dias, Espinosa me ligou no hotel, logo de manhã.

                     – Deixei você em paz nesses primeiros dias e imagino que, como todo bom paulista e caipira, você deve estar vermelho como um camarão com o sol que tem feito! Antes que sofra uma insolação ou queimaduras de terceiro grau, deixe o cartão de crédito para a Delucena e a Júlia se divertirem por Ipanema e Leblon e venha passar o dia comigo, até o jantar. Tenho novidades.

                    Não foi muito dificíl convencer as duas a ficarem sem mim por um dia em troca das andanças e compras pelas lojas cariocas.

                    Conforme combinado, fui encontrar Espinosa no seu apartamento no bairro Peixoto, e pude rever Júlio, seu filho, já com 23 anos, recém-formado em arquitetura nos EUA, que viera passar uma temporada com o pai e sondar o mercado de trabalho no Brasil para a sua área, de arquitetura de interiores.

                    Tornou-se um belo rapaz, alto, forte, inteligente e simpático. Confesso que por breve instante me ocorreu que Júlio e Júlia formariam um lindo casal, até na coincidência dos nomes. Mas logo afastei a ideia, pois além de jamais me prestar ao papel de pai alcoviteiro, Júlia não precisa disso, muito menos admitiria.

                    Júlio saiu para correr no calçadão e Espinosa me pôs a par do que acontecia.

                    – Na próxima segunda-feira devo me submeter a novo  exame médico e creio que em seguida reassumo a delegacia. Assim, antes que passe a tratar oficialmente do caso do dentista desaparecido, já que a ocorrência se deu na área da 12 DP, apesar das duas delegacias especializadas que já estão atuando, e me sufocar na rotina burocrática e demais investigações em curso, quero que você vá comigo conhecer as duas mulheres que fazem parte da vida do nosso sumido: a bela esposa e a secretária.

                    Fomos primeiro ao apartamento residencial do dentista, ali perto no Leme, onde nos aguardava a mulher dele. De fato, como dissera Espinosa, era lindíssima e sensual, o sonho de qualquer homem.

                    Espinosa me apresentou como um dos seus auxiliares e fiquei quieto, de lado, ouvindo o diálogo dos dois, ela cheia de charme para cima do Espinosa.

                    Em seguida fomos até o consultório, que também não era longe, num prédio em Copacabana, onde conheci a secretária, “uma moça magra, muito branca, algumas sardas no rosto, expressão inteligente e olhos azuis. Seu rosto era agradavelmente contraditório,” segundo a descrição de Espinosa.

                    Quando saimos, Espinosa comentou, como se pensasse em voz alta:

                    – Imagino esse dentista “convivendo com duas mulheres tão díspares: em casa, a esposa bela e sensual, porém sem mistério; no consultório, a secretária não tão bonita, mas interessante e com um incrível senso de humor. E ele, o feliz beneficiário dessa conjugação de diferenças, desaparece sem deixar vestígio. Simplesmente, puf.”

                    – Talvez fosse demais para ele, um sujeito pacato e metódico, como todos o descrevem. Quem sabe se apaixonou pela secretária não tão bonita, mas muito interessante e, sem coragem de enfrentar a mulher, desapareceu, puf!, ousei comentar, pensando na hipótese de desaparecimento voluntário, com a qual vinha trabalhando Espinosa.

                    – Não deixa de ser uma boa explicação, você não perdeu o jeito. Continua a ler muitos romances policiais?, respondeu-me sorrindo Espinosa.

                    Em vez de almoçar, comemos alguns quibes e esfirras no árabe da galeria Menescal, um dos lugares preferidos de Espinosa, onde a comida é realmente ótima.

                    Passamos o resto do dia na 12 DP, na Rua Hilário de Gouveia, onde Espinosa foi recebido efusivamente por todos, até mesmo os estagiários e o Delegado assistente que o estava substituindo no comando.

                    – “Delegado! Que bom ver o senhor aqui na delegacia. É pra valer ou é apenas um ensaio?, perguntou o Inspetor Ramiro.”

                    – “Todo ensaio ou é pra valer ou não é ensaio – respondeu Espinosa rindo.”

                    E depois, dirigindo-se ao colega que o substituía:

                   – “Delegado Josélio, do jeito que as coisas estão sob o seu comando, posso ficar mais dois meses afastado que ninguém vai notar.”

                    Da delegacia, fomos direto para um restaurante em Ipanema, onde Espinosa havia marcado encontro com um grande amigo que queria que eu conhecesse e achava poder ajudá-lo a entender melhor a figura enigmática do dentista desaparecido.

                     Foi então que conheci Luiz Alfredo Garcia-Roza, um homem de uns 70 anos, cabeleira branca, extraordinariamente inteligente e acolhedor. Formado em filosofia e psicologia, foi professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e escreveu oito livros sobre psicanálise e filosofia. Havia deixado a cátedra para se dedicar à ficção.

                    A conversa fluiu como um rio caudaloso, perspassando por diversos assuntos, especialmente literatura e filosofia. Quando  passamos a falar sobre o caso do dentista, alguns obstáculos pedregosos que tanto Espinosa como eu interpunhámos foram transpostos ou contornados com grande argúcia por Garcia-Rosa, que além do perfil psicológico do dentista, nos traçou também o da mulher, da secretária e de um advogado do desaparecido, um tipo que Espinosa achava estranho, fisicamente parecido com o porquinho Prático.

                     Posso dizer apenas que algum tempo depois, quando eu já tinha regressado para Ribeirão Preto, Espinosa me escreveu uma longa carta relatando como o caso tinha sido solucionado, em grande parte graças às ideias e os raciocínos desenvolvidos por Garcia-Rosa naquela noite e em outras conversas que mantiveram posteriormente.

                    Ontem, flanando por uma livraria, chamou-me a atenção um livro policial de autoria de Luiz Alfredo Garcia-Rosa, intitulado Céu de Origamis.

                    A história está toda lá para quem se interessar, com algumas poucas alterações, entre as quais a minha inexistência, já que não passo de um leitor intrometido.

   

                   

 

 

 

O Delegado Espinosa e eu

 

 

                    Desembarquei no aeroporto Santos Dumont por volta das 8h30min, depois de um voo tranquilo e agradável no novo jatinho da Passaredo.

                   Depois daqueles quinze ou vinte minutos intermináveis, aguardando a bagagem na esteira, em que sempre me dá a sensação de que a minha mala não virá, saímos para o saguão para tomar um táxi rumo ao hotel, na R. Maria Quitéria, em Ipanema, onde me prepararia para meu confronto ou reencontro com o mar mal humorado.

                    Foi então que vi um sujeito, entre vários outros que aguardavam os passageiros ilustres ou apenas esperados, com uma plaqueta com meu nome.

                    Deveria ser mera coincidência, imaginei logo, algum xará de sobrenome. Quem haveria de me esperar?

                    Quando me afastava, sem fazer contato, o homem alto e forte, me abordou:

                    –  O senhor não é o Dr. Gama, de Ribeirão Preto?

                    Diante da minha cara de espanto, esclareceu:

                    –  Sou o detetive Welber, trabalho como Delegado Espinosa, lá na 12 DP em Copacabana. Já almoçamos juntos, os três, lembra-se?

                    – Claro que sim! Desculpe-me, jamais poderia imaginar que alguém, principalmente você, me aguardasse. O que houve? Como está o Espinosa?

                    – Ele está bem. Passou maus bocados com aquele grave ferimento que sofreu no último caso em que trabalhou. Quase morreu. Ainda está de licença, mas a cada dia melhor. Foi ele quem me pediu para esperá-lo e lhe dizer que ele gostaria de ter uma conversa com o senhor. Se quiser, posso levá-lo na viatura ao apartamento dele no bairro Peixoto, e depois para o seu hotel.

                    Estava louco para chegar logo ao hotel e tomar um bom banho, mas a curiosidade e a velha amizade com Espinosa foram mais fortes.

                    Coloquei Delucena e Júlia num táxi para o hotel e fui com Welber até o bairro Peixoto, entranhado em Copacabana, rever o velho e bom Espinosa e descobrir o que se passava.

                    Espinosa e eu nos conhecemos na época da faculdade de Direito e logo nos tornamos grandes camaradas. Ele também é fanático por livros e lê tanto ou mais do que eu. Carioca, depois de formado e de trabalhar durante um ano como advogado assistente de um grande escritório de advocacia em São Paulo, decidiu regressar para o Rio e prestar concurso para a Polícia Civil, sua vocação. Casou-se, mas se separou alguns anos mais tarde. Hoje a ex-mulher mora nos EUA com o filho, que costuma vir passar as férias com o pai e já deve estar moço.

                    Nunca perdemos o contato, e sempre que venho ao Rio nos encontramos para almoçar ou jantar e principalmente para percorrer livrarias e sebos, que ele conhece como ninguém. Seu sonho é se aposentar daqui a alguns anos e se tornar livreiro ou dono de um sebo.

                    Deve ter mais de três mil livros no seu apartamento, cuidadosamente acomodados ao longo de duas paredes, formando uma curiosa estante só de livros, em que estes próprios fazem as vezes de prateleiras, arrumados na vertical e na horizontal, sucessivamente. Não é lá muito fácil apanhar um livro sem pôr em risco a estrutura da estante virtual, mas Espinosa sabe como fazê-lo.

                    Achei-o um pouco mais magro e abatido, porém em franca recuperação, bem disposto e ativo.

                    Depois dos abraços e amabilidades de costume, não resisti:

                    – Espinhosa, meu velho, me explique logo como soube que chegaria hoje e por que me mandou esperar no aeroporto?

                    – Tirocínio policial, gracejou ele. Você não  me avisou, mas tenho acompanhado o seu blog, Estrela Binária, onde soube que vinha passar férias aqui no Rio e chegaria hoje. Descobrir o voo e o horário foi muito fácil… Aliás, prosseguiu, li também sobre o seu patétito tombo e a fratura do punho nas férias anteriores. Eu ainda estava de cama, em recuperação, e passava o dia lendo e navegando na internet. Foi assim que descobri seu blog. Você já está OK, não é verdade?

                    Exibi-lhe a cicatriz cirúrgica no punho e ele, para me gozar e humilhar, levantou a camisa e me mostrou a dele, no peito, enorme e assustadora.

                    A conversa se alongou e, depois que Welber tinha sido dispensado para retornar ao trabalho, decidimos almoçar na Trattoria próxima, que Espinosa costumava frequentar há muitos anos.

                    Só então, durante a refeição regada com um ótimo vinho de Piemonte, Espinosa me revelou o que estava acontecendo.

                    Mesmo de licença médica, havia sido procurado pela mulher de um dentista que desaparecera de forma repentina e misteriosa, como num passe de mágica, depois de sair do consultório em Copacabana, no horário habitual, e se dirigir para casa, a umas poucas quadras pela Avenida Atlântica, no Leme, onde a sua linda mulher o aguardava para irem jantar com amigos.

                    O dentista era um homem metódico, educado e respeitoso, de vida pacata, sem amantes ou inimingos conhecidos.

                    O mais estranho é que o seu carro foi encontrado perfeitamente estacionado na vaga da garagem do prédio residencial, com a chave no contato.

                    Duas delegacias especializadas, Homicídios e Sequestros, estavam investigando o caso em marcha lenta, mas após vários meses no estaleiro Espinosa estava intrigado e havia concordado em atuar extraoficialmente como uma espécie de consultor da mulher do desaparecido, que estava aflitíssima.

                    O seu ponto de partida era um desaparecimento voluntário, de alguém que se enfairou com o tédio da vidinha modorrenta,  mas não descartava outras hipóteses.

                    – Sem nenhum compromisso, enquanto você curte suas férias adiadas, podemos ficar em contato e trocarmos ideias  sobre as investigações. Sei que você gosta disso, e talvez possa lhe render uma boa história para o seu blog ou até mesmo para o livro que você vive prometendo escrever. O que você acha?

                    Como poderia não topar?

(continua)

 

 

Matar ou Correr

 

 

 

                    Há um momento na vida em que o homem não pode fugir do seu destino.

                    O meu havia chegado.

                    No turbilhão de pensamentos que me assaltavam, passou-me pela lembrança como num flash o filme Matar ou Morrer, em que o xerife Gary Gooper, sozinho, abandonado pela cidade que defendia, caminhava para o duelo com o pistoleiro e facínora (logo depois, os inesquecíveis Oscarito e Grande Otelo lançavam a chanchada paródica Matar ou Correr).

                     Assim me sentia, um misto de Gary Cooper e de Oscarito.

                    Apesar de tudo, continuei a caminhar em direção dele, que me aguardava indiferente, imenso e majestoso. 

                    Como nos filmes de bang-bang, todos se afastaram, abrindo-me o caminho, para assistirem ao confronto final.

                    Minha mulher e minha filha se abraçavam, choravam e rezavam por mim.

                    Enfim, estávamos frente a frente,  só eu e ele.

                    Tudo o que tinha pensado e preparado antes sumiu por completo da minha mente.

                    Com uma coragem e calma que não sabia ter, avancei mais um pouco, resoluto, e quando ele também avançou em minha direção enfiei-lhe o punho esquerdo que ele havia me destroçado um ano antes, naquele mesmíssimo local, à mesma hora e num dia igual.

                    Mas ele apenas me lambeu o braço, como a se desculpar, e então me lancei de corpo inteiro, mergulhando nas suas entranhas.

                    Como velhos amigos que se reencontram, nos divertimos e trocamos afagos durante um largo tempo.

                     Quando o deixei e caminhei de volta à areia, até o biscoiteiro (aquele mesmo do ano passado) me aplaudia.

 

Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 2010

 

 

 

 

 

                        Nas Pílulas, um bom conselho para iniciar bem a semana: Suicide-se!

The Beatles Rooftop Concert

 

                        A propósito do post abaixo, assista aqui ao vídeo da improvisada e espetacular apresentação dos Beatles, que se tornou a derradeira, no terraço da Apple  (esta é apenas a primeira parte e no próprio You Tube há a continuação).

 

Beatles 4ever

 

 

 

                        O pessoal da faixa dos 30 anos, minhas filhas, seus amigos, alguns alunos que tenho, os quais já me tratam como um provecto senhor, costumam me indagar coisas sobre os Beatles, admirados de que eu tenha sido jovem um dia e justamente naquela época de revolução musical e de costumes que o grupo encarnou.

                        Longe estou de ser especialista na história dos Beatles, ou um betleamaníaco que vasculha incansavelmente minúcias e segredos dos ídolos. Sei o que todo mundo sabe e pode encontrar com facilidade na internet. No recém-findo ano de 2009, por exemplo, fez 29 anos do  estúpido e incompreensível assassinato de John Lennon (e alguma morte será compreensível?), 40 anos do lançamento de Abbey Road, e do último e improvisado show do telhado.

                        Alguns já me perguntaran como me senti quando soube da morte de Lennon. Outros querem que eu lhes diga se Paul realmente morreu e foi substituído secretamente por um sósia, graças aos boatos, as históricas fantásticas e teorias conspiratórias que atigingiram o ápice no lançamento daquele que talvez tenha sido o mais importante disco dos Beatles e do próprio mundo pop, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Haveria ainda, antes disso, pistas e referências veladas da morte de Paul nas capas de Rubber Soul e de Revolver, e em algumas canções.

                        Confesso que na época meus amigos e eu tentamos — sem sucesso, aliás — ouvir o disco tocado ao contrário para captar a mensagem cifrada de que Paul McCartney estava morto. Mas — caramba! —, se este que ainda está por aí, em ótima forma, é o que tomou o lugar do verdadeiro Paul, além da semelhança física será também sósia do seu extraordinário talento.

                        A música, como a literatura, sempre teve um papel muito importante na minha vida, cujos momentos mágicos (como costumo chamá-los) são indelevelmente pontuados por uma canção ou um livro. Em razão disso, talvez possa ser de interesse, ao menos para aqueles que tanto me indagam, registrar aqui alguns aspectos do que vivenciei, dos sentimentos e emoções daqueles tempos inesquecíveis.

                        Engraçado que, apesar de ter uma memória de elefante para essas coisas, não consigo precisar qual foi a primeira música dos Beatles que ouvi. Havia então os compactos simples (com uma música de cada lado) e os duplos (com duas canções de cada lado), além dos LPs. Mas antes de conseguir ter um compacto dos Beatles nas mãos, e quase furá-lo de tanto tocar, ouvimos pelo rádio suas primeiras canções, que ainda não eram o sucesso estrondoso que se tornariam. Digo ouvimos porque não tinha muita graça fazer isso sozinho, e estávamos sempre reunidos em tais momentos, compartilhando o entusiasmo, tentando tirar as letras em inglês, os acordes no violão, e vocalizar como eles.

                        As canções que me vêm à mente são exatamente as do primeiro disco de sucesso, Love Me Do / P.S. I Love You, de McCartney e Lennon, já com a produção de George Martin.

                        Impossível traduzir o que significava para nós ter um grupo e uma música com que nos identificávamos plenamente. E também com as roupas (no princípio meros ternos sem colarinho) e os cabelos com o corte característico, que procurávamos imitar. Aqueles com cabelos um pouco mais crespos ou ondulados, nos submetíamos durante a noite ao processo da touca feita das meias de nylon maternas, das irmãs ou das namoradinhas, para alisá-los e lhes dar a forma aproximada dos garotos de Liverpool. Aliás, as meninas faziam o mesmo para alisar os cabelos. A touca de nylon era a chapinha de então.

                        Pouco a pouco as roupas foram se  tornando despojadas e coloridas, as bocas de sino das calças se alargando, os cabelos se alongando, barbas e bigodes incipientes (de nossa parte) sendo cultivados.

                        Era verdadeiramente libertador, apenas com três guitarras (baixo, base e solo) e uma bateria, formar um conjunto (como se dizia naqueles tempos) à semelhança dos Beatles. Quase todas as turmas formaram o seu, para infernizar a vida dos pais e vizinhos com os intermináveis ensaios para uma futura apresentação, que quase nunca aconteceu.

                        Lógico que tivemos o nosso conjunto, e com uma grande vantagem sobre os demais. Meu grande amigo, parceiro e irmão Brenno (musicalmente o mais talentoso de nós), morava na época em pleno centro de Ribeirão Preto, na esquina da Rua Barão de Amazonas com a General Osório, numa ampla casa acima do salão em que se instalava a casa de massas Bella Sicilia (onde hoje é uma loja de roupas), e o quarto dele defrontava com o antigo Cine Centenário (onde hoje é um supermercado).

                        Além disso, a casa toda era circundada por uma varanda não muito larga, mas em que se podia transitar facilmente. Valendo-nos dessa posição estratégica, feríamos as cordas das guitarras no maior volume suportado pelos toscos amplificadores, improvisávamos a bateria com um criado-mudo, uma mesinha e algumas latas (que ficavam escondidos da vista alheia), abríamos a ampla janela do quarto e nos exibíamos gloriosamente, às vezes saindo na varanda, para as longas filas que se formavam para comprar ingressos e entrar no cinema nas matinês de sábados e domingos, bem como para os que passavam pela rua e as meninas que moravam nos apartamentos do prédio do Cine Centenário.

                        Quanto a isso, antecipamos em muitos anos o célebre e derradeiro concerto dos Beatles, realizado no terraço da Apple.

                        Diversos outros grupos, de qualidade muito inferior aos Beatles, vieram no embalo e fizeram sucesso. Estabeleceu-se depois a grande rivalidade com os Rolling Stones (ou você era Beatles ou era Rolling Stones), esses, sem dúvida, uma banda de respeito, mas que insistem em continuar hoje como uma caricatura decrépita de si mesmos, sustentando-se em efeitos especiais, telões, back vocals e músicos de apoio.

                        Disso os Beatles felizmente escaparam, com a sua vida breve, embora na época a dissolução da banda tenha sido para nós uma verdadeira tragédia.

                        Sim, tive raiva de Yoko Ono e a responsabilizei pelo fim dos Beatles. Mas hoje se sabe que o grupo já estava em irremissível e crescente discordância, cada integrante com interesses artísticos e pessoais distintos, especialmente Paul e John, e não se manteria por muito tempo mais.

                        Quem era melhor, Paul ou John? Ambos se complementavam, se desafiavam e estimulavam. A propósito, George Martin, que teve uma importância decisiva para o sucesso e o amadurecimento artístico do grupo, valeu-se da feliz alegoria de que um escalava o ombro do outro sucessivamente, de modo que os dois cada vez mais subiam na qualidade de suas composições.

                        Se permanecessem juntos os Beatles provavelmente teriam se reinventado. Haja vista a flagrante evolução e as mudanças que apresentavam a cada  álbum, a diversidade da sua paleta musical, a sofisticação crescente dos arranjos (George também passou a compor, e muito bem), ao contrário dos Rolling Stones que sempre fizeram o mesmo tipo de música.

                        Lembro-me do estranhamento (a começar pela capa), seguida do mais completo deslumbre depois de ouvi-lo várias vezes, que me causou o LP Revolver, que ainda tenho e me parece um dos melhores discos do grupo, um tanto subestimado. Estão nele, entre outras, Eleanor Rigby; Taxman; Love You To; Here, There and Everywhere; Good Day Sunshine; Yellow Submarine (Deus meu! O que era aquilo?).

 

                        Já não culpo Yoko Ono, mas continuo a não simpatizar com ela, nem vejo alguma qualidade artística nas instalações, obras experimentais e canções que teria feito. Ela foi boa para John? Para o homem, creio que sim. Deviam se dar muito bem na cama (de onde quase não saíam) e parece que foram felizes como casal. E isso importa muito na vida.

                        Para o grande músico, inquieto e criador John Lennon acho que ela foi um desastre. Supostamente de vanguarda, Yoko o domesticou e o mediocrizou, tornando-o um compositor de baladinhas bem comportadas, apaziguadoras, com mensagens edificantes, que, bem sei, quase todos adoram (e não digo que sejam ruins), principalmente os hippies tardios.

                        É o que vivi, senti e penso.

                        Que venham as pedradas.

 

 

 

 

AYUBOWAN

 

 

 

 

 

                        Meu pai suspeitou de alguma tramoia quando, sem prévio aviso, recebeu a visita de um homem muito bem-apessoado e cortês, que se expressava com absoluta correção, e se apresentou como diplomata de carreira, portador de um convite do Ministro das Relações Exteriores para um encontro reservado em Brasília.

                        Ao tomar conhecimento, tampouco acreditei na história, mas, para encurtar, a coisa era mesmo séria e cerca um mês depois meu pai foi designado como adido especial do Brasil no Sri Lanka.

                        Como até então a única viagem dele ao exterior havia sido em minha companhia, quando percorremos quase toda a Europa em um carro alugado, e também em razão da sua idade, quis que eu fosse com ele, conseguindo sem dificuldade minha nomeação como seu secretário particular.

                        Além de não lhe poder negar o pedido, confesso que me senti atraído pela aventura. Sonhava  com férias sabáticas,  e bem remuneradas, em que pudesse fugir por completo da rotina, fazer o que quisesse, quem sabe tentar escrever o romance há muito projetado.

                        E lá fomos nós para a distante República Democrática Socialista do Sri Lanka, antigo Ceilão, uma ilha verde e agradavelmente ensolarada, situada numa região tropical da extremidade oriental da Índia. Por razões estratégicas, nos alojamos no consulado brasileiro da cidade de Colombo, capital comercial do país, uma espécie de São Paulo ou Rio de Janeiro, e não na capital político-administrativa, Sri Jayawardenapura.

                        Os acontecimentos são muito recentes e envolvem assuntos de Estado, o que me impede de revelar a missão de meu pai, a não ser que a cumpriu com rara eficiência e pleno êxito, em menor prazo do que se previa. Apenas menciono o episódio porque ele mesmo o fez em uma das suas recentes crônicas que publica semanalmente num jornal.

                        Posso falar, entretanto, sobre minha estranha experiência naquele país. Sempre me imaginei passando por grandes peripécias em Istambul, decerto influenciado pelos livros, filmes e mistérios da histórica Constantinopla. Nunca sequer havia cogitado visitar o Sri Lanka, que nem sabia ao certo onde ficava.                    

                        Tinha muito pouco a fazer, já que meu pai dispunha de tantos assessores quantos necessitasse, por isso passei a maior parte do tempo perambulando descompromissadamente por Colombo, a conhecer seus diversos bares, cafés, museus, templos, suas lindas mulheres, sua zona portuária, seus prostíbulos.

                        Meu inglês, francês e espanhol são sofríveis, leio razoavelmente bem, mas me atrapalho na conversação. Aconteceu, porém, um fenômeno inexplicável comigo em Sri Lanka, que causou espanto até mesmo entre os diplomatas com que convivemos. Aprendi com extrema facilidade o cingalês, que em pouquíssimo tempo não apenas falava fluentemente, como lia e escrevia. Se realmente existem vidas passadas, devo ter sido em outra encarnação um cingalês ou um mouro do Sri Lanka. Além do idioma, sentia-me muito à vontade com os hábitos e a cultura local, como se estivesse em casa.

                        Lendo sobre a história do país numa biblioteca de lá, descobri que em 1505 (portanto pouco depois de terem chegado ao Brasil) os portugueses invadiram o Ceilão, ocupando o litoral e estabelecendo três reinos principais: o de Kandy, localizado no planalto central; o de Jaffna, no norte, e o de Kotte, o mais poderoso deles, que ficava no sudoeste. Os portugueses foram expulsos pelos holandeses por volta de 1658, mas conseguiram manter o reino de Kandy pelo menos até 1796, quando os britânicos assumiram o controle de todo o país, na expansão do seu império em que o Sol jamais se punha.

                        Essa longa presença lusitana e alguns episódios dela de que também tomei conhecimento me desviaram por completo do romance que tencionava escrever, e quando me dei conta tinha produzido um outro inteiramente diverso, com conotações históricas, passado no Sri Lanka e escrito em cingalês, cujo protagonista é um descendente dos antigos portugueses. Dei-lhe o título de AYUBOWAN, saudação cingalesa que significa “vida longa”.

                        De volta ao Brasil, tentei laboriosamente traduzir o romance para o português, mas não fui adiante. Há palavras e expressões cingalesas que são únicas, impossíveis de serem vertidas ainda que palidamente para nossa língua ou qualquer outra.

                        De modo que o livro permanecerá inédito, a não ser que algum dia alguém se interesse em editá-lo no Sri Lanka, onde, sabe-se lá, possa me tornar um autor de sucesso.

 

 

 

 

                        Feliz 2010, nas Pílulas.