Jesus Christ Supergay, nas Pílulas.
Jesus Christ Supergay, nas Pílulas.
Já escrevi antes aqui sobre a infidelidade de Tiger Woods e o que penso a respeito (Tigre em banco de areia, 16/12/2009).
Tiger Woods acaba de se submeter a uma expiação pública, pedindo desculpas a todos, mulher, família, patrocinadores e até aos jovens que o têm como ídolo esportivo. Disse ter sido o único culpado, irresponsável, egoísta e que continuará a terapia a que se submete desde dezembro. Não estabeleceu data para retornar ao golfe, a meu ver o único assunto de interesse público.
A proverbial hipocrisia conservadora das sociedades anglo-saxônicas não se contentaria com menos. Não importa que o assunto seja exclusivamente da alçada íntima dele e da mulher, já que não cometeu nenhum crime, como se relacionar com menores ou usar drogas. Nem basta reconhecer o erro, sendo preciso se humilhar, pedir clemência e se demonstrar arrependido publicamente.
Tudo isso está admiravelmente retratado no romance Desonra(Disgrace, o título original, me parece mais sugestivo e apropriado), de J.M. Coetzee, escritor de origem sul-africana, de língua inglesa, ganhador do Nobel de Literatura em 2003 e de dois Booker Prize (um deles, em 1999, exatamente por Disgrace).
A história se inicia com a queda em desgraça de David Lurie, professor de línguas modernas da Universidade Técnica do Cabo, que pensava ter resolvido muito bem o problema de sexo, graças aos encontros semanais — “um oásis de luxe et volupté” — com uma prostituta, com a qual partilhava, além do sexo, uma certa afeição desenvolvida ao longo do tempo.
Com a repentina interrupção dessa rotina prazerosa e cômoda, acaba por manter um caso — consensual, diga-se — com uma de suas alunas do curso especial sobre poetas românticos por ele ministrado, o que lhe acarreta uma acusação de abuso. A moça chama-se Melanie Isaacs e tem 20 anos, sendo ele divorciado, com 52 anos. Dois adultos, portanto, maiores e desimpedidos.
Lurie declara-se culpado, mas se recusa terminantemente a seguir o padrão hipócrita dos códigos politicamente corretos do ambiente universitário, e assinar uma declaração que lhe é exigida, para salvar o emprego.
Vale a pena transcrever algumas de suas palavras diante da comissão instaurada para apurar os fatos e recomendar as medidas que deverão ser tomadas pela reitoria. Ao lhe ser indagado se procurou aconselhamento legal, de um padre ou terapeuta e se estaria preparado para receber tal aconselhamento, responde:
“Não, não procurei nenhum aconselhamento, nem pretendo procurar. Sou um homem adulto. Não sou receptivo a conselhos. Não confio em aconselhamentos. Já dei minha declaração. Existe alguma razão para que este debate continue?”
Em face da insistência dos membros da comissão para que expusesse claramente o que pensava, diz:
“O que eu estou pensando só diz respeito a mim mesmo, Farodia (nome de uma professora integrante da comissão, que antipatiza com ele). Francamente, o que vocês querem de mim não é uma resposta, é uma confissão. Bom, não vou confessar nada. Já me declarei, como é de meu direito. Culpado, conforme as queixas. É o que tenho a dizer. É só até aí que estou disposto a chegar.”
E mais adiante, ao ser instado outra vez a admitir seu erro e se demonstrar arrependido, para que a comissão julgasse se isso refletia seus sentimentos sinceros:
“E você se considera capaz de adivinhar, a partir das palavras que eu usar, de adivinhar se estou sendo sincero?
[…]
“Eu disse as palavras, mas agora você quer mais, quer que eu demonstre a sinceridade delas. Isto é ridículo. Fica acima do alcance da lei. Para mim basta. Vamos seguir as regras. Eu me declaro culpado. É até aí que eu vou.”
[…}
“Compareci perante um tribunal oficialmente constituído, perante um braço da lei. Perante este tribunal secular, me declarei culpado, uma declaração secular. Essa declaração deveria bastar. Arrependimento não tem nada a ver com uma coisa, nem com outra. Arrependimento pertence a outro mundo, a outro universo de discurso.”
É claro que, diante dessa postura, Lurie acaba perdendo o cargo e se torna um pária entre seus antigos pares, o que o leva a se refugiar numa pequena fazenda da filha, no interior, onde, em contraste com a alheamento do meio acadêmico, se verá submetido à realidade crua e brutal de uma África do Sul pós-apartheid, permeada por ódios, incompreensões e ressentimentos de toda ordem e de toda a parte.
Essas reflexões e revelações corajosas custaram caro ao próprio Coetzee, que passou a ser tido como um traidor, caído em desgraça, por grande parte dos negros e brancos da África do Sul.
“Mas o piedoso Enéias estendia a sua direita desarmada, e com a sua cabeça descoberta chamava os seus em altos gritos: Para onde nos precipitais, ou que repentina discórdia é esta que se levanta? Oh! reprimi os vossos ódios! já está concluído o tratado e todas as condições reguladas: só eu tenho o direito de lutar!” (Virgílio, Eneida, Livro XII, vs. 311-31)
Alguns anos depois, ele ganhara peso. Em compensação perdera cabelo.
Parado em frente do velho prédio, cujo frontispício ainda trazia insculpida a inscrição “GYMNASIO DO ESTADO”, o homem que ensinava latim sentia uma vaga nostalgia daquilo que ele e as coisas que o cercavam haviam sido.
O edifício conservava a dignidade das construções do passado, mas a passagem dos anos e as exigências da vida contemporânea impuseram suas marcas ao casarão, que parecia agora uma respeitável senhora que abusou da cirurgia plástica e da maquiagem.
Lembrou-lhe o que dissera Machado de Assis a alguém que, contemplando as casas da Corte Imperial, comentava que eram muito feias: “mas são velhas”, redarguiu o escritor.
A imponente entrada principal, com suas escadarias, apesar da resistência heróica de duas altivas palmeiras imperiais, havia sido descaracterizada para ceder espaço a um improvisado estacionamento de automóveis, esses trambolhos que são o maior exemplo do individualismo e da prepotência que caracterizam a sociedade atual.
Morava a poucos quarteirões e costumava caminhar até a escola na época em que lecionava. Muitos professores faziam o mesmo, outros se utilizavam dos ônibus. Alguns poucos tinham automóvel, davam carona para os colegas e estacionavam nas ruas próximas, ou então eram deixados no local pelos cônjuges ou filhos, que iam embora com o veículo e voltavam ao término das aulas para apanhá-los.
Certo dia percebeu que as férias de fim de ano já estavam quase acabando e estranhou não ter recebido até então o horário das suas aulas, com era costume.
Atribuiu o fato a algum atraso do correio ou na elaboração do horário pela direção da escola, de que ele era então o professor mais antigo, concursado e titular da disciplina de Latim.
Já poderia ter se aposentado, mas preferiu continuar até que completasse 70 anos e o afastamento se tornasse compulsório. O diretor o havia estimulado a permanecer na ativa, elogiando-lhe a notória capacidade e invocando a dificuldade que teria em substituí-lo.
O Latim e as suas aulas eram a sua vida, e não sabia bem o que faria depois. Apaixonara-se pela língua logo de cara, quando começou a aprender seus rudimentos com o velho padre italiano no colégio marista em que havia estudado.
Fora o primeiro colocado no concurso de ingresso no magistério e até mesmo tinha escrito dois livros didáticos de algum sucesso, um compêndio intitulado Noções Fundamentais da Língua Latina e uma gramática mais aprofundada, em que procurara aparar as asperezas com o uso de textos, analisados e comentados.
Nos últimos anos suas classes estavam reduzidas, pois a disciplina de Latim somente se mantinha nas três séries do curso Clássico ou de Humanidades. Completava a carga horária lecionando Filosofia, para a qual também tinha habilitação, e auxiliando em algumas tarefas administrativas.
Para reforçar o orçamento, ministrava aulas particulares, tendo organizado um curso básico de um ano para interessados, jovens ou adultos, adaptando uma edícula da sua casa como sala de aula, com carteiras, quadro-negro e tudo o mais.
No dia marcado para o início do ano letivo foi para colégio logo pela manhã, no primeiro horário das aulas. Estava na sala dos professores conversando com alguns colegas e vestindo o jaleco, quando foi chamado ao gabinete do diretor.
Depois dos cumprimentos de praxe, o diretor bem mais moço do que ele lhe disse:
— Professor Enéias, lamento informar que o Latim foi excluído da nossa grade já a partir deste ano, de acordo com a reforma pedagógica promovida pela Secretaria de Educação. Assim, o senhor ficou sem suas aulas.
Com o coração aos pulos, a boca seca, esforçando-se para manter a dignidade ultrajada, respondeu com a voz mais firme que conseguiu:
— Mas como isso é possível? O Latim é a língua materna da nossa civilização ocidental e não se presta apenas para o domínio do Português e de outras línguas, mas acima de tudo para aguçar o intelecto dos jovens, tornando-os mais observadores e lhes desenvolvendo o poder de concentração e o espírito de análise, qualidades imprescindíveis ao homem de ciência.
— Pois é professor. Mas os tempos são outros. O que predomina agora é o Inglês. Espanhol e Francês também vão sair da grade e se manterão apenas como disciplinas facultativas. Mas o Latim está definitivamente abolido do currículo, assim como a Filosofia. Como lhe disse, sinto muito.
— Mas o que farei então? Sou professor efetivo, titular da disciplina por concurso público…
— O senhor tem duas opções: lecionar uma disciplina afim, como o Português, ou ser aproveitado em atividades extracurriculares e administrativas. Como o senhor já completou o tempo de serviço necessário, também pode decidir pela aposentadoria imediata. É o que eu faria se fosse o senhor, se me permite a opinião.
Apesar do tom aparentemente afável, sentia que no fundo o diretor o considerava um resto do passado, que quanto antes fosse removido, melhor.
Mesmo assim, pego de surpresa, pediu alguns dias para pensar e tomar uma decisão.
— Esta primeira semana será de reuniões pedagógicas e planejamento em razão das modificações. Em seguida virá o carnaval e as aulas só começarão de fato depois, de modo que o senhor poderá me dar uma resposta até lá, condescendeu o Diretor.
Saiu aturdido, sem coragem e ânimo de voltar para casa e contar à mulher o que acontecia. Há menos de dois meses estava na sala de aula, explicando aos alunos as declinações e os verbos latinos, sua correlação com o Português, lendo textos clássicos com eles e procurando motivá-los e situá-los no tempo e na cultura, de que todos provinham. Era comum que nas primeiras aulas os alunos se mostrassem reticentes ou desinteressados, mas no final do primeiro ano a maioria já denotava entusiasmo crescente pelo Latim, à medida que evoluíam no seu aprendizado.
Vagueou o resto da manhã pela cidade, tomou café acotovelando-se no balcão da mais tradicional e movimentada cafeteria da cidade, passou pela livraria que costumava frequentar, permaneceu algum tempo no silêncio da biblioteca pública situada próxima da livraria, remexendo nos livros, lendo alguns trechos, em busca de apaziguar o seu alvoroço interior.
Incentivado pela mulher, chegou a consultar um amigo advogado sobre a possibilidade de alguma medida judicial que o mantivesse na cátedra de que era titular concursado, mas soube que teria pouca chance de êxito. O que talvez conseguisse fosse ser posto em disponibilidade remunerada, sem obrigação de lecionar outra disciplina ou cumprir atividades diversas. Mas isso equivalia a uma aposentadoria provisória. Era preferível então se aposentar de vez, conformar-se e viver o que lhe restava.
Vivia agora recolhido e mergulhado na leitura. Além de reler os clássicos, divertia-se com livros policiais de que sempre gostara e até tinha começado a escrever um às escondidas, cujo personagem principal era inspirado no inglês capitão sir Richard Burton, figura extraordinária e aventureira, misto de soldado, cientista, explorador, escritor e agente secreto, que o fascinava desde rapazinho, talvez pelo contraste com a sua natural pacatez.
Absorto nos seus pensamentos, não se deu conta do bedel mulato e grisalho que se aproximava do portão fechado, vindo de dentro do prédio.
— Professor Enéias, mas que satisfação tornar a vê-lo! O que faz por aqui? Estamos de férias, mas se quiser abro para o senhor dar um passeio pelo estabelecimento e recordar-se dos velhos tempos.
Sentiu-se tentado a aceitar, mas logo rechaçou o ideia. Tudo aquilo se acabara e era melhor deixar em paz os fantasmas, dos quais ele próprio era um.
— Olá Alfredo, como vai você? O prazer é todo meu. Agradeço o convite, mas fica para uma outra ocasião. Já estava indo embora.
O velho Alfredo, terror dos alunos sem uniforme completo, que fumavam escondidos nos banheiros ou cabulavam aulas, fez questão de abrir o portão para lhe dar um abraço forte e afetuoso.
Despediram-se logo após e ele se foi, caminhando lentamente, ao encontro costumeiro com os amigos na barbearia.
Amanhã completaria 70 anos.
A que sabe o seio?
O seio a tudo sabe,
doce de leite,
doce deleite.
A que veio o seio?
O seio é veio de tudo
tez de veludo
remanso agudo.
O seio é puro anseio
do menino que quer vê-lo
da sina da menina ser mulher.
Teu seio na minha mão
não é só o seio-ideia de Platão,
é o mundo todo que sabia, não sei e sei-o.
Mais um carnaval chegou, e já se vai indo, ainda que na Bahia, em Pernambuco e alguns outros lugares, tenha começado antes e só termine no próximo domingo ou até mesmo após. Dizem que o ano só começa de fato no Brasil depois do carnaval, o que faz um amigo meu se lamentar:
― Vai ser duro aguentar esse restinho de ano…
Com exceção dos anos dourados da juventude, época em que a vida nos sorri e tudo é motivo para folia e divertimento, não posso dizer que tenha espírito de grande folião, daqueles que ― como diz a canção de Assis Valente eternizada por Carmem Miranda ― vestem uma camisa listrada e saem por aí, se bem que até me agrada uma parati.
Tampouco ― como naquele outro samba de Ary Barroso ― saia pela avenida de camisa amarela, cantando a Florisbela, para só voltar às sete horas da manhã da quarta-feira, cantando A Jardineira.
Já de algum tempo me tornei um folião virtual ou de sofá, que assiste de longe aos folguedos do chamado tríduo de Momo, que na verdade, como os Três Mosqueteiros, são quatro dias (ou muito mais).
O certo é que o carnaval, uma das mais simbólicas e autênticas manifestações da nossa cultura popular, mudou muito. Acabaram-se as adoráveis marchinhas, compostas a cada ano especialmente para o carnaval, e com elas, os bailes de salão.
Li que clubes tradicionais de Ribeirão Preto, como a Recreativa e o Regatas (em que passei carnavais inesquecíveis, alguns deles na companhia da garota mais linda do salão, que se fez de durona no começo, mas hoje se prepara comigo para nos tornarmos avós) anunciam para os seus bailes a presença de duplas sertanejas e de grupos de disco music!
Além de serem perfeitas para se brincar o carnaval — e não pular, feito pipoca na panela —, as marchinhas com suas letras fáceis de decorar, irônicas, maliciosas, críticas ou românticas resumiam o próprio espírito do carnaval, a própria voz popular, hoje ensurdecida pelo aparato estrondoso dos trios elétricos, que são para mim um verdadeiro tormento. Aliás, pelo volume das músicas, e também do som das atuais salas de cinema, parece que todos somos surdos, ou seremos em breve, por causa disso mesmo.
As marchinhas sobrevivem graças aos blocos de rua do Rio de Janeiro, que têm aumentado extraordinariamente a cada ano, alguns arrastando um milhão de pessoas pelas ruas (o que também já é demais), numa demonstração inequívoca do fascínio que os velhos carnavais ainda exercem sobre os foliões.
Até mesmo os sambas-enredo das Escolas modificaram-se, acelerando o andamento cada vez mais para cumprir o limite de tempo fixado para o desfile, quase matando os integrantes da velha guarda e da ala das baianas… Isso liquida também com a espontaneidade dos passistas, e em vez das mulatas sestrosas o que vemos são mulatas velocistas.
O bom Martinho da Vila, que completou 72 anos no último dia 12 e há mais de uma década não compunha um samba-enredo para a sua Vila Isabel, é um dos autores do samba deste ano, em homenagem a Noel Rosa, que os entendidos consideram como um dos melhores dos últimos tempos.
Com a sua experiência e aquele seu jeitão sossegado, devagar, devagarinho, Martinho disse em recente entrevista que ele e os parceiros acabaram concordando em apressar um pouco o andamento, a pedido dos diretores da Escola. Mas não deixou de criticar a visão hoje predominante de que só assim o samba “levanta a arquibancada”. Segundo ele, um desfile pode ser um grande sucesso deixando a arquibancada, em vez de levantada, embevecida, boquiaberta, a contemplar a Escola passando.
Não se trata de saudosismo, pois que afinal o mundo gira e a Lusitana roda, para levar nossas mudanças.
Somos seres mutantes, ainda que nem sempre para melhor. Mudou o carnaval, mudei eu, mudamos nós e continuaremos a mudar como mudaria o Natal de Machado de Assis.
E no entanto é preciso cantar, mesmo nas cinzas da quarta-feira, como nos diz a marcha-rancho de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, uma das mais belas que conheço e pode ser ouvida aqui.
Marcha da Quarta-Feira De Cinzas
Vinicius de Moraes / Carlos Lyra
Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.
Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.
E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade.
A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir
Voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.
Porque são tantas coisas azuis
E há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe.
Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz
Seu canto de paz.
Observem Fernanda Young.
Tem um rosto de delicada e clássica beleza, a pele clara, o corpo esguio. Uma francesinha, uma Coco Chanel (aliás, seu cabelo tem o corte tipo Chanel).
Mas em oposição a tudo isso, pelos braços, ombros, pelas mãos, costas, pernas, e por outras partes mais íntimas do corpo se espalham tatuagens, além de piercings nos mamilos (como revelado nas fotos nuas que fez para a revista Playboy) que podem e talvez queiram mesmo chocar.
Tal contraste é revelador de um espírito inquieto, indômito, audacioso, instigante, aberto a novas experiências, que busca se projetar na própria pele.
Quando ela escreve, esse espírito se evidencia por completo:
“Estrias. Estrias esponjosas. Chamadas de cavernosas. Que se incham de sangue. Isso perfaz um pau duro, maior orgulho e glória de um homem. A honra de poder apresentar ao mundo uma ereção… eis o que os homens querem, mais do que tudo, em suas vidas. Arte, ciência, fé, amor, tudo isso é secundário diante da capacidade de preencher com sangue venal uma esponja de carne pendurada entre as pernas. De que vale, afinal, você realizar uma obra-prima, se o seu pau permanece mole? Para que desvendar os mistérios do Big Bang se, depois, aquele específico pedaço do universo continua frio e vazio como antes? Qual a importância da existência ou não de Deus, perante um pau que não consegue apontar para cima? Rebaixem um homem ao máximo, chamem sua mãe de puta suja, invadam a sua pátria estuprando as suas filhas; nada será pior do que torná-lo inapto a endurecer seu pênis. Com todas as graves doenças que assolam a humanidade, o remédio mais vendido no mundo é para evitar esta suprema humilhação. “Não, isso não”. Um homem confessará qualquer coisa, roubos, fraudes, perversões, assassinatos, mais jamais irá admitir que tem um pau flácido. Setenta gramas de carne: um hambúrguer, se for esmagado”.
Esse é o primeiro parágrafo do seu mais recente livro, O pau, e quer se goste ou não da crueza do estilo e do tema, ou até mesmo do título e da capa ousados, quem escreve assim é uma escritora (pelo menos para mim).
A história da literatura é repleta de livros tidos como malditos pelas mais variadas razões, entre os quais A Origem das Espécies, de Charles Darwin, e Notre Dame de Paris, de Victor Hugo. que figuraram do Index (Index Librorum Prohibitorum) da Santa Madre Igreja Católica, criado em 1559 e presumivelmente abolido em 1962, pelo Papa João XXIII.
Em matéria de sexo, então, a lista é enorme.
Não pretendo com isso dizer que o livro de Fernanda Young esteja à altura dos clássicos da literatura erótica, ou que ela se compare a escritoras como Hilda Hilst, Marguerite Duras, Anais Nin, para mencionar apenas algumas das vozes femininas nesse mundo em que os gritos masculinos sempre foram altissonantes. Mas ela está muito longe de ser uma Bruna Surfistinha da vida, tem o que dizer e o seu livro não pode ser simplesmente ignorado ou deixar de ser lido por mero preconceito.
A protagonista do romance, Adriana, é uma bem sucedida mulher de 38 anos de idade, designer de jóias, bonita, culta, inteligente, rica e descolada, que não obstante mantém um caso com um homem 14 anos mais novo, de corpo malhado e cérebro atrofiado, que pretende ser ator. Ao se descobrir traída pelo amante ou namorado, que não passa de um arrivista, engendra uma terrificante vingança, sobre a qual nada vou contar aqui. Acho que o livro decai um pouco na parte final, mas sem comprometer a sua boa qualidade, com trechos de grande inspiração.
Critica-se, com inteira pertinência, a excessiva erotização da sociedade atual. Erotização não me parece, contudo, o termo mais indicado. O que de fato vivemos é uma sexualismo exacerbado ou uma banalização do sexo.
O erotismo é outra coisa, muito diferente da exposição de corpos nus, com seios e bundas de silicone, tórax e bíceps hipertrofiados, abdomens de tanquinho, conquistados a qualquer custo. Mulher Melância, Mulher Jaca, Mulher Melão, Mulher Maçã, Mulher Samambaia, Popuzudas, a mulher não mais existe na sua integralidade, mas apenas por características anatômicas de conotoção sexual.
Enquanto o sexualismo, a exemplo da pornografia, é exibicionista e frontal, o erotismo é insinuante e subjetivo, tanto que o próprio vocábulo deriva do grego Eros, entidade mitológica que para a psicanálise representa as pulsões da vida, o amor, o desejo, a paixão.
Ao contrário do erotismo, o sexualismo expressa uma preocupação excessiva com o sexo, no qual concentra e restringe a vida.
Nada mais representativo desse sexualismo do que a ditadura de um pênis ereto e sempre pronto a se exibir, a parte que comanda o todo, ao passo que a mulher simboliza o erótico, na sua sensibilidade e na própria conformação do seu órgão sexual, que recolhe e agasalha no seu íntimo.
Talvez seja isso que nos queira dizer (especialmente aos homens) o livro de Fernanda Young, na senda da célebre frase de Ernesto Che Guevara: Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.
Roberto Rockmann, no seu excelente blog Tudo e Nada, depois de realizar uma exaustiva pesquisa arqueológica, digna de Indiana Jones, oferece algumas preciosidades raras sobre Holden Caulfield e família, que foram escritas por J. D. Salinger e permanecem praticamente desconhecidas por imposição do próprio autor.
Não deixem de ler o post O desaparecimento de Holden Caulfield. Embora haja um link ao lado para acessar o blog, para facilitar ainda mais basta clicar aqui.
Mas que início de ano! Quantas perdas seguidas!
Agora se foi o querido Pena Branca (José Ramiro Sobrinho), aos 70 anos, quieta e mansamente, como era o seu jeito.
Em dupla com o irmão Xavantinho (Ranulfo Ramiro da Silva, que morreu em 1999), e depois em carreira solo, Pena Branca representava a verdadeira e mais pura tradição da música e da viola caipiras, mas sem se congelar no tempo, dialogando com as novas gerações da MPB.
As interpretações da dupla dos já clássicos Cuitelinho (folclore recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Xandó), Luar do Sertão (de João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense), Tristeza do Jeca (de Angelino de Olivera), Cálix Bento (folclore adaptado por Tavinho Moura) e a Cio da Terra (de Milton Nascimento e Chico Buarque), entre outros, são insuperáveis e se incluem entre as mais belas páginas do cancioneiro popular.
Assisti a um breve depoimento de Renato Teixeira (autor de Romaria e de outras maravilhas) que bem retrata a pureza e autenticidade de Pena Branca. Quando recebeu a notícia de que o seu álbum Semente Caipira, lançado em 2000, havia ganhado o Grammy de melhor disco “sertanejo”, telefonou para amigos perguntando:
— Me avisaram que fui premiado com um tal de Grame, o que que é isso?
O paradoxo ou ironia está no fato de que ele e o irmão sempre marcaram o contraste em relação ao boom mercadológico da falsa música sertaneja ou country, com a insuportável proliferação de duplas esgoelantes que cantam (?) qualquer coisa, menos música caipira ou de raiz, como têm o desplante de dizer. Como bem definiu Rolando Boldrin,“Ele e Xavantinho foram heróis da resistência caipira. Dois dos poucos que não se renderam ao sertanejo de mau gosto e de alto consumo”.
A sua figura sempre sorridente, serena, acolhedora, inspirava paz e bondade ao seu redor. E quando começava a cantar com sua voz macia e dedilhar sua viola tudo isso se materializava e a gente até podia crer que a vida valia a pena.
Assista aqui a um trecho do programa Ensaio, com Pena Branca e Xavantinho, apresentado pela TV Cultura, em 1991.
Conta-se, não sei se é vero, que o grande Luciano Pavarotti tinha uma profunda e sincera admiração pelos seus dois não menos admiráveis companheiros, José Carreras e Plácido Domingo, a qual expressava de maneira singela, quase num suspiro:
— Ah, esses espanhóis!
A propósito, não concordo com as críticas feitas às apresentações conjunta promovidas pelos três, tachadas por alguns de apelativas, marqueteiras e mercantilistas, com a mistura do bel canto com canções populares.
Não vejo mal algum nisso, muito pelo contrário. Proporcionar ao público menos afeito à ópera e à música clássica assistir e ouvir a tão excepcionais tenores é uma forma inteligente de educar os ouvidos moucos, entorpecidos pela praga do bate-estacas e, no nosso caso, ainda dos falsos sertanejos e pagodeiros, dos trovejantes trios elétricos da axé music.
O timbre aveludado de Pavarotti e suas interpretações carregadas de emoção me agradam mais, embora os experts digam que Carreras e Domingo teriam técnica mais apurada.
Quando me deparo com alguns escritores portugueses, em especial aqueles que ainda não conhecia e passam a me encantar, não resisto a parafrasear Pavarotti:
— Ah, esses portugueses!
Foi o que me disse e aos meus botões enquanto lia as mais de seiscentas páginas do primoroso romance de Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores.
O livro narra a saga da família alentejana e aristocrática dos Ribera Flores, a partir de 1915, quando o patriarca Manuel Custódio, latifundiário e monarquista, leva o filho mais velho, Diogo, a ver uma tourada em Sevilha e a ter sua primeira e sempre aflitiva experiência sexual, dizendo secamente, após lhe indagar a idade (quinze anos):
— Hum, já tens idade para te fazeres homem. Vens connosco também.
Não estranhem o “connosco”, pois que o livro mantém a ortografia de Portugal e o modo de falar da época, sem maiores dificuldades para que entendamos. Antes nos saboreamos com as expressões deliciosas e o vigor do português lusitano.
Permeando a narrativa, em que se confrontam dois irmãos de temperamentos díspares — Diogo, o mais velho, sensível, reflexivo, libertário, com ânsia pelo novo, e Pedro, o caçula, saído ao pai, telúrico, conservador, impetuoso e destemido —, mas que se amam e respeitam, o romance transcorre entre a primeira República portuguesa e a Segunda Guerra Mundial, e transpõe as fronteiras de Portugal e da própria Europa, chegando até o Brasil, para onde Diogo vem (na primeira vez, num voo transatlântico a bordo do Hindenburg ), enquanto Pedro se envolve na Guerra Civil Espanhola, lutando ao lado dos franquistas.
O ambiente histórico dos Estados totalitários de Salazar, Franco e Vargas (Stálin e Mussolini, de passagem) é revivido com base em rigorosa pesquisa e vasta bibliografia consultada pelo autor, que ao final anota:
“Este não é um livro de história mas sim um romance histórico. Nele convivem personagens reais com outros fictícios, acontecimentos reais com outros ficcionados. Todavia, o que é histórico — nomes, lugares, factos — corresponde rigorosamente ao que aconteceu e resulta da pesquisa extraída da bibliografia adiante referenciada ou feita localmente por mim. Todas as passagens escritas entre aspas são verídicas e textuais, mas certos acontecimentos reais e de importância menor ocorreram em datas não exatamente coincidentes com as que referidas ou implícitas no texto, de modo a fazê-los coincidir com a cronologia romanesca. Isso, porém, não implica nem com a sua veracidade, nem com o contexto em que sucederam.”
Há páginas simplesmente antológicas (em especial no capítulo VII), em que por intermédio de Diogo (que parece lhe fazer as vezes de alter ego, pelo menos nesse aspecto) o autor discorre sobre a ascensão de Salazar e o regime de arbítrio que de modo paulatino e matreiro impôs a Portugal — a exemplo do que ocorreu em muitos outros países naqueles tempos, incluindo o Brasil —, pelo descortino, pela agudeza do juízo crítico e a contundência devastadora contra todos os tiranos e ditaduras, que no fundo são muito semelhantes, farinhas do mesmo saco.
Mas o romance não se restringe ao universo masculino, então preponderante, incursionando pelo pequeno e pedregoso planeta feminino, no qual orbitam personagens dignas de integrar qualquer panteão literário, como a matriarca Maria da Glória, recolhida na sua viuvez precoce e condenada ao estiolamento do corpo e da sexualidade:
“Então, era aquilo a viuvez! Fazer de conta que não estremecia, fingir que não pensava, esforçar-se por sentir apenas, nas noites de Inverno, o frio que dividia consigo a cama e não a ausência do homem que outrora a dividira, e, nas noites de Verão, convencer-se de que era só a natureza, lá fora, que acordava para a vida e não o seu corpo oficialmente adormecido para todo o sempre!”
Há ainda a figura esplendorosa da cigana Amparo, filha de um antigo rendeiro dos Ribera Flores, a qual mercê da sua beleza, sensualidade, brejeirice e intuitiva inteligência, recebe uma aliança de ouro de lei, tendo como testemunha a melhor sociedade de Entremoz, e assim ingressa no clã para nele permanecer como se ali sempre fora o seu lugar.
Nem se pode esquecer da negra e brasileira Benedita, não menos capaz de mudar os rumos da própria vida e dos Ribera Flores.
Miguel Sousa Tavares, nascido no Porto em 1952, formou-se em Direito, que logo trocou pelo jornalismo, e hoje é colunista do jornal Público (um dos mais progressistas e respeitados de Portugal atualmente), além de comentarista da TV1.
Talvez em decorrência da sua formação jornalística, o seu texto flui num caudal, sem os contorcionismos estilísticos de um Saramago ou Lobo Antunes, que às vezes me enfadam.
Por isso, mal acabei de ler Rio da Flores, corri a comprar o seu romance anterior, Equador, que o consagrou em Portugal, onde já vendeu cerca de 250 mil exemplares.
Equador, com mais de 500 páginas que também fluem prazerosamente, retrata a sociedade portuguesa nos estertores da Monarquia, e a sua política estúpida e retrógada nas colônias d’África, especialmente nas ilhotas de Santo Tomé e Príncipe, para onde o protagonista Luís Bernardo Valença é mandado pelo el-rei D. Carlos, como governador numa missão patriótica de quase impossível sucesso, que é a de mudar as velhas e arraigadas práticas de cunho escravagista, que os novos tempos já não toleram, mas persistem naqueles confins sob o manto hipócrita da dissimulação.
Pode-se ter uma ideia do choque de Luís Bernardo, acostumado à vinda mundana e despreocupada de Lisboa (mas que pouco a pouco desenvolverá um entranhado amor pela colônia e sua pobre gente, de que se viu governador), num trecho da primeira carta que escreve ao seu grande amigo João, assim que desembarca em São Tomé:
“Caríssimo João,
Cheguei (hoje), pouco vi e nada venci — antes pelo contrário. Não sei se sou eu que vencerei as ilhas ou elas que me vencerão a mim. Sei que tenho esta estranha sensação de ter passado uma eternidade desde que saí de Lisboa, uma eternidade desde que hoje, de manhã, desembarquei aqui, em S. Tomé.
[…]
Mas hoje, nesta primeira noite, não te quero falar disso. Queria apenas dar-te conta da primeira impressão que sente um inocente português que sai diretamente do Chiado para uma aldeia metida dentro da selva e deixada à deriva no meio do Atlântico, à latitude do Equador: sente-se esmagado pela chuva, derretido pelo calor e pela humidade, comido vivo pelos mosquitos, espantado pelo medo. E sinto, João, uma imensa e desmedida solidão.”
Calha registrar, ainda, uma instigante curiosidade que o autor nos oferece na abertura do livro:
“Equador: linha que divide a Terra em hemisfério norte e sul. Linha simbólica de demarcação, de fronteira entre dois mundos. Possível contracção da expressão “é com a dor” (“é-cum-a-dor”, em português antigo)”
Tenho lido muito. Alguns bons livros, outros, nem tanto, e parte deles acabo pondo de lado. Posso dizer que Rio das Flores e Equador foram sem dúvida dois dos melhores que li nos últimos tempos, a ponto de me sentir melancólico ao final da última pagina, como se me despedisse de um novo e querido amigo, já ansioso para reencontrá-lo o mais breve possível.
Os meninos da Vila estão de volta, nas Pílulas.