No post anterior, ao comentar o filme Up in the Air, disse que tudo quanto acumulamos ao longo da vida, a morte se encarrega de nos despojar.
Corrijo-me. A própria vida, quanto mais se vive, vai nos tomando muita coisa, com a mão de veludo do batedor de carteira ou a virulência do assaltante. Cabelos, dentes, saúde, pessoas que amamos ou simplesmente admiramos de longe, mas que fazem parte de nós, mesmo sem conhecê-las pessoalmente.
Refiro-me, em particular, a artistas e escritores que nos tocam com sua varinha mágica e nos transportam para outra realidade, outro mundo, outras paisagens, que nos fazem entender e conhecer um pouco mais a nossa restrita realidade, a nossa aldeia e a paisagem que descortinamos da nossa janela.
Depois de Salinger, lá se foi Wilson Martins, aos 88 anos, sem nenhum exagero o maior crítico literário que o Brasil tinha atualmente, e um dos maiores de todos os tempos, à altura de Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Augusto Meyer, Antônio Cândido (este ainda vivo, felizmente), todos eles donos de uma cultura geral e de um conhecimento literário de amplitude que já não se vê nos dias de hoje.
Temos outros bons críticos e ensaístas, mas quase sempre pontuais, especialistas em determinados autores ou períodos, sem a visão sistemática e abrangente de Wilson Martins. A exemplo de Carpeaux, parece que o homem lia tudo, conhecia tudo, sabia de tudo.
A sua monumental História da Inteligência Brasileira que lhe rendeu dois Prêmios Jabuti, é uma obra insubstituível, e a série Pontos de Vista, que reúne seus artigos publicados em O Estado de S. Paulo (1954/1974), depois no Jornal do Brasil e em O Globo, constitui uma verdadeira história viva da literatura contemporânea.
Havia alguns anos que Wilson Martins, nascido em São Paulo, achava-se radicado em Curitiba (onde faleceu no último sábado), e se mantinha ativo como sempre, escrevendo semanalmente uma coluna no jornal Gazeta do Povo.
Conhecido — e até repudiado e patrulhado como reacionário pelos imbecis contumazes — pelo seu rigor e distanciamento crítico, não posso deixar de registrar aqui algumas de suas considerações sobre um poeta e escritor que durante muitos anos insistiu em se ocultar, exageradamente desconfiado e reservado na sua mineirice. Sem jamais se conhecerem, e com base apenas nos livros que lhe foram enviados pelo editor, Wilson Martins escreveu quatro ou cinco artigos críticos sobre a obra de Annibal Augusto Gama, dizendo entre outras coisas o seguinte:
“As veredas que se bifurcam conduzem ao poeta desconhecido que é também um dos melhores nos quadros históricos da poesia brasileira em qualquer tempo, não apenas na atualidade (Annibal Augusto Gama, 50 Anos Falando Sozinho. Poemas reunidos. Ribeirão Preto. SP: Funpec, 2002).
[…]
“É, pois, um caso singular, antes de mais nada por apresentar com idioma próprio, lírico e irônico, reassimilando em visão poética a realidade concreta do mundo exterior. Assim, por exemplo, no tratamento metafórico do tempo sem mencionar a palavra, mas transmitindo a sensação de sua mecânica inexorável”
[…]
“Além, bem entendido, do que tem de pessoal e inconfundível, a poesia de Annibal Augusto Gama é um vasto estuário onde vêm confundir-se águas tão diversas, e contudo tão similares, quanto as de José Paulo Paes (com quem revele espontâneas afinidades), Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, sendo essa a galeria da fama em que devemos situá-lo.”
“Já Annibal Augusto Gama pertence à família dos ficcionistas em que a imaginação prepondera sobre a observação, a ponto de praticamente ignorá-la (O Tiro pela Culatra)”
[…]
“Os personagens são fictícios e as situações imaginárias, o que parece responder à definição do conto literário inclusive na pauta do mistério, em que há alguns excelentes.”
Todos os anos, meu pai e eu programávamos uma viagem à Curitiba, não apenas para visitar a cidade, mas em especial para conhecer Wilson Martins pessoalmente.
Todavia, o excesso de zelo em não o incomodar no seu retiro, nem sermos inoportunos, nos levou a sempre adiar o projeto.
Agora já será tarde.