Mais um carnaval chegou, e já se vai indo, ainda que na Bahia, em Pernambuco e alguns outros lugares, tenha começado antes e só termine no próximo domingo ou até mesmo após. Dizem que o ano só começa de fato no Brasil depois do carnaval, o que faz um amigo meu se lamentar:
― Vai ser duro aguentar esse restinho de ano…
Com exceção dos anos dourados da juventude, época em que a vida nos sorri e tudo é motivo para folia e divertimento, não posso dizer que tenha espírito de grande folião, daqueles que ― como diz a canção de Assis Valente eternizada por Carmem Miranda ― vestem uma camisa listrada e saem por aí, se bem que até me agrada uma parati.
Tampouco ― como naquele outro samba de Ary Barroso ― saia pela avenida de camisa amarela, cantando a Florisbela, para só voltar às sete horas da manhã da quarta-feira, cantando A Jardineira.
Já de algum tempo me tornei um folião virtual ou de sofá, que assiste de longe aos folguedos do chamado tríduo de Momo, que na verdade, como os Três Mosqueteiros, são quatro dias (ou muito mais).
O certo é que o carnaval, uma das mais simbólicas e autênticas manifestações da nossa cultura popular, mudou muito. Acabaram-se as adoráveis marchinhas, compostas a cada ano especialmente para o carnaval, e com elas, os bailes de salão.
Li que clubes tradicionais de Ribeirão Preto, como a Recreativa e o Regatas (em que passei carnavais inesquecíveis, alguns deles na companhia da garota mais linda do salão, que se fez de durona no começo, mas hoje se prepara comigo para nos tornarmos avós) anunciam para os seus bailes a presença de duplas sertanejas e de grupos de disco music!
Além de serem perfeitas para se brincar o carnaval — e não pular, feito pipoca na panela —, as marchinhas com suas letras fáceis de decorar, irônicas, maliciosas, críticas ou românticas resumiam o próprio espírito do carnaval, a própria voz popular, hoje ensurdecida pelo aparato estrondoso dos trios elétricos, que são para mim um verdadeiro tormento. Aliás, pelo volume das músicas, e também do som das atuais salas de cinema, parece que todos somos surdos, ou seremos em breve, por causa disso mesmo.
As marchinhas sobrevivem graças aos blocos de rua do Rio de Janeiro, que têm aumentado extraordinariamente a cada ano, alguns arrastando um milhão de pessoas pelas ruas (o que também já é demais), numa demonstração inequívoca do fascínio que os velhos carnavais ainda exercem sobre os foliões.
Até mesmo os sambas-enredo das Escolas modificaram-se, acelerando o andamento cada vez mais para cumprir o limite de tempo fixado para o desfile, quase matando os integrantes da velha guarda e da ala das baianas… Isso liquida também com a espontaneidade dos passistas, e em vez das mulatas sestrosas o que vemos são mulatas velocistas.
O bom Martinho da Vila, que completou 72 anos no último dia 12 e há mais de uma década não compunha um samba-enredo para a sua Vila Isabel, é um dos autores do samba deste ano, em homenagem a Noel Rosa, que os entendidos consideram como um dos melhores dos últimos tempos.
Com a sua experiência e aquele seu jeitão sossegado, devagar, devagarinho, Martinho disse em recente entrevista que ele e os parceiros acabaram concordando em apressar um pouco o andamento, a pedido dos diretores da Escola. Mas não deixou de criticar a visão hoje predominante de que só assim o samba “levanta a arquibancada”. Segundo ele, um desfile pode ser um grande sucesso deixando a arquibancada, em vez de levantada, embevecida, boquiaberta, a contemplar a Escola passando.
Não se trata de saudosismo, pois que afinal o mundo gira e a Lusitana roda, para levar nossas mudanças.
Somos seres mutantes, ainda que nem sempre para melhor. Mudou o carnaval, mudei eu, mudamos nós e continuaremos a mudar como mudaria o Natal de Machado de Assis.
E no entanto é preciso cantar, mesmo nas cinzas da quarta-feira, como nos diz a marcha-rancho de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, uma das mais belas que conheço e pode ser ouvida aqui.
Marcha da Quarta-Feira De Cinzas
Vinicius de Moraes / Carlos Lyra
Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.
Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.
E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade.
A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir
Voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.
Porque são tantas coisas azuis
E há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe.
Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz
Seu canto de paz.