Posts from abril, 2010

No Teu Deserto

 

 

                               “Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum, excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos — e esse é assustador. Será assim a morte, também, Cláudia?”

 

 

                        O que leva um jornalista e escritor, já maduro e consagrado, a escrever sobre uma viagem de muitos anos atrás, em que partiu de Lisboa e percorreu o deserto do Sahara, na Argélia, à bordo de um estranhíssimo jipe — “um UMM, motor Peugeot e carroçaria portuguesa, seguramente o mais feio, o mais resistente e, para mim, o mais comovente carro que algum dia guiei” — tendo ao lado uma inesperada e até então desconhecida companheira, de apenas 21 anos e 15 anos mais jovem do que ele?

                        A viagem era profissional e tinha como objetivo fazer uma matéria para a revista em que trabalhava, com filmagens, fotos e textos sobre o deserto. O experiente photo-reporter stringer, “[…] como dizias com ar convencido [..]”, condescendeu em levar consigo a rapariga, para quem o deserto “[…] não era mais que uma imensa mancha amarela no mapa da África, pendurado na parede do escritório onde trabalhava todos os dias ou de vez em quando […]”, deixando claro desde início que ela “[…] era a menina da “organização”, a quem o chefe dera de presente um lugar na viagem, desde que esse lugar fosse o lugar vazio no teu jipe.”

                        Finda a aventura cúmplice, cada um seguiu com sua vida — “[…] e elas eram em tudo diferentes: os amigos, o trabalho, os lugares por onde andávamos, mais de meia geração a separar-nos. Lá longe, isso não fez assim tanta diferença, mas aqui fazia toda […]” — até que o jornalista e escritor decide romper bruscamente o silêncio, revelando logo nas primeiras linhas o porquê:

 

                        “(No fim, tu morres. No fim do livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres e eu conto. E ficamos de contas saldadas)”.

 

                        O que parece ser um anticlímax da narrativa que virá, a bem de ver revela a maestria do autor, Miguel Sousa Tavares, que a despeito da confidência abrupta e incomum, nos arrasta de modo irresistível pelas dunas e miragens de suas lembranças até então intocadas.

 

                        “Depois disso, voltei onze vezes ao Sahara. Nunca como contigo, nunca tão fundo, tão longe, tão perdidamente. Mas voltei, porque o deserto tornou-se quase um vício e a minha íntima religião, o único divino a que prestava contas e onde me reencontrava. E, de cada vez que voltei, pensei em ti e pensei como seria bom, incrivelmente bom, voltar contigo. Nessas alturas, como nas outras, eu repetia a mim mesmo: “Não há regresso. Há viagens sem regresso nem repetição”. Lembras-te quando, no último dos irrepetíveis dias daquela viagem, estávamos nós a amarrar em Gilbratar, debruçados na amurada do barco que nos tinha trazido de Marrocos durante a noite, olhando a manhã de Dezembro, limpa e deslumbrante sobre as águas quietas do Estreito, e tu me perguntaste:

                        Em que pensas?

                        Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar do deserto.”

 

                        Deparar com um grande escritor que se desconhecia é uma das mais emocionantes e prazerosas vivências que possa ter um leitor. Já me aconteceu invejar quem se achava lendo pela primeira vez e descobrindo um autor ou uma obra da minha predileção, querendo estar no seu lugar.

                        Por sorte o mundo da literatura é tão vasto e surpreendente que sempre reserva as delícias de um autor que ainda não se conhecia ou até mesmo, o que é mais extraordinário ainda, de um livro já lido que de repente se apresenta inteiramente novo aos nossos olhos vesgos.

                        Soube de Miguel Sousa Tavares quando estive em Portugal em julho do ano passado. Li alguns de seus artigos nos jornais de lá e tomei conhecimento da repercussão ascendente da sua obra literária, embora muitos lhe torçam o nariz pela narrativa mais convencional, se comparada à de António Lobo Antunes e de José Saramago (com quem já trocou farpas), assim como por suas opiniões corajosas e polêmicas como comentarista político na TVI (da qual já saiu). Com a mala cheia, deixei para comprar seus livros no Brasil, onde já haviam sido lançados.

                        Comentei aqui anteriormente sobre as suas duas obras maiores, os romances Rio das Flores e Equador, que me arrebataram e arrolo entre os melhores que li nos últimos tempos.

                        São dois livros monumentais, que podem afugentar alguns leitores pelas mais de 500 páginas de cada um. Mas se começam a ser lidos, impossível pô-los de lado, até o último parágrafo. Foi o que aconteceu com o Rockmann, a quem presenteei o Rio das Flores, segundo me disse ele entusiasmado ao nos encontramos em São Paulo no último fim de semana.

                        No Teu Deserto é um livro de pouco mais de 100 páginas, com o sabor de poema em prosa, e talvez seja um bom modo de iniciar o contato com o grande escritor para aqueles que se intimidarem com os volumosos Rio das Flores e Equador, aos quais haverão de acorrer em seguida.

 

 

 

Fotos Bel Pedrosa/Cia das Letras/Ann Johansson/ Latinstock

 

 

 

 

Prosa Afiadíssima

 

 

 

                        Como havia anunciado, sábado passado assisti à estreia da “contação de histórias para adultos”, bolada e realizada pelo trio Bell, Karina e Murilo.

                        A ideia do projeto surgiu da grande amizade dos três, aproveitando-se ainda da circunstância de que Karina e Murilo são atores e a Bell, além de escrever roteiros, tem uma boa experiência em produzir e dirigir. Uma das atividades da Karina como atriz é a de contar histórias para crianças, o que faz com exímia perícia e grande encantamento.  Pensaram então: por que não fazer o mesmo, mas para adultos, montando uma apresentação com textos e músicas de autores consagrados e de novos talentos, com a temática sobre os universos feminino e masculino?

                        Some-se a isso a paixão dos três por novos desafios e pelo teatro e suas diversificações (como é o caso).

                        Trabalharam duro por alguns meses, nas horas vagas, feriados e fins de semana, selecionando textos, obtendo autorização dos respectivos autores, escolhendo o repertório musical, elaborando o roteiro. Depois vieram os ensaios (com a Karina tendo de decorar os textos palavra por palavra, vírgula por vírgula), iluminação e marcação.

                        Fiz questão de acompanhar tudo de longe, sem ter a menor noção do que estavam aprontando, de quais seriam os textos e as músicas, de como seria a encenação, resguardando-me para assisti-la com a mesma surpresa dos demais espectadores.

                        Sou um crítico rigoroso, especialmente em relação àqueles de quem mais gosto e admiro (o que é um defeito dos escorpianos, segundo me dizem).

                        Se não tivesse gostado, o máximo que faria era me calar, para não magoá-los.

                        Mas a apresentação, com os naturais tropeços de qualquer estreia (que, entretanto, passaram despercebidos, tanto que só tomei conhecimento depois, nas conversas e beberagens que se seguiram), surpreendeu-me, emocionou-me, divertiu-me, encantou-me acima de qualquer expectativa, deixando-me cheio daquele orgulho besta (mas demasiadamente humano) de ser pai e amigo dos autores (que mérito teria nisso, para me pôr orgulhoso?).

                        Tais reações não foram apenas minhas, mas claramente da maioria dos que assistiram à apresentação, aplaudindo várias vezes em cena aberta, dando boas gargalhadas e expressando contentamento.

                        Textos ótimos, maliciosos, picantes, inteligentes, divertidos, muito bem costurados. Excelente o violonista e cantor Tuco Oliveira, que se encarregou da parte musical.

                        E absolutamente excepcional a atuação da Karina, interagindo com o público, trocando de personagens a cada história contada, com delicioso sabor.

                        A esse respeito, o que me chamou a atenção foi que, na manhã de sábado, após tomar café com a Bell (que ainda não tinha visto desde a minha chegada a São Paulo, no dia anterior), acompanhei-a até ao apartamento dela e da Júlia, onde encontrei a Karina se preparando, agitada, insegura, com receio de que não se saísse bem. Parecia uma menininha precisando de colo.

                        Fui embora, e logo depois as duas se dirigiram  ao Sesc Ipiranga,  para cuidar dos preparativos junto com o Murilo e demais parceiros.

                        Só voltei a ver Karina quando entrou em cena, deslumbrante num vestido preto com um enorme decote nas costas e com os sapatos de salto alto, avinhados. Não bastasse o impacto da sua beleza e do seu charme, aquela menininha temerosa da manhã transmudou-se magicamente numa verdadeira diva à noite, dominando todos os espaços do cenário, andando, sentando, cruzando as pernas, seduzindo, circulando pelo público, dizendo os textos com dicção e ritmo impecáveis. Eis o milagre do teatro e de quem nasceu para atuar!

                        Outra doce surpresa da noite foi a presença sempre amiga e carinhosa de Gilberto Kujawski e Célia Marcondes, que já haviam ido inutilmente até o Sesc Ipiranga no sábado anterior, confundindo o dia da apresentação, mas não deixaram de comparecer novamente. Ambos me asseguraram haver gostado muito.

                        Parece-me que o projeto, que certamente a cada apresentação há de ficar mais afiado, com permanente renovação dos textos e adaptações para novos locais, tem absolutamente tudo para vingar.

                        Os talentos da Bell, da Karina e do Murilo bem merecem.

 

 

 

Todo dia é dia de livro

 

 

 

                        Cheguei em São Paulo nessa sexta-feira e li no jornal que se comemorava o Dia Mundial do Livro e do Direito do Autor.

                        A Diretora Geral da Unesco, Irina Bokova, alertou em nota oficial sobre os perigos que livros e autores enfrentam atualmente, diante das novas formas de reprodução dos textos e de acesso a seus conteúdos, razão pela o órgão criou em janeiro deste ano o Observatório Mundial de Luta contra a Pirataria.

                        Também ontem, 23 de abril, se iniciaram as celebrações organizadas por Liubliana, Eslovênia, como Capital Mundial do Livro 2010, honraria que caberá no ano que vem a Buenos Aires.

                        Há muito se anuncia a morte do livro, ou pelo menos do livro físico, como o conhecemos. Tudo será digitalizado, para que os leitores baixem e leiam o que lhes interesse nas novas engenhocas que já pululam por aí e vão sendo aperfeiçoadas a cada dia.

                        Já não será possível então sentir os cheiros dos livros, acariciar suas capas e lombadas, passar os dedos lascivos por suas folhas, niná-los no colo como crianças, adormecer com eles abertos sobre o peito, como o corpo esparramado da mulher amada.

                        Nem se terá a doce surpresa de encontrar uma pétala seca ou um bilhete amarelecido entre as páginas, deparar com anotações desconhecidas, dedicatórias olvidadas.

                        As bibliotecas de agora serão transformadas em museus (de certa forma já o são), as livrarias de hoje se tornarão um tipo de cyber café (de certa maneira já o são).

                        As bibliotecas e livrarias sempre foram para mim como bosques com seus múltiplos espécimens de árvores,  arreadas de dourados pomos. Alguns nos fazem muito bem, outros causam alucinação, muitos são amargos ou venenosos.

                        Escondidos atrás da vegetação espessa, lobos em pele de cordeiro aguardam os incautos pensando em devorá-los, mas não raro eles é que acabam devorados.

                        Enquanto seu lobo não vem, aproveito a breve estadia em São Paulo para passear pelos bosques de livros que ainda nos restam.

 

 

 

Anima

 

 

                        Ao terminar o contorno do balão e entrar na avenida percebeu uns vinte metros à frente o objeto preto no meio da pista.

                        Veio-lhe à mente o verso de Caetano Veloso, que inclui entre os mais belos que conhece — “teu cabelo preto, explícito objeto” —, mas por cautela diminuiu a marcha e desviou o automóvel do objeto.

                        Ao passar pelo objeto, ele se tornou explícito: era um pequeno cachorro, com os olhos baços ainda arregalados de espanto. O pelo era todo preto e um filete rubro corria-lhe da cabeça para o asfalto cinza.

                        Teria um dono que ao dar pela sua falta o procurava e o chamava, aflito?

                        Teria um nome pelo qual atendia e corria abanando o rabo quando chamado?

                        Agora era apenas um objeto explícito, inanimado.

                        Dizem que os animais não têm alma. Mas então o que os anima? O que teria deixado aquele corpo inanimado? Por que desamina tanto aquela visão do corpo inanimado?

                        O entardecer prenuncia o fim do dia, que a manhã trará de volta.

                        Para o cachorrinho, explícito objeto, tanto faz. Amanhã ainda estará ali ou terá sido removido para outro lugar.

                        A vida continuará implícita.

 

 

Prosa Afiada

 

  

                        Bell, a estrela da família, recentemente atacada por alguns Imbecis, ataca outra vez, respondendo àqueles ataques com mais uma demonstração do seu múltiplo talento.

                        Em conjunto com dois grandes amigos, tão talentosos quanto ela, Karina Giannecchini e Murilo Inforsato, montaram uma apresentação com textos de grandes autores e também deles próprios, discorrendo sobre os universos feminino e masculino.

                        A estreia do projeto, que pretende se tornar permanente, sempre renovando os textos, será no próximo dia 24, sábado, no Sesc Ipiranga, em São Paulo.

                        Estarei lá, na fila do gargarejo.

                        Merda para eles!

 

 

 

                        Para saber mais, clique aqui.

 

 

 

                        Leia sobre “As pulseirinhas” nas Pílulas.

 

 

                        Nas Pílulas, “O Cândido”.

 

 

                        O país das tragédias anunciadas, nas Pílulas.

 

A virtude do esquecimento

 

 

 

“O resto é silêncio!” (Willian Shakespeare, últimas palavras de Hamlet)

 

 

                        Muitíssimo interessante — e terrificante — a entrevista feita pela jornalista Daniela Arrais, na edição da última segunda-feira (pág. A-18) da Folha de S. Paulo com Viktor Mayer-Schöenberger, austríaco, autor do livro Delete The Virtue of Forgetting in de Digital Age (Delete A Virtude do Esquecer na Era Digital).

                        Afirma ele, com inteira razão, que “Pelo esquecimento, a nossa mente se alinha com o nosso passado, com nossas preferências do presente, tornando mais fácil a sobrevivência e a vida mais suportável. Esquecer nos ajuda a evoluir, a crescer a seguir em frente — para aprender novas coisas.” “O Google não vai nos deixar fazer isso. Se nós procurarmos o nome de alguém no Google e descobrimos uma citação de que ele estava dirigindo embriagado há dez anos, o quão relevante é isso para o presente dessa pessoa?”

                        E relata no seu livro “o caso de uma mulher norte-americana de quase 30 anos que havia ficado alguns anos na prisão por algo que tinha feito aos 18 anos. Depois de sua libertação, ela se mudou para uma nova cidade, começou uma nova vida. Encontrou um marido, um emprego, seus filhos cresceram em uma família normal. Até que um colega “deu um Google” no nome dela e, por acaso, deu de cara com um site que colocava fichas policiais com foto de todos os prisioneiros do Estado nas últimas duas décadas. De repente, a vida dela desmoronou”.

                        É de fato assustador o que representa e poderá acarretar esse consciente coletivo permanente e inesgotável. Essa massa de dados e informações sem fim, que nos traga para o seu ventre sempre faminto, queiramos ou não. Lá permanecerão inolvidáveis nossos êxitos (poucos) e fracassos (tantos), o rastro do que fomos e já não somos, impossibilitando, talvez, o que seríamos.

                        Não fosse o assunto instigante por si mesmo, pela sua significância e atualidade, eis que estou lendo (mais um dos laços invisíveis?) o recém-lançado livro de Enrique Vila-Matas, Doutor Pasavento, cujo tema é justamente o desaparecimento do sujeito, o escrever para se ausentar: 

 

“Minha primeira lembrança, relacionada com a imagem de minha aparição no mundo, já está ligada, portanto, a uma ideia de despedida e desaparição. Talvez tenha sido essa a causa de eu sempre ter dito a mim mesmo que quem quiser ir além deverá desaparecer. De uma coisa acredito estar certo: me parece que foi precisamente meu desejo por dar um passo além o que me levou a dedicar à escrita, fazendo com que a minha aparição como escritor fosse acompanhada de uma forte vontade de dissimulação e desaparecimento no texto. Comecei, então, a escrever só para mim mesmo, sem ânimo de publicar (tal como estou fazendo agora) e sabendo perfeitamente que a literatura, como o nascimento para a vida, continha em si mesma sua própria essência, que não era outra senão o desaparecimento. No entanto, mais  tarde, publiquei um livro, e isso arruinou o enfoque radical de meus começos. Eu havia me iniciado no mundo das letras considerando que escrever era um desapossar-se sem fim, um morrer sem detenção possível. Publicar complicou tudo. Me converteu pouco a pouco num escritor relativamente conhecido em meu país e isso me pôs em contato com o horror da glória literária. “Se uma pessoa busca o sucesso, só tem dois caminhos, ou o consegue ou não o consegue, e ambos são igualmente ignominiosos”, disse Imre Kértesz”.

 

                        Estou ainda no começo do livro, mas até agora me agrada muito, embora não  concorde inteiramente com  a  ideia de que  o desaparecimento  seja a essência e o fado do escritor e da própria literatura. Mas é sempre estimulante  defrontar com concepções e pensamentos diversos dos nossos.

                        De todo modo é cedo para formular um juízo, pois não sei para aonde se encaminhará o romance. Talvez volte ao assunto depois de terminar a leitura.

 

 

 

 

 

 

                        Nas Pílulas, a pisada na bola dos Meninos da Vila.