“Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum, excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos — e esse é assustador. Será assim a morte, também, Cláudia?”
O que leva um jornalista e escritor, já maduro e consagrado, a escrever sobre uma viagem de muitos anos atrás, em que partiu de Lisboa e percorreu o deserto do Sahara, na Argélia, à bordo de um estranhíssimo jipe — “um UMM, motor Peugeot e carroçaria portuguesa, seguramente o mais feio, o mais resistente e, para mim, o mais comovente carro que algum dia guiei” — tendo ao lado uma inesperada e até então desconhecida companheira, de apenas 21 anos e 15 anos mais jovem do que ele?
A viagem era profissional e tinha como objetivo fazer uma matéria para a revista em que trabalhava, com filmagens, fotos e textos sobre o deserto. O experiente photo-reporter stringer, “[…] como dizias com ar convencido [..]”, condescendeu em levar consigo a rapariga, para quem o deserto “[…] não era mais que uma imensa mancha amarela no mapa da África, pendurado na parede do escritório onde trabalhava todos os dias ou de vez em quando […]”, deixando claro desde início que ela “[…] era a menina da “organização”, a quem o chefe dera de presente um lugar na viagem, desde que esse lugar fosse o lugar vazio no teu jipe.”
Finda a aventura cúmplice, cada um seguiu com sua vida — “[…] e elas eram em tudo diferentes: os amigos, o trabalho, os lugares por onde andávamos, mais de meia geração a separar-nos. Lá longe, isso não fez assim tanta diferença, mas aqui fazia toda […]” — até que o jornalista e escritor decide romper bruscamente o silêncio, revelando logo nas primeiras linhas o porquê:
“(No fim, tu morres. No fim do livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres e eu conto. E ficamos de contas saldadas)”.
O que parece ser um anticlímax da narrativa que virá, a bem de ver revela a maestria do autor, Miguel Sousa Tavares, que a despeito da confidência abrupta e incomum, nos arrasta de modo irresistível pelas dunas e miragens de suas lembranças até então intocadas.
“Depois disso, voltei onze vezes ao Sahara. Nunca como contigo, nunca tão fundo, tão longe, tão perdidamente. Mas voltei, porque o deserto tornou-se quase um vício e a minha íntima religião, o único divino a que prestava contas e onde me reencontrava. E, de cada vez que voltei, pensei em ti e pensei como seria bom, incrivelmente bom, voltar contigo. Nessas alturas, como nas outras, eu repetia a mim mesmo: “Não há regresso. Há viagens sem regresso nem repetição”. Lembras-te quando, no último dos irrepetíveis dias daquela viagem, estávamos nós a amarrar em Gilbratar, debruçados na amurada do barco que nos tinha trazido de Marrocos durante a noite, olhando a manhã de Dezembro, limpa e deslumbrante sobre as águas quietas do Estreito, e tu me perguntaste:
— Em que pensas?
— Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar do deserto.”
Deparar com um grande escritor que se desconhecia é uma das mais emocionantes e prazerosas vivências que possa ter um leitor. Já me aconteceu invejar quem se achava lendo pela primeira vez e descobrindo um autor ou uma obra da minha predileção, querendo estar no seu lugar.
Por sorte o mundo da literatura é tão vasto e surpreendente que sempre reserva as delícias de um autor que ainda não se conhecia ou até mesmo, o que é mais extraordinário ainda, de um livro já lido que de repente se apresenta inteiramente novo aos nossos olhos vesgos.
Soube de Miguel Sousa Tavares quando estive em Portugal em julho do ano passado. Li alguns de seus artigos nos jornais de lá e tomei conhecimento da repercussão ascendente da sua obra literária, embora muitos lhe torçam o nariz pela narrativa mais convencional, se comparada à de António Lobo Antunes e de José Saramago (com quem já trocou farpas), assim como por suas opiniões corajosas e polêmicas como comentarista político na TVI (da qual já saiu). Com a mala cheia, deixei para comprar seus livros no Brasil, onde já haviam sido lançados.
Comentei aqui anteriormente sobre as suas duas obras maiores, os romances Rio das Flores e Equador, que me arrebataram e arrolo entre os melhores que li nos últimos tempos.
São dois livros monumentais, que podem afugentar alguns leitores pelas mais de 500 páginas de cada um. Mas se começam a ser lidos, impossível pô-los de lado, até o último parágrafo. Foi o que aconteceu com o Rockmann, a quem presenteei o Rio das Flores, segundo me disse ele entusiasmado ao nos encontramos em São Paulo no último fim de semana.
No Teu Deserto é um livro de pouco mais de 100 páginas, com o sabor de poema em prosa, e talvez seja um bom modo de iniciar o contato com o grande escritor para aqueles que se intimidarem com os volumosos Rio das Flores e Equador, aos quais haverão de acorrer em seguida.
Fotos Bel Pedrosa/Cia das Letras/Ann Johansson/ Latinstock