O Boca do Inferno chora por Portugal e não perdoa Cristiano Ronaldo.
O Boca do Inferno chora por Portugal e não perdoa Cristiano Ronaldo.
O Boca do Inferno não crê em estatística no futebol. Nas Pílulas.
Três pilulazinhas picantes do Boca do Inferno sobre os jogos da Copa desse domingo.
O Boca do Inferno continua a destilar seu veneno a respeito da Copa nas Pílulas.
O já cognominado “jogo sem fim”, travado pelo norte-americano John Isner (19º do ranking) e o francês Nicolas Mahut (apenas o 148º do ranking), que se batem há três dias e mais de 10 horas numa quadra do tradicional torneio de Wimbledon (o quinto e decisivo set estava empatado em inacreditáveis 59/59, já que não há tie-break em Wimbledon), lembra-me um grande filme, Os Duelistas baseado num conto do extraordinário Joseph Conrad (O Duelo).
Se não me engano foi o primeiro longa metragem dirigido por Ridley Scott, numa época em que ele ainda podia ser autoral (Alien, O 8º Passageiro, Blade Runner, O Caçador de Andróides, Thelma e Louise) e não era obrigado a realizar blockbusters, mesmo assim apreciáveis (Gladiador, Hannibal, Um Bom Ano, O Gangster, Rede de Mentiras, entre outros)
O filme é belíssimo em todos os seus aspectos, direção de atores e de arte, música, fotografia exuberante, que parece inspirada na estética dos quadros impressionistas, com muitas cenas captando a deslumbrante paisagem dos bucólicos campos rurais da França do fim do século XVIII e início do século XIX.
Até mesmo o canastrão do Keith Carradine (irmão do Kung-Fu David Carradine, não menos canastra) está esplêndido como o jovem tenente do exército francês, Armand D’Hubert, o qual é encarregado de prender o truculento e irascível oficial Gabriel Feraud (Harvey Keitel, também excelente), por haver participado de um duelo. Feraud não aceita a detenção e desafia D’Hubert para um duelo, vencido por este.
Inconformado e sedento de vingar a honra ultrajada, Feraud passa a perseguir e desafiar-sucessivamente D’Hubert para novos duelos em diversos lugares, ao longo dos 15 anos que se seguem e marcam a Era Napoleônica. Por seus méritos militares, ambos chegam ao posto de general, mas os embates não cessam, pois que a cada um deles os dois duelistas sobrevivem, feridos e extenuados.
A história, no seu aparente disparate, tem os ingredientes clássicos de várias obras de Conrad, em especial o significado idiossincrásico de honra e coragem, a situação absurda em que se vê D’Hubert, preso numa cadeia de ideais e valores que não são dele e lhe tolhem a liberdade de agir em face do assédio e da obsessão de Feraud (o inferno são os outros). Essa situação agônica está presente em Lord Jim, Coração das Trevas (do qual Coppola extraiu o monumental Apocalypse Now) e outros livros e escritos de Conrad.
Ignoro neste momento em que escrevo como o duelo de tênis de Wimbledon chegou ao fim, mas gosto de imaginar que os conspícuos cavalheiros ingleses da direção do torneio, contrafeitos, sejam obrigados a se valerem de uma prosaica moeda para o tradicional toss, e que a moedinha caprichosamente caia em pé…
Como é de meu costume, tampouco revelarei o final do filme, para aguçar a curiosidade daqueles que ainda não assistiram (é fácil encontrar em DVD) e não lhes tirar o prazer de aguardar e imaginar o desfecho (que a meu ver permite várias interpretações).
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=Nmejpbzq510&feature=related]
Atenção: O Boca do Inferno baixou lá nas Pílulas.
Para José Saramago
“Deixa-te levar pela criança que foste” (O Livro dos Conselhos)
(Epígrafe de As Pequenas Memórias, de José Saramago)
Uma tarde, parece
de um dia qualquer, algum dia,
estavas e de repente já não mais estavas.
Somente o tempo movia dentro de ti
em uma direção que não definia,
e por alguma razão, qualquer razão,
se perdia naquilo que talvez fosse tua velhice,
mas percebias então que se retirava para tua meninice,
em algum sopro perdido daquela dia.
[…]
“Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,”
[…]
(Fernando Pessoa, Tabacaria, Poesias de Álvaro de Campos)
“Quando se está morto, sabe-se de tudo, é uma das vantagens”
(José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis)
Acabo de saber que José Saramago morreu.
Embora seja um acontecimento corriqueiro, entranhado na própria vida e no dia a dia, é sempre perturbador e comovente saber da morte de alguém, em especial se essa pessoa de algum modo é próxima e faz parte do nosso pequenino mundo.
Nos últimos tempos, depois de quase haver morrido em decorrência de um pneumonia, Saramago estava bastante debilitado fisicamente, sem aquela força vital tão comum dos portugueses e que lhe era característica. Ignorava, porém, que estava com leucemia, o que foi divulgado agora, com sua morte.
Estranha coincidência, acabei de fazer algumas críticas a Saramago no post sobre o livro Requiem, de Tabucchi. Não tenho razões para me arrepender, retirá-las ou retificá-las diante da sua inesperada (para mim) morte. Ninguém se santifica por haver morrido. Muito menos Saramago aceitaria isso.
Todavia, há de reconhecer a importância, o significado e a maestria de sua obra, a grande lacuna que deixa na literatura em geral e notadamente na de língua portuguesa, da qual era um refinado estilista.
O prêmio Nobel que recebeu foi mais do que merecido, aliás, um reconhecimento tardio e ainda insuficiente ao valor da literatura em língua portuguesa, da qual sem dúvida Saramago foi um dos maiores vultos de todos os tempos.
Concorde-se ou não com suas ideias e visão de mundo, não se pode negar que era um homem de grande coragem e sincero naquilo que defendia. Suas reflexões tinham o grande mérito de quase sempre ir contra a corrente, o consabido, o senso comum, obrigando-nos a repensar a respeito, o que me parece essencial e uma das maiores qualidades que possa ter um escritor.
Saramago sempre deixou clara a sua condição de ateu e materialista, embora a morte e a religião — sobretudo o cristianismo e a Igreja Católica Apostólica Romana — fossem seus temas constantes, quase obsessivos.
Ouvi-o dizer várias vezes que não temia a morte, antes a considerava um acontecimento natural e inescapável, que nossa cultura ocidental tem o mau hábito de fazer de conta que não existe (no que concordo inteiramente com ele). Graças a essa atitude de avestruz em que somos acostumados, confesso que já tão próximo da velhice (e, portanto, do fim da vida), ainda tenho dificuldades em lidar com a morte, dos que me são caros e da minha própria.
Pode ser que José Saramago já saiba agora se tinha ou não razão. Pena que já não possa nos dizer.
De todo modo, sua obra permanecerá, e nisso talvez consista a única forma de imortalidade.
O Dunga é fashion, nas Pílulas.
De repente, ao meio-dia de um domingo escaldante de julho, Eu se vê em pleno Cais de Alcântara, numa Lisboa deserta, à espera do seu Convidado.
Não sabe sequer como foi parar ali, pois que pouco antes estava de férias, numa Quinta do Azeitão pertencente a amigos, lendo O livro do desassossego à sombra de uma frondosa amoreira.
Como seu Convidado tarda, lembra-se então que tendo ele marcado às doze horas, bem poderia ser doze da noite, já que os fantasmas costumam aparecer à meia-noite.
Só lhe resta, então, enquanto aguarda, perambular por Lisboa, encontrando-se com vivos, mortos e outros fantasmas de suas lembranças.
Eu não sou eu, é claro (embora muitos dos lugares percorridos e visitados por Eu também o tenham sido por mim), mas o personagem e narrador de Antonio Tabucchi, no seu livro Requiem (assim mesmo, sem acento, em latim). O seu Convidado “[…] é um grande poeta, talvez o maior poeta do século vinte, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho”, conforme ele diz para si mesmo, arrependido de tê-lo chamado de “gajo”, logo no início. Fácil identificar a pessoa do poeta, de quem Tabucchi é grande admirador (assim como do nosso Carlos Drummond de Andrade) e considerado um dos maiores especialistas da atualidade.
Italiano nascido em Pisa e professor de literatura portuguesa na Universidade de Siena, Tabucchi já escreveu diversos livros em português, língua que ama e domina com extraordinário talento. Um desses livros, Os três últimos dias de Fernando Pessoa, perpetuou-lhe a antipatia da parte de José Saramago, que o acusa de lhe ter subtraído a ideia do livro O ano da morte de Ricardo Reis.
Esse tipo de coincidência temática, propositada ou casual, é muito comum na Literatura e nas Artes em geral. O livro de Saramago (um dos melhores que escreveu) me parece superior — e muito diferente — ao de Tabucchi (que se não me engano foi lançado antes), donde não ver razão alguma para o ressentimento do português, que especialmente depois de haver recebido o Nobel de Literatura tem se mostrado cada vez mais intolerante e ranzinza, sem dizer que a qualidade de sua obra vem decaindo de modo vertiginoso, o que entretanto não invalida a sua importância como grande autor e estilista.
A impressão que me fica é de que Saramago, apesar de se fazer de modesto e acolhedor, tem um ego enorme, inflado pela premiação, e passou a agir como se fosse o chefe ou o dono da literatura portuguesa, afagando os que lhe são servis ou bajuladores e atacando os que lhe fazem críticas, pensam diferente ou simplesmente obtêm sucesso, pondo em risco a sua posição de primazia ou prima-dona.
Além da notória disputa com António Lobo Antunes — cujos livros, pelos menos nos últimos tempos, estão muito acima das recentes parábolas anódinas de Saramago —, já trocou farpas com diversos outros escritores, entre os quais Miguel Sousa Tavares, que retrucou à altura as declarações de Saramago de que ele não faria a menor falta caso viesse morar no Rio de Janeiro, como havia cogitado: “Saramago já disse que, por ele, tanto faz que eu vá para o Brasil ou para Marte. E eu respondi: tanto faz ao estado português para onde ele vá, pois ele não paga imposto. Tem a Fundação José Saramago, que é isenta e ainda ocupa um prédio histórico cedido pelo estado. Admiro a escrita de Saramago. Mas, como caráter, não o respeito. Estou cansado daquele papel que ele faz de consciência da humanidade, sempre com os ombros curvados.”
Aliás, há muitos anos Saramago vive em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, Espanha, para onde se transferiu em protesto ao injustificável veto pelo governo de Portugal ao seu livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (para mim a última grande obra que escreveu), excluindo-o de uma lista de romances portugueses candidatos a um prêmio literário europeu.
Como se vê, não é sem razão que se diz não haver nada pior do que ciúme entre homens e intelectuais…
Ainda sobre o Requiem de Tabucchi, o livrinho, de pouco mais de 100 páginas, é delicioso e envolvente, traçando uma jornada onírica e sentimental por Lisboa, numa mistura engenhosa de realidade e alucinação.
Deixo com o próprio Tabucchi as palavras finais, tiradas do seu prefácio:
“Se alguém observar que este Requiem não foi executado com a solenidade que convém a um Requiem, não posso deixar de concordar. Mas a verdade é que preferi tocar a minha música não num órgão, que é um instrumento próprio das catedrais, mas numa gaita de beiços, que se pode levar no bolso, ou num realejo, que se pode levar pelas ruas. Como Drummond de Andrade, sempre gostei de música barata, e como ele dizia, não quero Haendel para meu amigo, nem ouço a matinada dos arcanjos. Basta-me o que veio da rua, sem mensagem, e, como nos perdemos, se perdeu.”
Antonio Tabucchi