— Você (ou o senhor) é o poeta Ferreira Gullar?
— Às vezes…
Assim costuma responder Ferreira Gullar aos que o interpelam.
Não se trata de mera boutade de escritor, mas de uma expressão fiel do que ele é.
O cidadão José Ribamar Ferreira, nascido em São Luís do Maranhão em 10 de setembro de 1930 (completa, pois, 80 anos em 2010), ganhou seu primeiro prêmio como poeta aos 21 anos, e aos 19 já havia publicado seu primeiro livro de poemas, Um Pouco Acima do Chão.
Embora seja antes de tudo poeta, ele sempre pairou um pouco acima da poesia, enveredando por outros campos artísticos, como participante e apoiador de novos movimentos (como o concretismo, do qual depois se afastou), grande conhecedor das artes plásticas, dramaturgo, cronista, crítico e tradutor.
— Não sou poeta 24 horas por dia. É algo que surge espontaneamente.
Tanto assim que há mais de 10 anos não lançava um novo livro de poemas, o que deverá fazer agora com Em Alguma Parte Alguma.
Sempre foi um dos meus poetas preferidos. Identifico-me muito com quase tudo que escreve, admiro sua inquietude criativa, suas experimentações e a sua coragem de romper com tendências e modismos.
Ele é assim também na política. Filiado ao Partido Comunista, fez forte oposição à ditadura militar de 1964. Preso em 1968, exilou-se por longos seis anos, de 1971 a 1977. O seu poema mais célebre, Poema Sujo, foi escrito durante o exílio em Buenos Aires, e chegou clandestinamente ao Brasil em uma fita cassete gravada e trazida por Vinicius de Moraes, com o próprio Gullar dizendo os versos. Foi tamanho o furor provocado pelo poema que Gullar, arrostando a ditadura, decidiu regressar ao Brasil e acabou sendo deixado em paz pelos milicos, que tiveram receio da repercussão negativa de qualquer medida de força contra ele.
Hoje é crítico ferrenho de Lula (o intocável) e por isso patrulhado (sim, ainda existe isso) pelos aloprados e bajuladores de plantão, que se esquecem ou nunca souberam que a marca da democracia é o confronto civilizado de ideias e concepções. Só espíritos totalitários reclamam a unanimidade burra e ovina. Para esses democracia só é boa quando não estão no “puder”.
Devem estar torcendo o nariz pelo Prêmio Camões, o principal da língua portuguesa, que Ferreira Gullar acaba de receber. E é só mais um de uma enorme lista.
A respeito de sua obra (que é o que verdadeiramente interessa), Sérgio Buarque de Hollanda, numa introdução ou prefácio à coletânea Toda Poesia (1950-1980), anota que “De Ferreira Gullar pôde escrever Vinicius de Moraes que é o último grande poeta brasileiro E é a última voz significativa da poesia, atalhou o nosso Pedro Dantas. Parece-me a mim, além disso, que, exceção feita de algumas peças de Mário de Andrade e também de Carlos Drummond de Andrade (mormente em Rosa do povo) é o nosso único poeta maior dos tempos de hoje. Mas em Gullar a voz pública não se separa em momento algum de seu toque íntimo, de seu timbre pessoal, de esperanças e desesperanças, das recordações de infância numa cidade azul, evocada no meio de triste exílio portenho”.
Colho como exemplo disso um dos seus poemas que mais me comove, não só pelo inusitado do tema e pela refinada elaboração poética, mas talvez também pelo privilégio que tive um dia de ver e ouvir o próprio poeta dizendo os versos e explicando como nasceram. Certo dia, examinando uma fotografia aérea da sua cidade natal, identificou a rua em que morava e pela data e pelo horário verificou que ele, ainda menino, deveria estar em casa ou por ali quando a chapa foi batida. O poema é longo, e o reproduzo apenas parcialmente:
Uma fotografia aérea
Eu devo ter ouvido aquela tarde
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios
as horas
do dia tropical
aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos
seus jardins
eu devo ter ouvido
aquela tarde
em meu quarto?
na sala? no terraço
ao lado do quintal?
o avião passar sobre a cidade
geograficamente
desdobrada
em si mesma
e escondida
debaixo dos telhados lá embaixo sob
as folhas
lá embaixo no escuro
do verde quente
do capim
lá
junto à noite da terra entre
formigas (minha
vida) nos cabelos
do ventre e morno
do corpo por dentro da usina
da vida
em cada corpo em cada
habitante
dentro
de cada coisa
clamando em cada casa
a cidade
sob o calor da tarde
quando o avião passou
[…]
IV
eu devo ter ouvido
ou mesmo visto
o avião como um pássaro
branco
romper o céu
veloz voando sobre as cores da ilha
num relance passar
no ângulo da janela
como um fato qualquer
eu devo ter ouvido esse avião
que às três e dez de uma tarde
há trinta anos
fotografou nossa cidade
V
meu rosto agora
sobrevoa
sem barulho
essa fotografia aérea
Aqui está
num papel
a cidade que houve
(e não me ouve)
com suas águas e seus mangues
aqui está
(no papel)
uma tarde que houve
com suas ruas e casas
uma tarde
com seus espelhos
e vozes (voadas
na poeira)
uma tarde que houve numa cidade
aqui está
no papel que (se quisermos) podemos rasgar.
Para ouvir o poema todo, dito pelo próprio Ferreira Gullar, clique aqui