Posts from junho, 2010

A morte segundo José Saramago

 

 

 

[…]

“Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,”

[…]

(Fernando Pessoa, Tabacaria, Poesias de Álvaro de Campos)

 

“Quando se está morto, sabe-se de tudo, é uma das vantagens”

(José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis)

 

 

                        Acabo de saber que José Saramago morreu.

                        Embora seja um acontecimento corriqueiro, entranhado na própria vida e no dia a dia, é sempre perturbador e comovente saber da morte de alguém, em especial se essa pessoa de algum modo é próxima e faz parte do nosso pequenino mundo.

                        Nos últimos tempos, depois de quase haver morrido em decorrência de um pneumonia, Saramago estava bastante debilitado fisicamente, sem aquela força vital tão comum dos portugueses e que lhe era característica. Ignorava, porém, que estava com leucemia, o que foi divulgado agora, com sua morte.

                        Estranha coincidência, acabei de fazer algumas críticas a Saramago no post sobre o livro Requiem, de Tabucchi. Não tenho razões para me arrepender, retirá-las ou retificá-las diante da sua inesperada (para mim) morte. Ninguém se santifica por haver morrido. Muito menos Saramago aceitaria isso.

                        Todavia,  há de reconhecer a importância, o significado e a maestria de sua obra, a grande lacuna que deixa na literatura em geral e notadamente na de língua portuguesa, da qual era um refinado estilista.

                        O prêmio Nobel que recebeu foi mais do que merecido, aliás, um reconhecimento tardio e ainda insuficiente ao valor da literatura em língua portuguesa, da qual sem dúvida Saramago foi um dos maiores vultos de todos os tempos.

                        Concorde-se ou não com suas ideias e visão de mundo, não se pode negar que era um homem de grande coragem e sincero naquilo que defendia. Suas reflexões tinham o grande mérito de quase sempre ir contra a corrente, o consabido, o senso comum, obrigando-nos a repensar a respeito, o que me parece essencial e uma das maiores qualidades que possa ter um escritor.

                        Saramago sempre deixou clara a sua condição de ateu e materialista, embora a morte e a religião — sobretudo o cristianismo e a Igreja Católica Apostólica Romana — fossem seus temas constantes, quase obsessivos.

                        Ouvi-o dizer várias vezes que não temia a morte, antes a considerava um acontecimento natural e inescapável, que nossa cultura ocidental tem o mau hábito de fazer de conta que não existe (no que concordo inteiramente com ele). Graças a essa atitude de avestruz em que somos acostumados, confesso que já tão próximo da velhice (e, portanto, do fim da vida), ainda tenho dificuldades em lidar com a morte, dos que me são caros e da minha própria.

                        Pode ser que José Saramago já saiba agora se tinha ou não razão. Pena que já não possa nos dizer.

                        De todo modo, sua obra permanecerá, e nisso talvez consista a única forma de imortalidade.