O pato pateta, nas Pílulas.
O pato pateta, nas Pílulas.
Depois de publicar o post abaixo, descobri este vídeo maravilhoso no YouTube, que inicia com Vinicius dizendo o poema Poética (I), com que enfrentou e dominou a turba de estudantes salazaristas em Lisboa, conforme relatado por José Castello, e prossegue falando sobre sua vida e sua obra, numa pequena, mas preciosa biografia.
Que falta nos fazem ele e os demais citados no final do post!
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=IcdEJtMZC44&feature=related]
“Eu, por exemplo, o capitão do mato
Vinicius de Moraes
Poeta e diplomata
O branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!”
Assim se apresenta Vinicius de Moraes numa das partes faladas do celebrado Samba da Benção, fruto da profícua parceria com Baden Powell, lançado pela dupla em 1965.
Mas já naquela época sua carreira diplomática de mais de 20 anos estava próxima de ser interrompida abrupta e arbitrariamente a mando do ditador de plantão Costa e Silva, que teria enviado uma recomendação por escrito, curta e incisiva, ao então chanceler Magalhães Pinto: “Demita-se esse vagabundo.”
Antes ainda do AI-5, decretado pelo mesmo Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, Vinicius sabia que o governo militar não suportava a sua vida binária como diplomata e artista, que ele se recusava a abandonar. Era o tempo de caça às bruxas, em que os milicos se aproveitaram para afastar, além de adversários políticos, os servidores tidos como subversivos, alcoólatras, boêmios (como era classificado Vinicius), corruptos e homossexuais.
Apersar de considerado funcionário exemplar pelo Itamaraty, Vinicius sofreu uma longa e dolorida perseguição. Ignorado e deixado sem designação para funções diplomáticas, ficou no ostracismo, até que finalmente em maio de 1969 foi-lhe comunicada a aposentadoria compulsória, sem nenhuma diplomacia, por uma carta-telegrama!
A gota d’água pode ter sido a sua reação ao próprio AI-5, de que tomou conhecimento quando se encontrava em Lisboa, realizando algumas apresentações com Baden Powell e a cantora Márcia.
Os fatos são narrados por José Castello na sua esplêndida biografia Vinicius de Moraes — O Poeta da Paixão:
“À noite, mesmo abatido, vai cumprir seu papel no teatro. Encontra a cantora Márcia, muito assustada. Ele a encara e diz: “Não fique assim. Não adianta”. O show deve terminar, como sempre, com o “Canto de Ossanha”, uma das músicas mais famosas que compôs com Baden Powell. Portugal ainda está sob o regime férreo de Marcelo Caetano. A Rádio e Televisão Portuguesa, sem poder escapar do tema “Brasil”, manda uma equipe para o teatro para fazer um tape do show. Vinicius não se intimida. Antes de começar “Canto de Ossanha”, interrompe o show: “Eu hoje gostaria de dizer a vocês umas palavras de muita tristeza”, começa. “No meu país foi instaurado, hoje, o ato institucional nº 5. Pessoas estão sendo perseguidas, assassinadas, torturadas. Por isso, quero ler um poema.” Abre um exemplar de sua Antologia poética, guardado sob a garrafa de uísque e, enquanto Baden Powell começa a dedilhar o Hino Nacional Brasileiro, lê: “A minha pátria é como se não fosse, é íntima / Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo / É minha pátria. Por isso, no exílio / Assistindo dormir meu filho / Choro de saudades de minha pátria”. Trata-se do magnífico “Pátria minha”, um dos mais belos poemas escritos por Vinicius de Moraes. A platéia se extasia diante de versos como esses: “Não te direi o nome, pátria minha / Teu nome é pátria amada, é patriazinha / Não rima com mãe gentil / Vives em mim como uma filha, que és / Uma ilha de ternura: a Ilha / Brasil, talvez”. A leitura de “Pátria minha” ficará na memória dos portugueses como uma das mais bem-acabadas expressões que puderam conhecer do amor à liberdade. Na noite seguinte à Revolução dos Cravos, alguns anos depois, a Rádio e Televisão Portuguesa, tomada pela euforia, retirará o tape de seus arquivos e o reprisará.”
[…]
“À saída do hotel, ainda por cima, tem que enfrentar uma pequena, mas barulhenta, manifestação de salazaristas indignados com seus discursos contra os horrores da ditadura. Os manifestantes fecham a saída dos fundos do teatro. Vinicius chega à porta e os encara. Alguém lhe sussurra o óbvio: “Vamos voltar e sair por um outro lado”. O poeta responde em tom seco: “Não”. Fica em silêncio mais algum tempo e depois, erguendo a voz e ainda encarando o pequeno grupo de direitistas, começa a recitar: “De manhã escureço / De dia tardo / De tarde anoiteço / De noite ardo”. São os versos de seu primoroso “Poética (I)”, pequena jóia que escreveu no distante ano de 1950, em Nova York. Vai prosseguir, quando um sotaque brasileiro, escondido por detrás dos manifestantes — estudantes muito jovens e enraivecidos, a esta altura tontos com sua reação —, prossegue: “A oeste a morte / Contra quem vivo / Do sul cativo / O este é meu norte”. Aquele estudante brasileiro, solitário em sua revolta, o salva. Os jovens salazaristas portugueses cedem à força da poesia. Os manifestantes, agora, já não conseguem mais gritar. Um ou outro tenta ainda emitir uma palavra de ordem sem sentido, mas a maioria silencia para ouvi-lo terminar: “Outros que contem / Passo por passo: / Eu morro ontem / Nasço amanhã”. E elevando a voz ao máximo, Vinicius conclui: “Ando onde há espaço / — Meu tempo é quando”. Um primeiro rapaz, mais corajoso, tira o casaco e o lança no chão, diante do poeta. Outros, logo, o imitam. Vinicius sai de cabeça erguida — e coração estraçalhado — sobre aquele tapete de paletós e sobretudos. Os estudantes reacionários e o poeta revoltado, agora, estão igualados pela poesia.”
Esse é o homem, poeta e diplomata que os militares e seus acólitos não podiam suportar e escorraçaram do Itamaraty.
Deixou a carreira diplomática amargurado, mas se tornou embaixador da poesia, da música brasileira, da celebração da vida, do amor, da gentileza e da ternura, peregrinando por todo o Brasil e pelo exterior para levar o seu canto, e sobreviver (enfrentava com frequência dificuldades financeiras.). Dele, diria o introvertido e gauche Carlos Drummond de Andrade mais tarde: “Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural’, confessando ainda: “Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”.
Trinta anos depois sua morte, e mais de quarenta da sua aposentadoria compulsória, o diplomata Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes (que trocou seu pomposo nome tão ao gosto do Itamaraty para Vinicius de Moraes ou simplesmente “poetinha”) acaba de ser reintegrado e promovido ao cargo de ministro de primeira classe ou embaixador.
É conhecido o episódio do primeiro encontro entre Vinicius e Tom Jobim, no bar Villariño, intermediado por Lúcio Rangel. Eles próprios o contavam, às gargalhadas diversas vezes.
Tom vivia na pindaíba, trabalhando como um louco como arranjador e tocando na noite para cumprir suas obrigações de jovem chefe de família, com o primeiro filho a caminho. Quando Vinicius lhe fez a proposta para musicar a peça “Orfeu da Conceição”, sua versão da epopeia de Orfeu para a realidade dos morros cariocas, Tom logo perguntou, para desespero de Lúcio Rangel: “Tem um dinheirinho nisso?”
Talvez ao saber de sua promoção póstuma a embaixador, Vinicius repita essa pergunta de Tom, ao lado deste, Baden, Bandeira, Drummond, João Cabral, Mário de Andrade, Pixinguinha, Caymmi, Cyro Monteiro, Rubem Braga, Jayme Ovalle, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Sérgio Porto, Antonio Maria, Villa-Lobos, Portinari, Di Cavalcanti e tantos outros amigos, enquanto roda com o dedo as pedras de gelo do copo em que beberica seu cachorro engarrafado.
O perigo mora ao lado, nas Pílulas.
Sempre me pareceram profundamente ingênuas, de uma ingenuidade que beira o patético, quando não se trata de mera exploração da boa-fé alheia por parte dos organizadores, essas campanhas ditas cívicas ou de conscientização social, do tipo “Sou da paz”, “Chega de violência”, “Basta de corrupção”, “Não à baixaria”, abraços coletivos a logradouros, caminhadas em prol de alguma coisa ou causa.
Creio mesmo que a maioria dos participantes esteja imbuída das melhores intenções, mas, como se diz, o inferno está calçado de boas intenções.
Trata-se de convencer os convencidos, de converter os convertidos. Ou alguém imagina que com tais apelos os criminosos, os corruptos, os violentos, os poluidores serão tocados nos seus corações e, prostrados aos pés do altar da Pátria, se redimirão?
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) acabam de lançar uma dessas campanhas redentoras e educativas: “Não vendo o meu voto”.
Segundo o presidente do TSE, Ricardo Lewandowski, cerca de 6 mil juízes devem participar da campanha. Ele afirmou que a intenção é mostrar para a população a importância da democracia e de conhecer os candidatos em quem pretende votar: “É importante que o eleitor vote conscientemente.”
Pois eu digo o contrário: venda o seu voto, e venda bem caro!
O voto é um direito subjetivo e político do eleitor, que pode fazer dele o que bem entender. E cá entre nós, não é atribuição dos juízes (nem de autoridade alguma) tutelar os eleitores ou lhes ministrar lições de democracia. Bem fariam se dessem o exemplo cumprindo seus altos deveres funcionais sem delongas e se empenhando na melhoria da eficiência do aparelhamento judiciário, que há muito opera abaixo da crítica.
Quem vota por ideologia, vende o seu voto à ideologia. Quem vota no programa de um partido, em determinado candidato que considera capacitado, no amigo, no padrinho ou no parente, idem.
Aliás, os candidatos se apresentam a nós da mesma forma que as campanhas publicitárias nos oferecem sabonetes, cervejas ou remédios miraculosos, e a Justiça Eleitoral, além de nada fazer a respeito, ainda proíbe que sejam criticados ou ridicularizados publicamente.
Constitui uma impostura supor que nós outros, debaixo do nosso teto sem goteiras ou da nossa toga vistosa, sentados à mesa farta, na sala refrigerada, com os filhos em boas escolas, a assistência médica assegurada por plano de saúde particular, locomovendo-nos de um lado para o outro no nosso carro do ano, em veículos oficiais ou de avião, sabemos votar conscientemente, ao passo que o povão, no seu barraco de zinco, sem eira nem beira, faminto, desempregado, desdentado, debaixo do sol nas filas de ônibus ou do SUS, sempre é capaz de vender o seu voto, por uma casinha da Cohab, por algumas cestas básicas, por um emprego, uma dentadura, uma consulta ou cirurgia urgente, um par de óculos, uma bolsa família ou o que valha.
Se o fizer, fará muito bem, e o seu voto terá tanto valor e significado quanto o nosso. Esse o princípio da democracia representativa, que representa o que somos.
De minha parte, declaro com todas as letras que meu voto está à venda para quem der mais.
Por enquanto, os candidatos a presidente, deputado e senador têm oferecido muito pouco.
Até hoje nunca deixei de votar em alguém (a maioria das vezes no menos ruim, e quase sempre me estrepei). Mas como o voto é só meu, dou ou vendo a quem me apetecer ou ofertar mais.
Se nenhum o fizer até o dia da eleição, como um louco que rasga dinheiro, rasgarei meu voto, anulando-o ou votando em branco. Esse é o único jeito de não vender meu voto e assim me tornar um cidadão consciente, engajado na campanha do TSE e da AMB.
Veja nas Pílulas duas perguntinhas indiscretas para o Dunga.
Se estivesse vivo, João Rubinato completaria hoje 100 anos.
Morto, é a prova viva de que a profecia de Vinicius de Moraes — que perdia o amigo, mas não perdia a piada — era mesmo só uma lorota: São Paulo não é, nem jamais foi o túmulo do samba.
João Rubinato não é nome de sambista. Então ele pegou o nome de um amigo e o sobrenome de outro e criou o personagem Adoniran Barbosa (em que de fato acabou se transformando), cujo tipo físico, de chapéu, paletó, gravatinha borboleta e a voz roufenha foi inspirado em outro personagem cômico que ele encarnava com muito sucesso, o Charutinho.
Como todo gênio, criou uma língua própria para expressar o sentimento da sua gente e o seu universo, um misto de italianês com paulistanês, com uma sintaxe peculiar e adorável, e expressões inefáveis: “tiro ao álvaro”, “a situação aqui tá muito cínica”, “nóis viemo aqui pra beber ou pra conversar?”, “torresmo à milanesa”, entre tantas outras. Com relação a esta última, da canção do mesmo nome em parceria com Carlinhos Vergueiro, este lhe indagou se existia tal iguaria, ao que lhe respondeu que nunca tinha visto nem comido, mas que devia ser muito gostoso, além do quê rimava com Tereza…
O enxadão da obra bateu onze hora
Vam s’embora, João!
Vam s’embora, João!
O enxadão da obra bateu onze hora
Vam s’embora, João!
Vam s’embora, João!
Que é que você troxe na marmita, Dito?
Troxe ovo frito, troxe ovo frito
E você beleza, o que é que você troxe?
Arroz com feijão e um torresmo à milanesa,
Da minha Tereza!
Vamos armoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada
Depois, puxá uma páia
Andar um pouco
Pra fazer o quilo
É dureza João!
É dureza João!
É dureza João!
É dureza João!
O mestre falou
Que hoje não tem vale não
Ele se esqueceu
Que lá em casa não sou só eu
Como dizia Manuel Bandeira, na sua antológica Evocação ao Recife:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada.
Adoniran não teve educação formal, mas sabia o que fazia, tinha cultura e conhecia a chamada norma culta, que utilizava quando entendia necessário. Uma prova disso é a sua parceria inusitada com Vinicius de Moraes, que antes o havia criticado por estropiar a língua portuguesa. Consta que Vinicius apenas teria esboçado a melodia e os versos, trabalhados e completados por Adoniran, do samba-canção Bom-dia, Tristeza, inspirado no romance de estreia de Françoise Sangan, Bonjour Tristesse, que se tornou símbolo da juventude desiludida da França em 1954, e foi adaptado para o cinema em 1958 com David Niven e Deborah Kerr, direção de Otto Preminger.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=AU02ib4ur5U&feature=player_embedded#]
Além dos vários clássicos, Trem das Onze, Saudosa Maloca, Samba do Arnesto, quem mais teria a ousadia de fazer um impagável Samba Italiano?
Falado:
“Gioconda, pitina mia,
Vai brincar alí no mareí no fundo,
Mas atencione co os tubarone, ouvisto
Capito meu san benedito”.
Piove, piove,
Fa tempo que piove qua, Gigi,
E io, sempre io,
Sotto la tua finestra
E vuoi senza me sentire
Ridere, ridere, ridere
Di questo infelice qui
Ti ricordi, Gioconda,
Di quella sera in Guarujá
Quando il mare ti portava via
E me chiamaste
Aiuto, Marcello!
La tua gioconda ha paura di quest’onda
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=Gkd-d_n3yfo]
Juntamente com Paulo Vanzolini e Germano Mathias (outro sambista excepcional, quase esquecido) — ambos felizmente ainda vivos — retratam o universo da verdadeira boemia paulistana, com seus malandros e mulheres, desvalidos e trabalhadores, sonhadores e desesperançados.
Há um excelente artigo de Fernando de Barros e Silva na edição de hoje da Folha de S. Paulo, sobre Adoniran (Saudoso Adoniran, Opinião, A2).
Para aqueles que acessam este blog, e para mim mesmo, deixo aqui de presente um breve trecho do programa Radiola da TV Cultura, em que o próprio Adoniran fala de si.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=idfXlzqUbIc&feature=player_embedded]
Teus olhos oblíquos e ubíquos
obnubilam a todos que ousam lê-los
e nunca mais deixarão de vê-los
sem obliteração aonde vão.
Olhos dissimulados, de ressaca,
sortilégios de um velho bruxo casmurro
que se esquiva, desguia, vira a página
e nos conduz para a armadilha
dos teus olhos capciosos
que como arautos mudos
capturam os bentos e malditos
os precatados e incautos
a lhes prenunciar o mundo
que se descortina além-retina.
Muito barulho por nada, nas Pílulas.