Posts from agosto, 2010

O Senhor Embaixador

 

 

 

 

                                   “Eu, por exemplo, o capitão do mato

                                   Vinicius de Moraes

                                   Poeta e diplomata

                                   O branco mais preto do Brasil

                                   Na linha direta de Xangô, saravá!”

 

 

                        Assim se apresenta Vinicius de Moraes numa das partes faladas do celebrado Samba da Benção, fruto da profícua parceria com Baden Powell, lançado pela dupla em 1965.

                        Mas já naquela época sua carreira diplomática de mais de 20 anos estava próxima de ser interrompida abrupta e arbitrariamente a mando do ditador de plantão Costa e Silva, que teria enviado uma recomendação por escrito, curta e incisiva, ao então chanceler Magalhães Pinto: “Demita-se esse vagabundo.”

                       

Antes ainda do AI-5, decretado pelo mesmo Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, Vinicius sabia que o governo militar não suportava a sua vida binária como diplomata e artista, que ele se recusava a abandonar. Era o tempo de caça às bruxas, em que os milicos se aproveitaram para afastar, além de adversários políticos, os servidores tidos como subversivos, alcoólatras, boêmios (como era classificado Vinicius), corruptos e homossexuais.

 

 

                        Apersar de considerado funcionário exemplar pelo Itamaraty, Vinicius sofreu uma longa e dolorida perseguição. Ignorado e deixado sem designação para funções diplomáticas, ficou no ostracismo, até que finalmente em maio de 1969 foi-lhe comunicada a aposentadoria compulsória, sem nenhuma diplomacia, por uma carta-telegrama!

                        A gota d’água pode ter sido a sua reação ao próprio AI-5, de que tomou conhecimento quando se encontrava em Lisboa, realizando algumas apresentações com Baden Powell e a cantora Márcia.

                        Os fatos são narrados por José Castello na sua esplêndida biografia Vinicius de Moraes — O Poeta da Paixão:

 

“À noite, mesmo abatido, vai cumprir seu papel no teatro. Encontra a cantora Márcia, muito assustada. Ele a encara e diz: “Não fique assim. Não adianta”. O show deve terminar, como sempre, com o “Canto de Ossanha”, uma das músicas mais famosas que compôs com Baden Powell. Portugal ainda está sob o regime férreo de Marcelo Caetano. A Rádio e Televisão Portuguesa, sem poder escapar do tema “Brasil”, manda uma equipe para o teatro para fazer um tape do show. Vinicius não se intimida. Antes de começar “Canto de Ossanha”, interrompe o show: “Eu hoje gostaria de dizer a vocês umas palavras de muita tristeza”, começa. “No meu país foi instaurado, hoje, o ato institucional nº 5. Pessoas estão sendo perseguidas, assassinadas, torturadas. Por isso, quero ler um poema.” Abre um exemplar de sua Antologia poética, guardado sob a garrafa de uísque e, enquanto Baden Powell começa a dedilhar o Hino Nacional Brasileiro, lê: “A minha pátria é como se não fosse, é íntima / Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo / É minha pátria. Por isso, no exílio / Assistindo dormir meu filho / Choro de saudades de minha pátria”. Trata-se do magnífico “Pátria minha”, um dos mais belos poemas escritos por Vinicius de Moraes. A platéia se extasia diante de versos como esses: “Não te direi o nome, pátria minha / Teu nome é pátria amada, é patriazinha / Não rima com mãe gentil / Vives em mim como uma filha, que és / Uma ilha de ternura: a Ilha / Brasil, talvez”. A leitura de “Pátria minha” ficará na memória dos portugueses como uma das mais bem-acabadas expressões que puderam conhecer do amor à liberdade. Na noite seguinte à Revolução dos Cravos, alguns anos depois, a Rádio e Televisão Portuguesa, tomada pela euforia, retirará o tape de seus arquivos e o reprisará.”

[…]

“À saída do hotel, ainda por cima, tem que enfrentar uma pequena, mas barulhenta, manifestação de salazaristas indignados com seus discursos contra os horrores da ditadura. Os manifestantes fecham a saída dos fundos do teatro. Vinicius chega à porta e os encara. Alguém lhe sussurra o óbvio: “Vamos voltar e sair por um outro lado”. O poeta responde em tom seco: “Não”. Fica em silêncio mais algum tempo e depois, erguendo a voz e ainda encarando o pequeno grupo de direitistas, começa a recitar: “De manhã escureço / De dia tardo / De tarde anoiteço / De noite ardo”. São os versos de seu primoroso “Poética (I)”, pequena jóia que escreveu no distante ano de 1950, em Nova York. Vai prosseguir, quando um sotaque brasileiro, escondido por detrás dos manifestantes — estudantes muito jovens e enraivecidos, a esta altura tontos com sua reação —, prossegue: “A oeste a morte / Contra quem vivo / Do sul cativo / O este é meu norte”. Aquele estudante brasileiro, solitário em sua revolta, o salva. Os jovens salazaristas portugueses cedem à força da poesia. Os manifestantes, agora, já não conseguem mais gritar. Um ou outro tenta ainda emitir uma palavra de ordem sem sentido, mas a maioria silencia para ouvi-lo terminar: “Outros que contem / Passo por passo: / Eu morro ontem / Nasço amanhã”. E elevando a voz ao máximo, Vinicius conclui: “Ando onde há espaço / — Meu tempo é quando”. Um primeiro rapaz, mais corajoso, tira o casaco e o lança no chão, diante do poeta. Outros, logo, o imitam. Vinicius sai de cabeça erguida — e coração estraçalhado — sobre aquele tapete de paletós e sobretudos. Os estudantes reacionários e o poeta revoltado, agora, estão igualados pela poesia.”

 

                        Esse é o homem, poeta e diplomata que os militares e seus acólitos não podiam suportar e escorraçaram do Itamaraty.

                        Deixou a carreira diplomática amargurado, mas se tornou embaixador da poesia, da música brasileira, da celebração da vida, do amor, da gentileza e da ternura, peregrinando por todo o Brasil e pelo exterior para levar o seu canto, e sobreviver (enfrentava com frequência dificuldades financeiras.). Dele, diria o introvertido e gauche Carlos Drummond de Andrade mais tarde: “Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural’, confessando ainda: “Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”.

                        Trinta anos depois sua morte, e mais de quarenta da sua aposentadoria compulsória, o diplomata Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes (que trocou seu pomposo nome tão ao gosto do Itamaraty para Vinicius de Moraes ou simplesmente “poetinha”) acaba de ser reintegrado e promovido ao cargo de ministro de primeira classe ou embaixador.

                        É conhecido o episódio do primeiro encontro entre Vinicius e Tom Jobim, no bar Villariño, intermediado por Lúcio Rangel. Eles próprios o contavam, às gargalhadas diversas vezes.

                        Tom vivia na pindaíba, trabalhando como um louco como arranjador e tocando na noite para cumprir suas obrigações de jovem chefe de família, com o primeiro filho a caminho. Quando Vinicius lhe fez a proposta para musicar a peça “Orfeu da Conceição”, sua versão da epopeia de Orfeu para a realidade dos morros cariocas, Tom logo perguntou, para desespero de Lúcio Rangel: “Tem um dinheirinho nisso?”

 

                        Talvez ao saber de sua promoção póstuma a embaixador, Vinicius repita essa pergunta de Tom, ao lado deste, Baden, Bandeira, Drummond, João Cabral, Mário de Andrade, Pixinguinha, Caymmi, Cyro Monteiro, Rubem Braga, Jayme Ovalle, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Sérgio Porto, Antonio Maria, Villa-Lobos, Portinari, Di Cavalcanti e tantos outros amigos, enquanto roda com o dedo as pedras de gelo do copo em que beberica seu cachorro engarrafado.