Posts from setembro, 2010

O moço Vandré (e outros moços)

 

 

 

                        Assisti à reprodução da entrevista de Geneton com Vandré, desta vez junto com a querida  Delucena que já naquela época era minha amada e companheira, e nos emocionamos às lágrimas ao recordar de como ele era, como éramos nós, e do tempo efervescente dos festivais (embora, como o próprio Vandré dizia, a vida não se resumisse a festivais…).

                        Ando acabrunhado esta semana pelo impacto que me causou a entrevista e a triste figura quixotesca de Vandré.

                        O comentário da Sonia ao post anterior é um depoimento valioso sobre os encantos do moço Vandré, a quem ela teve o privilégio de conhecer pessoalmente.

                        Quando me sinto assim, a autoterapia que me aplico é levar a nostalgia ao paroxismo, para que ela então comece a abrandar.

                        Assim, andei pesquisando no You Tube vídeos com apresentações de Vandré, que são raríssimos. Creio que boa parte deva ter sido destruída pelos incêndios da Record, não a do Bispo Macedo, mas a grande e heroica Record da família Machado de Carvalho. Aliás, Paulo Machado de Carvalho Filho morreu neste mês e no blog do Roberto Rockmann, Tudo e Nada, há uma série de posts excelentes sobre ele e a velha Record.

                        Encontrei no You Tube essa verdadeira joia, um fragmento de Geraldo Vandré cantando ao vivo Aroeira, acompanhado do Trio Maraiá e do Quarteto Novo, no que me parece ser um dos inesquecíveis Shows do Dia 7.

                        Além da força da apresentação de Vandré, notem à esquerda dele (no lado direito da tela) uma cabeçorra com o cabelo curtinho, que de vez em quando aparece, integrando o Quarteto Novo. Trata-se nada mais nada menos do que o mestre Hermeto Pascoal, bem jovem, no início de carreira. Ele aparece pela primeira vez quando Vandré  entoa o refrão (“Marinheiro, marinheiro, quero ver você no mar, eu também sou marinheiro, eu também sei governar…”). Pouco antes passa ao fundo um sujeito completamente alheio ao que acontece, entornando um copo (não posso ter certeza, mas creio que seja Ricardo Corte Real, quase menino, que trabalhava na Família Trapo). Hermeto volta a aparecer outras vezes, fugazmente.

                        É um verdadeiro documento histórico!

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=HDlo8NE0nCk&feature=related] 

 

 

 

 

 

O Exílio e o Reino

                                                                                                                                                                                                                                                           

                                                                                                                                                                                                                                                           

                                                                                                                                                                                                                                                           

“O problema é que você quer falar com Geraldo Vandré. E Geraldo Vandré não existe mais, foi um pseudônimo que usei até 1968.”

                                                                                                                                                                                                                                                                                       

                                                                                                                                                                                                                                                                                     

                        Geneton Moraes Neto não é só um excelente jornalista, mas também um portentoso entrevistador. Teriam muito a aprender com ele os tão badalados Jô Soares (que sempre entrevista a si próprio) e Marília Gabriela (que só faz levantar a bola para os entrevistados e rasgar seda com eles).

                        A série Dossiê Globo News realizada por Geneton Moraes Neto é um primor de jornalismo não propriamente investigativo, mas retrospectivo, que tem proporcionado momentos reveladores e inusitados com os mais variados personagens da história recente do Brasil. Aliás, o livro Dossiê Drummond, considerado por Paulo Francis como a melhor entrevista feita com o poeta, é uma verdadeira preciosidade, em especial a 2ª edição, revista e ampliada, com um posfácio sobre os vinte anos que se passaram desde a morte de Drummond.

                        No último sábado, Geneton colheu um depoimento inédito, ao mesmo tempo comovente e intrigante do sumido Geraldo Vandré.

                        Autor canções magníficas, fincadas nas raízes das nossas tradições populares (Disparada, Aruanda, Pequeno Concerto que virou Canção, Quem quiser encontrar o amor, Canção Nordestina, Porta-Estandarte, Fica Mal com Deus, Menino das Laranjas, Aroeira, Tristeza de Amar, para lembrar apenas algumas) incendiou, aparentemente sem que tivesse tal intenção, as eliminatórias do III FIC da TV Globo, em 1968, com Pra não dizer que não falei das flores ou Caminhando que, ao contrário do desejo do público, classificou-se em segundo lugar, perdendo para a maravilhosa “Sabiá” de Tom Jobim e Chico Buarque. O próprio Vandré se encarregou na ocasião de defender com veemência Tom e Chico dos protestos da plateia: “[…] Pra vocês que continuam pensando que me apoiam, vaiando… […] A vida não se resume em festivais…”.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

 [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=onbRuVLPDmI]

                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

                        De todo modo, Pra não dizer que não falei das flores tornou-se uma espécie de hino estudantil e libertário, mesmo (ou principalmente) depois de proibida pela censura, e custou a Vandré, ainda no ano de 1968, a costumeira perseguição por parte da ditadura militar, que culminou com a demissão do cargo público que ocupava na antiga Sunab. Antes de que fosse preso, e depois de passar algum tempo escondido na fazenda da viúva de Guimarães Rosa, Vandré se exilou, indo primeiramente para o Chile e depois peregrinando por França, Argélia, Alemanha, Áustria, Grécia e Bulgária.

                        O retorno ao Brasil em 1973 se deu em circunstâncias obscuras e até hoje não esclarecidas. A sua chegada oficial  consta ter sido em Brasília no mês de agosto, quando declarou ao Jornal Nacional que doravante só pretendia fazer canções de amor e paz.

                        Sabe-se, porém, que Vandré teria regressado de fato no mês de junho, sendo conduzido imediatamente ao comando do I Exército, no Rio de Janeiro, que condicionou sua permanência no país à gravação de um depoimento (atualmente desaparecido) em que negava que fosse antimilitarista e que tivesse sido preso e torturado. Depois disso, jamais voltou a se apresentar em um palco brasileiro, mergulhando na reclusão em que se acha até hoje.

                                             O homem amargurado de 75 anos que concedeu a entrevista a Geneton — nas dependências do Clube da Aeronáutica e vestindo uma camisa com o símbolo da Força Aérea Brasileira — é um pálido e patético fantasma do jovem de cabelos negros, impetuoso, apaixonado e apaixonante. Mas talvez todos sejamos algum dia um fantasma de nós mesmos.

                        O olhar quase sempre longíquo, perdido, melancólico, em breves momentos torna-se febril, delirante. Assim também o discurso, por vezes desconexo e incoerente com o passado, tem lampejos do inconformismo de ontem — hoje acomodado ou sufocado — quando, por exemplo, reclama de ter sido anistiado como se se tratasse de um criminoso, afirma que não lhe interessa a cultura de massa vigente ou que conseguiu se tornar mais inútil do que qualquer artista ao ser um advogado num tempo sem lei.

                        Com a mesma voz grave e forte de antes diz os belos e pungentes versos de uma canção quase desconhecida com que venceu um festival no Peru, ainda no exílio, Pátria Amada Idolatrada, Salve, Salve, para em seguida declamar a letra ufanista e piegas da valsa Fabiana, composta “em honra da Força Aérea Brasileira”:  “Que só tu sabes do meu querer silente,/ Porque só tu soubeste, enquanto infante,/ Das luzes do luzir mais reluzente,/ Pertencer ao meu ser mais permanente./ Vive em tuas asas, todo o meu viver;/ Meu Sonhar marinho, todo amanhecer.”

                        Muitos dizem que Vandré passou por uma lavagem cerebral ou enlouqueceu com as torturas que lhe foram infligidas, desenvolvendo uma espécie de Síndrome de Estocolmo em relação aos militares. Luis Nassif, que além da economia é um grande conhecedor e amante da música, a ele se referiu como “solitário e desconexo”, “triste como a própria solidão na qual se meteu”

                        Ao término do seu dossiê sobre Geraldo Vandré, enquanto este se afasta lentamente e sobe as escadas rumo ao seu quarto no hotel da Academia da Força Aérea, Geneton Moraes Neto (pela voz em off de Sérgio Chapelin) o define como o único habitante do país que criou para si.

                        A mim me veio à lembrança o título de um livro de contos de Camus, O Exílio e o Reino, que tem como tema a costurar as narrativas o exílio, literal ou metafórico, dos diversos personagens e a vã tentativa de se adaptar a um mundo hostil, em que todos se sentem de algum modo estrangeiro.

                        Assim me pareceu Geraldo Vandré: um exilado de si mesmo.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

 

 

                        Nas Pílulas, o Boca do Inferno, que se achava recolhido em silêncio obsequioso, não aguentou e está de volta em defesa de Neymar.

 

Soneto sedicioso

 

 

 

                                    Deixe de ser comportado,

                                    caloroso e cordato.

                                    Por que ser obediente,

                                    conveniente, conivente?

 

 

                                    Abaixo com toda a lógica,

                                    convincente, categórica

                                    Abaixo com o quadrado,

                                    caprichoso, caducado.

 

 

                                    Basta de ficar na fila

                                    manter-se sempre na linha

                                    e ser um filho da pauta.

 

 

                                    Folgue em fugir da labuta

                                    abandonar a ribalta

                                    e ser um filho da puta.

 

 

 

                                   

A ceia dos cardeais

 

 

 

 

                        Desde pequenino o guapo rapaz tinha adoração pelo circo.

                        Ainda moleque engraxate, tão logo um circo chegasse, tratava de se oferecer para carregar cartazes e participar da passeata de apresentação pelas ruas da pequena cidade mineira, servindo também de escada para as troças do palhaço.

                        Graças a isso, fazia jus a um sinal de tinta gravado na testa ou no braço — que zelava para não se apagar —, que lhe permitia o ingresso livre nas sessões.

                        Muitos anos depois, já maduro e bem posto na vida, não perdia nenhuma apresentação circense, e fazia questão de pagar o ingresso dos meninos pobres pegos enquanto tentavam furar a lona do circo, como ele fizera algumas vezes.

                        Antes disso, porém, o moço bonito, amorenado, de basta cabeleira negra (ninguém diria que ficaria calvo por volta dos 40 anos), sobrancelhas grossas, olhos tristonhos e sonhadores, encantou-se por uma atriz mais velha do que ele, integrante da trupe de um circo teatro que se apresentou durante várias semanas na cidade.

                        Quando o circo partiu, ele foi junto, vivendo sua paixão. Com o seu belo porte, inteligência, simpatia — e uma boa ajuda da namorada —, logo passou a integrar o elenco do circo, do qual chegou a ser o galã principal.

                        Durante algum tempo mambembou com a companhia, encenando dramas, comédias e até mesmo a Paixão de Cristo, para a qual deixava crescer a barba cerrada de árabe.

                        Gostava de contar essas aventuras ao seu primeiro e querido neto que o escutava com toda a atenção, pedindo-lhe detalhes e até mesmo o corrigindo quando alterava um pouco os fatos já narrados anteriormente.

                        Foi assim que o neto soube de uma peça que encenara diversas vezes no circo e era uma de suas prediletas: A ceia dos cardeais.

                        Ele havia interpretado o Cardeal Gonzaga e ainda se lembrava quase por inteiro da sua fala principal, no fecho da peça, que dizia (recorrendo algumas vezes ao livro com o texto integral) para o neto embevecido, que lhe dava as deixas dos outros dois Cardeais:

 

CARDEAL RUFO, acercando-se também do CARDEAL GONZAGA:

— Em que pensa, cardeal?

CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios de brilho, a expressão transfigurada:

— Em como é diferente o amor em Portugal!

Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento… 

é o amor coração, é o amor sentimento. 

Uma lágrima… Um beijo… Uns sinos a tocar… 

Uma parzinho que ajoelha e que vai se casar. 

Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora: 

Em sendo triste canta, em sendo alegre chora! 

O amor simplicidade, o amor delicadeza… 

Ai, como sabe amar, a gente portuguesa! 

Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade, 

Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade, 

Numa ternura casta e numa estima sã, 

Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã… 

Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas, 

Como se em comunhão se entendessem as rosas, 

Como se todo o amor fosse um amor sòmente… 

Ai, como é diferente! Ai, como é diferente! 

CARDEAL RUFO:

— Também vossa Eminência amou?

CARDEAL GONZAGA:

— Também! Também!

Pode-se lá viver sem ter amado alguém!

Sem sentir dentro d’alma — ah, podê-la sentir!

Uma saudade em flor, a chorar e a rir! 

Se amei! Se amei! Eu tinha uns quinze anos, apenas.

Ela, treze. Um amor de crianças pequenas,

Pombas brancas revoando ao abrir da manhã…

Era minha priminha. Era quase uma irmã. 

Bonita não seria… Ah, não… Talvez não fosse.

Mas que profunda olhar e que expressão tão doce! 

Chamava-lhe eu, a rir, a minha mulherzinha… 

Nós brincávamos tanto! Eu sentia-a tão minha!

Toda a gente dizia em pleno povoado:

“Não há noiva melhor para o senhor morgado,

Nem em capela antiga há santa mais santinha…” 

E eu rezava, baixinho: “É minha! É minha! É minha!”

Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar,

Ficávamos a olhar um para o outro, a olhar,

Todos cheios de Sol, ofegantes ainda… 

Numa grande expressão de dor: 

— Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda… 

E, uma noite, a minha alma, a minha luz, morreu!

Numa revolta angustiosa:

— Deus, se ma quis tirar, p’ra  que foi que ma deu? 

Para quê? Para quê?

CARDEAL DE MONTMORENCY, ao vê-lo erguer-se, amparando-o:

— Oh! Eminência… 

CARDEAL RUFO, curvando-se também para o amparar,  comovido:

— Então…

CARDEAL GONZAGA

— Ai! Pois não via, Deus, que eu tinha coração!

CARDEAL RUFO 

— Eminência…

CARDEAL GONZAGA, caindo sobre a cadeira, a soluçar 

— Não via! Ah!, não via! Não via! 

Julgou que de um amor outro amor refloria, 

E matou-me… E matou-me!

CARDEAL DE MONTMORENCY:

— Eminência…

CARDEAL GONZAGA:

— Afinal,

Foi esse anjo, ao morrer, que me fez cardeal! 

E eu hoje sirvo a Deus, — a Deus, que ma levou…

CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY, limpando uma lágrima furtiva, enquanto as onze horas soam no Vaticano:

— Foi ele, de nós três, o único que amou.

Cai o pano lentamente.

 

                       

A Ceia dos Cardeais foi escrita por Júlio Dantas, médico, jornalista político, poeta, diplomata e dramaturgo português, nascido no ano 1876, em Lagos, Algarve, e morto em 1962, em Lisboa.

É uma peça em verso e apenas um ato, que fez parte do repertório de muitos dos grandes teatros da Europa, Brasil e América espanhola. Foi representada pela primeira vez em 24 de Março de 1902 no antigo teatro D. Amélia, atual teatro São Luiz.

 

                        Traduzida em mais de 50 idiomas, foi encenada inúmeras vezes no Brasil, em uma delas tendo Raul Cortez como um dos personagens.

                        A ação transcorre no Vaticano, durante o pontificado de Bento XIV, no século XVIII.

                        Três cardeais — Cardeal Gonzaga, português, bispo de Albano e Carmelengo; Cardeal Rufo, espanhol, arcebispo de Óstia e deão do Sacro Colégio; e o Cardeal de Montmorency, francês, bispo de Palestrina — combinam uma ceia no Vaticano, durante a qual discutem o sentido da vida, o seu ciclo e o que aconteceu nas suas infâncias e juventudes, tal como sucede no filme Juventude de Domingos de Oliveira.

                        Quem contou foi o neto ouvinte do Cardeal Gonzaga circense.

 

 

 

Juventude

 

 

 

 

                        Os feriadões são uma institucional nacional, como a jabuticaba. Esperados com avidez, como a temporada dos frutos da jabuticabeira, quando despontam são saboreados gostosamente, e no final sempre deixam um gostinho de quero mais.

                        Menino, adorava subir nos pés de jabuticaba cultivados nos quintais das casas de meus avós, paternos e maternos, e chupar a fruta ali mesmo, com o doce sabor da aventura. Quando não era época de jabuticaba, os galhos das árvores forneciam excelentes forquilhas para a confecção de estilingue.

                        Na juventude, invariavelmente os feriadões eram fruídos em viagens com a turma de amigos, perto ou longe, para a praia ou a montanha, cidade ou campo. Inadmissível ficar em casa.

                        Agora, pelo contrário, o que me apraz é justamente ficar em casa e fazer o que mais gosto, ler, ouvir música, assistir a filmes, conversar calmamente tomando uma bebida, sem os compromissos e as obrigações do dia a dia. Fujo do rebuliço, dos congestionamentos, dos lugares lotados, da barulheira. Passeio-me pela cidade vazia, que me revela os seus encantos ocultados, como a mulher que se despe para o amante.

                        Será esse mais um sinal de que a juventude já não passa de uma doce recordação, como as jabuticabas que há tanto tempo não saboreio?

                        Nesse último feriadão, sem a angústia da segunda-feira que sempre me assoma nas noites de domingo, assisti placidamente a um filme de Domingos de Oliveira, exibido pelo Canal Brasil.

                        Ainda não havia visto Juventude (nem mesmo sei se chegou a entrar no circuito regular), lançado em 2008 e ganhador de quatro Kikitos da mostra competitiva de longas metragens do 36º Festival de Cinema de Gramado: melhor diretor e melhor roteiro (Domingos Oliveira), melhor montagem (Natara Ney) e ainda o Prêmio de Qualidade Artística (para os três atores, o próprio Domingos Oliveira, Paulo José e Aderbal Freire Filho). Quando da exibição em Gramado, emocionou de tal forma a plateia que foi aplaudido de pé, entre choros e risos, por longos minutos.

                        A força do roteiro é exatamente a sua singeleza cativante que nos envolve a ponto de nos tornar partícipes (como um quarto mosqueteiro) do reencontro e das reminiscências de três velhos amigos, David (Paulo José), Antonio (Domingos de Oliveira) e Ulisses (Aderbal Freire Filho), que se juntaram pela primeira vez, ainda adolescentes, para uma representação colegial da peça A Ceia dos Cardeais, de Julio Dantas, um clássico português. Passados 50 anos, voltam a se reunir uma noite na casa maravilhosa de David para confraternizar e efetuar um balanço das suas vidas, dos seus amores e dissabores.

                        Já maduros, na faixa dos 70 anos, não perderam a fome de viver e o bom humor. Não se trata, pois, de um encontro de três velhos amargurados, mas de três homens vividos e vívidos, que carregam ilusões, perplexidades, temores, anseios como os jovens de todas as idades. O filme é uma celebração da vida, da amizade e do espírito de juventude.

                        Domingos, Paulo José e Aderbal são de fato amigos de velha data e dessa amizade surgiu a ideia do filme. Segundo Domingos de Oliveira, “Juventude é a nossa própria vida, misturada com certa ficção daquilo que secretamente imaginávamos viver em nossas conversas doidas”.

                        Contemporâneo do boom do Cinema Novo, Domingos de Oliveira sempre se manteve à parte, fazendo filmes do seu jeito, com um toque muito pessoal, mais interessado no texto do que nos artifícios tecnológicos.

                        Com um orçamento modesto, de apenas R$ 800 mil, filmou Juventude em digital e tendo como cenário único a mansão em que os amigos se reúnem. Isso não impede tomadas belíssimas, nos diversos ambientes da casa, internos e externos. O filme flui com tamanha naturalidade que nos dá a impressão de ter sido feito numa única tomada. Há quem faça crítica à luz, mas Domingos explica que foi de propósito: “Queria uma luz mais estourada, mais aberta”.

                        Como é característico das obras de Domingos, os diálogos, entremeados de alguns monólogos, são primorosos, sustentados pela atuação deslumbrante dos três protagonistas. Impossível e injusto destacar um deles, mas comovem o esforço e o talento de Paulo José lutando há muitos anos com os efeitos do Mal de Parkinson, que usa magistralmente na composição do personagem que encarna.

                        A mim, por razões pessoais que contarei num outro post, emocionou-me especialmente a cena em que os três amigos, que se acham na idade dos velhos cardeais que interpretaram na juventude, vestem-se com trajes cardinalícios comprados por David (Paulo José) para surpreendê-los, e enquanto ceiam repetem parte de suas falas da peça, com suas imagens e vozes fundindo-se com as dos rapazinhos que foram.

                        Ao término do filme, me senti com a alma e os olhos lavados, estes pelas lágrimas que não pude conter. Não sei se isso é sinal de juventude ou senectude.

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=XOj7beJummc]

 

 

 

 

 

                        Os cabritos de Mercadante, nas Pílulas.

Conhecendo Vanusa

 

 

 

                        A internet é instrumento crudelíssimo à disposição dos cruentos.

                        A cantora Vanusa é apenas uma das vítimas das piadas e dos vídeos que a exibem em momentos infelizes, tropeçando na letra do hino nacional (que é chatíssima e não faz jus à bela e esfuziante melodia) e das canções do seu primeiro companheiro, Antonio Marcos. Tem sido ridicularizada impiedosamente, sem o mínimo respeito e humanidade.

                        Já posso ouvir a réplica:

                        — Bem feito! Quem mandou ela se expor daquele jeito? Por que não fica em casa?

                        Um dos nossos traços mais característico e menos edificante é o de idolatrar e aniquilar com a mesma leviandade e sem-cerimônia.

                        Aqueles mesmos que num dia elevam alguém aos píncaros da glória, já no outro cavam o buraco para enterrá-lo.

                        Pelé, Wilson Simonal e Tom Jobim foram outras vítimas dessa ciclotimia nacional, em razão do quê, com a agudeza de sempre, Tom cunhou a frase que retrata com perfeição nosso comportamento: No Brasil, o sucesso é ofensa pessoal.

                        Vanusa não chega a ser uma cantora da minha especial predileção, mas lhe reconheço qualidades e gosto de algumas de suas interpretações, que se tornaram clássicas.

                        Desfrutou de grande popularidade no final da década de 60, a partir do estrondoso sucesso que fez com a canção Pra nunca mais chorar, composta especialmente para ela por Carlos Imperial, outro a respeito de quem se dizem horrores, mas não se pode negar que era extremamente talentoso e inteligente. O forte de Pra nunca mais chorar era o arranjo (especialmente o lá-lá-lá da introdução, que continua em backing vocal, bolado por Imperial) e o gestual de Vanusa ao cantá-la, já que a música em si não passava de uma repetição de inúmeras outras da época.

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=4bF7gHXVXNU&feature=related]

 

                        O relacionamento amoroso de Vanusa e Antonio Marcos, contrariando abertamente os padrões conservadores que começavam a ruir então, foi uma linda história de coragem e paixão, a que talvez tenha faltado (e bem que o merecia) um final feliz.

                        O casal expressava então a liberdade, a ousadia, a busca de novos limites por uma juventude em que não mais servia a roupa velha do passado.

                        Lembra-me um incidente contado pelo próprio casal numa entrevista a que assisti há muitos anos. Os dois foram impedidos de ficar juntos no mesmo quarto em um famoso hotel porque não eram oficialmente casados. Foram colocados em quartos separados, e andares diferentes, o que obrigava Antonio Marcos de madrugada esgueirar-se pelas escadas, temendo encontrar com algum hóspede ou empregado do hotel, para dormir com Vanusa. Parece incrível hoje? Pois eram assim aqueles tempos.

                        Antonio Marcos talvez tenha sido o último grande romântico do nosso cancioneiro popular, ao estilo da geração de poetas românticos do século XIX, como Álvares de Azevedo ou Fagundes Varela, arrebatado e arrebentado pelo lirismo trágico e rebelde de um coração em chamas. Os versos de Maiakóvski parecem descrevê-lo:

 

                                               Nos demais — eu sei,

                                               qualquer um o sabe —

                                               o coração tem domicílio

                                               no peito.

                                               Comigo

                                               a anatomia ficou louca.

                                               Sou todo coração —

                                               em todas as partes palpita.

 

                        E seguiu ao pé da letra outro verso de Maiakóvski para o amigo que partira — Melhor morrer de vodca que de tédio.

                        Além dos seus próprios méritos — e da simples condição de ser humano —, o que representaram ela e Antonio Marcos no seu tempo já seria o bastante para que Vanusa merecesse o respeito e a consideração que lhe têm faltado  nesses momentos difíceis.

                        Mas, como no samba do grande Cartola, isso não acontece, num país e num tempo de desmemoriados.

 

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