Posts from setembro, 2010

Conhecendo Vanusa

 

 

 

                        A internet é instrumento crudelíssimo à disposição dos cruentos.

                        A cantora Vanusa é apenas uma das vítimas das piadas e dos vídeos que a exibem em momentos infelizes, tropeçando na letra do hino nacional (que é chatíssima e não faz jus à bela e esfuziante melodia) e das canções do seu primeiro companheiro, Antonio Marcos. Tem sido ridicularizada impiedosamente, sem o mínimo respeito e humanidade.

                        Já posso ouvir a réplica:

                        — Bem feito! Quem mandou ela se expor daquele jeito? Por que não fica em casa?

                        Um dos nossos traços mais característico e menos edificante é o de idolatrar e aniquilar com a mesma leviandade e sem-cerimônia.

                        Aqueles mesmos que num dia elevam alguém aos píncaros da glória, já no outro cavam o buraco para enterrá-lo.

                        Pelé, Wilson Simonal e Tom Jobim foram outras vítimas dessa ciclotimia nacional, em razão do quê, com a agudeza de sempre, Tom cunhou a frase que retrata com perfeição nosso comportamento: No Brasil, o sucesso é ofensa pessoal.

                        Vanusa não chega a ser uma cantora da minha especial predileção, mas lhe reconheço qualidades e gosto de algumas de suas interpretações, que se tornaram clássicas.

                        Desfrutou de grande popularidade no final da década de 60, a partir do estrondoso sucesso que fez com a canção Pra nunca mais chorar, composta especialmente para ela por Carlos Imperial, outro a respeito de quem se dizem horrores, mas não se pode negar que era extremamente talentoso e inteligente. O forte de Pra nunca mais chorar era o arranjo (especialmente o lá-lá-lá da introdução, que continua em backing vocal, bolado por Imperial) e o gestual de Vanusa ao cantá-la, já que a música em si não passava de uma repetição de inúmeras outras da época.

 

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                        O relacionamento amoroso de Vanusa e Antonio Marcos, contrariando abertamente os padrões conservadores que começavam a ruir então, foi uma linda história de coragem e paixão, a que talvez tenha faltado (e bem que o merecia) um final feliz.

                        O casal expressava então a liberdade, a ousadia, a busca de novos limites por uma juventude em que não mais servia a roupa velha do passado.

                        Lembra-me um incidente contado pelo próprio casal numa entrevista a que assisti há muitos anos. Os dois foram impedidos de ficar juntos no mesmo quarto em um famoso hotel porque não eram oficialmente casados. Foram colocados em quartos separados, e andares diferentes, o que obrigava Antonio Marcos de madrugada esgueirar-se pelas escadas, temendo encontrar com algum hóspede ou empregado do hotel, para dormir com Vanusa. Parece incrível hoje? Pois eram assim aqueles tempos.

                        Antonio Marcos talvez tenha sido o último grande romântico do nosso cancioneiro popular, ao estilo da geração de poetas românticos do século XIX, como Álvares de Azevedo ou Fagundes Varela, arrebatado e arrebentado pelo lirismo trágico e rebelde de um coração em chamas. Os versos de Maiakóvski parecem descrevê-lo:

 

                                               Nos demais — eu sei,

                                               qualquer um o sabe —

                                               o coração tem domicílio

                                               no peito.

                                               Comigo

                                               a anatomia ficou louca.

                                               Sou todo coração —

                                               em todas as partes palpita.

 

                        E seguiu ao pé da letra outro verso de Maiakóvski para o amigo que partira — Melhor morrer de vodca que de tédio.

                        Além dos seus próprios méritos — e da simples condição de ser humano —, o que representaram ela e Antonio Marcos no seu tempo já seria o bastante para que Vanusa merecesse o respeito e a consideração que lhe têm faltado  nesses momentos difíceis.

                        Mas, como no samba do grande Cartola, isso não acontece, num país e num tempo de desmemoriados.

 

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