Conhecendo Vanusa

 

 

 

                        A internet é instrumento crudelíssimo à disposição dos cruentos.

                        A cantora Vanusa é apenas uma das vítimas das piadas e dos vídeos que a exibem em momentos infelizes, tropeçando na letra do hino nacional (que é chatíssima e não faz jus à bela e esfuziante melodia) e das canções do seu primeiro companheiro, Antonio Marcos. Tem sido ridicularizada impiedosamente, sem o mínimo respeito e humanidade.

                        Já posso ouvir a réplica:

                        — Bem feito! Quem mandou ela se expor daquele jeito? Por que não fica em casa?

                        Um dos nossos traços mais característico e menos edificante é o de idolatrar e aniquilar com a mesma leviandade e sem-cerimônia.

                        Aqueles mesmos que num dia elevam alguém aos píncaros da glória, já no outro cavam o buraco para enterrá-lo.

                        Pelé, Wilson Simonal e Tom Jobim foram outras vítimas dessa ciclotimia nacional, em razão do quê, com a agudeza de sempre, Tom cunhou a frase que retrata com perfeição nosso comportamento: No Brasil, o sucesso é ofensa pessoal.

                        Vanusa não chega a ser uma cantora da minha especial predileção, mas lhe reconheço qualidades e gosto de algumas de suas interpretações, que se tornaram clássicas.

                        Desfrutou de grande popularidade no final da década de 60, a partir do estrondoso sucesso que fez com a canção Pra nunca mais chorar, composta especialmente para ela por Carlos Imperial, outro a respeito de quem se dizem horrores, mas não se pode negar que era extremamente talentoso e inteligente. O forte de Pra nunca mais chorar era o arranjo (especialmente o lá-lá-lá da introdução, que continua em backing vocal, bolado por Imperial) e o gestual de Vanusa ao cantá-la, já que a música em si não passava de uma repetição de inúmeras outras da época.

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=4bF7gHXVXNU&feature=related]

 

                        O relacionamento amoroso de Vanusa e Antonio Marcos, contrariando abertamente os padrões conservadores que começavam a ruir então, foi uma linda história de coragem e paixão, a que talvez tenha faltado (e bem que o merecia) um final feliz.

                        O casal expressava então a liberdade, a ousadia, a busca de novos limites por uma juventude em que não mais servia a roupa velha do passado.

                        Lembra-me um incidente contado pelo próprio casal numa entrevista a que assisti há muitos anos. Os dois foram impedidos de ficar juntos no mesmo quarto em um famoso hotel porque não eram oficialmente casados. Foram colocados em quartos separados, e andares diferentes, o que obrigava Antonio Marcos de madrugada esgueirar-se pelas escadas, temendo encontrar com algum hóspede ou empregado do hotel, para dormir com Vanusa. Parece incrível hoje? Pois eram assim aqueles tempos.

                        Antonio Marcos talvez tenha sido o último grande romântico do nosso cancioneiro popular, ao estilo da geração de poetas românticos do século XIX, como Álvares de Azevedo ou Fagundes Varela, arrebatado e arrebentado pelo lirismo trágico e rebelde de um coração em chamas. Os versos de Maiakóvski parecem descrevê-lo:

 

                                               Nos demais — eu sei,

                                               qualquer um o sabe —

                                               o coração tem domicílio

                                               no peito.

                                               Comigo

                                               a anatomia ficou louca.

                                               Sou todo coração —

                                               em todas as partes palpita.

 

                        E seguiu ao pé da letra outro verso de Maiakóvski para o amigo que partira — Melhor morrer de vodca que de tédio.

                        Além dos seus próprios méritos — e da simples condição de ser humano —, o que representaram ela e Antonio Marcos no seu tempo já seria o bastante para que Vanusa merecesse o respeito e a consideração que lhe têm faltado  nesses momentos difíceis.

                        Mas, como no samba do grande Cartola, isso não acontece, num país e num tempo de desmemoriados.

 

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3 comentários

  1. Lilian
    06/09/10 at 11:10

    Me lembro dos dois juntos, Vanusa e Antônio Marcos. Também me lembro de cada um deles: ele, lindo; ela, medonha. Se eu fosse escolher uma cara para a Medusa, a dela me ocorreria facilmente.
    E mesmo assim, ela se expôs e conseguiu sucesso. Hoje, ela continua tão feia quanto antes. Mas viveu um grande amor, coisa de privilegiados nesta terra. Portanto, não há motivo para compadecer-se dela.
    Se ela tem sido ridicularizada por esquecer letras, só erra quem faz. Se estivesse em casa tricotando não passaria por tal vexame. Mas o mundo lá fora é bem mais interessante, embora se tenha que pagar um preço alto para viver nele. Alguém como ela sempre pagaria pra ver. E está vendo. E nós também.
    O problema com a fama é este: qualquer tropeço torna-se uma grande queda. Imagina se nós, “pobres mortais” tivéssemos divulgadas as pequenas coisas que nos acontecem? Seriam manchetes beirando o absurdo todos os dias. Dificilmente passaríamos um dia sem cometer algo digno de nota.
    Não tenho pena; ao contrário, considero-a extremamente corajosa.
    E quero dizer que adorei os versos de Maiakóvski. Um artista destes tempos, Oswaldo Montenegro, diz algo no mesmo sentido, e muito lindo:
    http://www.youtube.com/watch?v=yWu2iAaAJUc

  2. sonia k.
    06/09/10 at 23:05

    Felizes os que viveram ou vivem um grande amor.
    É algo inesquecível e válido por uma vida inteira.
    As pessoas envelhecem, ficam esquecidas, são esquecidas após grandes ovações. Isto é meio trágico na vida dos astros ou dos que brilharam um dia nos palcos. Pecamos as vezes por julgarmos as pessoas por tão pouca coisa e deixamos ao léo grandes dias que tiveram de glória e principalmente de vivência de grandes amores.
    Uns se vão cedo, como Antonio Marcos. Outros ficam ainda por longo tempo em uma caminhada que só cada um pode analisar e sentir.
    Penso…. o que anda pelo coração de Vanusa?

    • Lilian
      07/09/10 at 8:31

      Apesar dela ser artista, um tantinho diferente de nós, portanto, imagino que no coração de Vanusa haja muitas recordações dos dias de glória. Deduzo também que ele esteja um pouco cansado, desesperadamente precisando de um estímulo para prosseguir, mas tudo o que consegue é visitar frequentemente as “oficinas”.
      Como tem filhos, deve ser meio que escrava deles, numa relação de amor e “ódio” (entenda-se sofrimento), porque eles nunca correspondem ao que se espera deles. E bastante frustração, por ter visitado muitas vezes o reino da felicidade e agora sequer consegue vislumbrá-lo, restando-lhe apenas lembranças de dias dourados.
      Mas ela é guerreira e, como nós, não tem muita opção: vai prosseguir lutando. Muito.
      Um abraço, Soninha

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