Desde pequenino o guapo rapaz tinha adoração pelo circo.
Ainda moleque engraxate, tão logo um circo chegasse, tratava de se oferecer para carregar cartazes e participar da passeata de apresentação pelas ruas da pequena cidade mineira, servindo também de escada para as troças do palhaço.
Graças a isso, fazia jus a um sinal de tinta gravado na testa ou no braço — que zelava para não se apagar —, que lhe permitia o ingresso livre nas sessões.
Muitos anos depois, já maduro e bem posto na vida, não perdia nenhuma apresentação circense, e fazia questão de pagar o ingresso dos meninos pobres pegos enquanto tentavam furar a lona do circo, como ele fizera algumas vezes.
Antes disso, porém, o moço bonito, amorenado, de basta cabeleira negra (ninguém diria que ficaria calvo por volta dos 40 anos), sobrancelhas grossas, olhos tristonhos e sonhadores, encantou-se por uma atriz mais velha do que ele, integrante da trupe de um circo teatro que se apresentou durante várias semanas na cidade.
Quando o circo partiu, ele foi junto, vivendo sua paixão. Com o seu belo porte, inteligência, simpatia — e uma boa ajuda da namorada —, logo passou a integrar o elenco do circo, do qual chegou a ser o galã principal.
Durante algum tempo mambembou com a companhia, encenando dramas, comédias e até mesmo a Paixão de Cristo, para a qual deixava crescer a barba cerrada de árabe.
Gostava de contar essas aventuras ao seu primeiro e querido neto que o escutava com toda a atenção, pedindo-lhe detalhes e até mesmo o corrigindo quando alterava um pouco os fatos já narrados anteriormente.
Foi assim que o neto soube de uma peça que encenara diversas vezes no circo e era uma de suas prediletas: A ceia dos cardeais.
Ele havia interpretado o Cardeal Gonzaga e ainda se lembrava quase por inteiro da sua fala principal, no fecho da peça, que dizia (recorrendo algumas vezes ao livro com o texto integral) para o neto embevecido, que lhe dava as deixas dos outros dois Cardeais:
CARDEAL RUFO, acercando-se também do CARDEAL GONZAGA:
— Em que pensa, cardeal?
CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios de brilho, a expressão transfigurada:
— Em como é diferente o amor em Portugal!
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento…
é o amor coração, é o amor sentimento.
Uma lágrima… Um beijo… Uns sinos a tocar…
Uma parzinho que ajoelha e que vai se casar.
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora:
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora!
O amor simplicidade, o amor delicadeza…
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa!
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade,
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade,
Numa ternura casta e numa estima sã,
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã…
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas,
Como se em comunhão se entendessem as rosas,
Como se todo o amor fosse um amor sòmente…
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente!
CARDEAL RUFO:
— Também vossa Eminência amou?
CARDEAL GONZAGA:
— Também! Também!
Pode-se lá viver sem ter amado alguém!
Sem sentir dentro d’alma — ah, podê-la sentir!
Uma saudade em flor, a chorar e a rir!
Se amei! Se amei! Eu tinha uns quinze anos, apenas.
Ela, treze. Um amor de crianças pequenas,
Pombas brancas revoando ao abrir da manhã…
Era minha priminha. Era quase uma irmã.
Bonita não seria… Ah, não… Talvez não fosse.
Mas que profunda olhar e que expressão tão doce!
Chamava-lhe eu, a rir, a minha mulherzinha…
Nós brincávamos tanto! Eu sentia-a tão minha!
Toda a gente dizia em pleno povoado:
“Não há noiva melhor para o senhor morgado,
Nem em capela antiga há santa mais santinha…”
E eu rezava, baixinho: “É minha! É minha! É minha!”
Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar,
Ficávamos a olhar um para o outro, a olhar,
Todos cheios de Sol, ofegantes ainda…
Numa grande expressão de dor:
— Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda…
E, uma noite, a minha alma, a minha luz, morreu!
Numa revolta angustiosa:
— Deus, se ma quis tirar, p’ra que foi que ma deu?
Para quê? Para quê?
CARDEAL DE MONTMORENCY, ao vê-lo erguer-se, amparando-o:
— Oh! Eminência…
CARDEAL RUFO, curvando-se também para o amparar, comovido:
— Então…
CARDEAL GONZAGA
— Ai! Pois não via, Deus, que eu tinha coração!
CARDEAL RUFO
— Eminência…
CARDEAL GONZAGA, caindo sobre a cadeira, a soluçar
— Não via! Ah!, não via! Não via!
Julgou que de um amor outro amor refloria,
E matou-me… E matou-me!
CARDEAL DE MONTMORENCY:
— Eminência…
CARDEAL GONZAGA:
— Afinal,
Foi esse anjo, ao morrer, que me fez cardeal!
E eu hoje sirvo a Deus, — a Deus, que ma levou…
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY, limpando uma lágrima furtiva, enquanto as onze horas soam no Vaticano:
— Foi ele, de nós três, o único que amou.
Cai o pano lentamente.
A Ceia dos Cardeais foi escrita por Júlio Dantas, médico, jornalista político, poeta, diplomata e dramaturgo português, nascido no ano 1876, em Lagos, Algarve, e morto em 1962, em Lisboa.
É uma peça em verso e apenas um ato, que fez parte do repertório de muitos dos grandes teatros da Europa, Brasil e América espanhola. Foi representada pela primeira vez em 24 de Março de 1902 no antigo teatro D. Amélia, atual teatro São Luiz.
Traduzida em mais de 50 idiomas, foi encenada inúmeras vezes no Brasil, em uma delas tendo Raul Cortez como um dos personagens.
A ação transcorre no Vaticano, durante o pontificado de Bento XIV, no século XVIII.
Três cardeais — Cardeal Gonzaga, português, bispo de Albano e Carmelengo; Cardeal Rufo, espanhol, arcebispo de Óstia e deão do Sacro Colégio; e o Cardeal de Montmorency, francês, bispo de Palestrina — combinam uma ceia no Vaticano, durante a qual discutem o sentido da vida, o seu ciclo e o que aconteceu nas suas infâncias e juventudes, tal como sucede no filme Juventude de Domingos de Oliveira.
Quem contou foi o neto ouvinte do Cardeal Gonzaga circense.
Gosto muito de teatro. Mas o circo já não me agrada; lembra-me a pobreza da infância. Adulta, quis tirar essa má impressão, indo num circo aqui em Ribeirão Preto (os circos da minha infância eram pequenos e pobres). Que nada! Mesmo sendo umas 3 ou 4 vezes maior do que aqueles que conhecia, me deu a mesma impressão ruim. Lembro-me principalmente do elefante. Que absurdo ficarem carregando elefantes por aí…
São pessoas admiráveis, os circenses, sem dúvida. Mas que vida miserável!
Para não dizer que não gostava de nada do circo, apreciava bastante o show dos contorcionistas. E detestava o pessoal do trapézio e do “globo da morte”. Pra mim, aquilo chegava a ser sinistro. Mas eu “tinha” que ir, porque a cidade toda ia (um distrito de, no máximo, 500 habitantes – claro que estou chutando; não faço a mínima idéia de quantas pessoas viviam naquela cidade).
Quanto aos cardeais e seus amores… de que vale uma vida sem amor?
De que vale uma vida? Vale o que dela se leva de lembranças, de amores vividos e sonhados, de pequenas alegrias e enormes realizações em todos os sentidos.
Ao contrário de v., sempre adorei circos e não faltei a nenhum quando pequena, pois meu pai também gostava e nos levava. Depois de adulta levei minhas filhas e neto mais velho muitas vezes em SP.
Nunca parei pra pensar se a vida dos circenses é boa ou má, rica ou pobre, acredita? Beijos
Oi, Sonia!
Ainda bem que todos temos visões diferentes sobre as coisas do mundo. Talvez seja esta diversidade que torna a vida possível.
Seria extremamente chato se todos pensassem como eu, tivessem os mesmos “traumas” que eu.
Por isto, gosto muito de saber o que os demais pensam, proporcionando-me um outro ângulo de visão.
Beijo!