Prêmio Jabuti

 

 

 

                        Premiações literárias, ou de qualquer outra manifestação artística, sempre são passíveis de controvérsia, não apenas pelo grau inelutável de subjetividade dos juízos críticos, mas também pelo jogo de interesses sempre presente em tais disputas.

                        Mesmo assim, o Prêmio Jabuti outorgado anualmente pela Câmara Brasileira do Livro merece o respeito e a consideração da grande maioria dos autores, editores e leitores.

                        O romance de estreia de Edney Silvestre, Se eu fechar os olhos agora, acaba de receber o prêmio da categoria, batendo Leite Derramado, de Chico Buarque, e Os Espiões, de Luis Fernando Veríssimo, classificados respectivamente em segundo e terceiro lugares.

                        Há muito tempo acompanho e admiro as ótimas entrevistas de Edney Silvestre no programa Espaço Aberto Literatura, no canal Globo News. A exemplo de Geneton Moraes Neto, além de saber conduzir a entrevista com rara sensibilidade e conhecimento do assunto, demonstra verdadeira paixão pela literatura.

                        Por isso não hesitei em comprar o seu livro em janeiro deste ano, quando o vi exposto na Livraria da Travessa, enquanto passava alguns dias de férias no Rio. Curiosamente, também comprei no mesmo dia Os Espiões, de Luis Fernando Veríssimo. Sobre Leite Derramado, do Chico, já escrevi neste blog.

                        Embora bem distintos, os três romances têm qualidades suficientes para credenciá-los à premiação, não importa a ordem de classificação.

                        Nem sempre um bom início reflete o que é ou será o livro, mas não deixa de ser uma boa pista.

                        Há começos arrebatadores, que se tornaram clássicos e são sempre lembrados, especialmente porque no caso os livros também se tornaram clássicos.

 

                        “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira” (Leon Tolstói, Ana Karênina)

 

                        “Hoje minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.” (Albert Camus, O Estrangeiro)

 

                        “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi o berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: a diferença radical entre este livro e o Pentateuco.” (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas)

 

                        “— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

 

                        “A bem dizer, sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância. (João Cândido de Carvalho, O Coronel e o Lobisomem)

 

                        “Era no tempo do Rei.

                        Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo — O canto dos meirinhos —; e bem que lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais a que se chamava o processo.” (Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias. Publicado em folhetins entre 1852 e 1853, a descrição sobre os trâmites processuais e o aparelho judiciário ainda impressiona pela fidelidade e atualidade!)

 

                        “Esperei muito tempo por você.

                        Meu nome é Rudolf Flügel.

                        Como os mendigos e as putas, a gente logo percebe quais os que vão parar diante de nós para o gesto de oferenda. Para esses não estendemos as mãos. Com eles não trocamos o que temos, mas o que somos.” (Roberto Freire, Cleo e Daniel, um dos livros amados e marcantes da minha adolescência).

 

                        Esses são apenas uns poucos exemplos, que poderiam se multiplicar. O que pretendo assinalar é que alguns inícios são quase irresistíveis. Por vezes basta a primeira frase, outras, um ou dois parágrafos, para que sejamos tomados pela mão e arrastados para dentro do livro. Dependendo do gosto e das inclinações de cada um, alguém não estará tentado agora a ler um dos livros acima, se ainda não leu, ou até mesmo o reler?

                        Os romances de Edney Silvestre e de Luis Fernando Veríssimo, embora não se limitem a isso, têm esse tipo de início:

 

                        “Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos cabelos louros dela, na testa dela, nas sobrancelhas arqueadas e nos cílios negros, nas pálpebras, na face, no pescoço, nos braços, na blusa branca rasgada e nos botões que não tinham sido arrancados, no sutiã cortado ao meio, no seio direito, na ponta do bico do seio direito.” (Se eu fechar os olhos agora)

 

                        “Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana. De segunda a sexta trabalho numa editora, onde uma das minhas funções é examinar os originais que chegam pelo correio, entram pelas janelas, caem do teto, brotam do chão ou são atirados na minha mesa pelo Marcito, dono da editora, com a frase “Vê se isso presta”.” (Os Espiões)

 

                        Veríssimo já é bastante conhecido e merecidamente consagrado. Os seus livros são sempre gostosos de ler, inteligentes, divertidos, instigantes. Nada disso falta a Os Espiões, conquanto me pareça que neste caso o romance começa bem melhor do que acaba, perdendo um pouco o fôlego no final. Mesmo assim é um bom livro, ainda que não seja o melhor já escrito por Veríssimo.

                        Edney Silvestre, ao contrário, mais conhecido como jornalista, e já tendo escritos outros livros, foi para mim uma grata surpresa na sua estreia como romancista.

                        Difícil definir o gênero do livro: a partir de uma trama policial em que dois meninos se envolvem ao encontrar numa pequena cidade do interior o corpo de uma jovem mulher assassinada com requintes de barbárie, desenrolam-se reminiscências e impressões sobre a história recente do Brasil e o próprio cenário político e cultural da primeira metade do século passado.

                        Talvez o traço predominante seja de um romance de formação dos dois meninos, um pobre e o outro de classe média, que na investigação do crime passam a contar com o auxílio, a princípio relutante, de um velho que vive num asilo e fora preso político na ditadura Vargas, o qual a certa altura lhes diz: “Nada neste país é o que parece”.

                        O sentimento e o significado da amizade, a descoberta das cruezas do mundo, da violência, dos preconceitos sociais, da corrupção, das perversões, do sofrimento, das perdas inevitáveis marcarão a travessia dos dois adolescentes para a idade adulta.

                        A impressão que Edney Silvestre de longe me passava como homem — culto, inteligente, sensível e refinado — confirmou-se plenamente na persona do romancista e na sua obra. O Prêmio Jabuti ficou em boas mãos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários

  1. Lilian
    08/10/10 at 17:21

    “Era no tempo do rei.”
    “Esperei muito tempo por você.”
    Magníficos!
    Quanto ao Edney Silvestre, talvez eu precisasse avançar um pouco mais na estória para formar uma impressão mais nítida a respeito. Traduzindo: não gostei muito, pelo menos não à primeira vista.
    Mas foi muito bom ler esse texto tão bem articulado, agradável mesmo.
    Sei não se o Jabuti foi parar em boas mãos… (só lendo o livro pra saber. Mas estou com uma boa fila de livros a serem lidos)
    Entretanto, se o senhor gostou, algum mérito deve ter.

  2. sonia k.
    09/10/10 at 1:51

    Querido, pra quem estava com a preocupação de nada postar está a mil, não? Nem ia visitar seu blog em respeito aos seus afazeres. Entrei só por vício e curiosidade. Ufa!!!! Vou tenar4 deglutir tudo que colocou e depois comento, tá? Bjs 1000

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