Já se disse que a morte do nosso bichinho de estimação nos comove e afeta mais do que saber que milhares de crianças morrem diariamente de desnutrição ou sobre um genocídio ocorrido em terras distantes. Assim somos, os seres humanos. Presos às nossas vidinhas, ao nosso quintal, às nossas aflições e alegrias imediatas. Humano, demasiado humano.
Todavia, paradoxalmente, somos capazes também de ações extraordinárias de solidariedade, sacrifício, amor e superação. Aquilo a que chamamos de inteligência caracteriza-se por sua flexibilidade, plasticidade e inovação, ou seja, pela capacidade de adaptar meios existentes para uma nova finalidade, pela possibilidade de enfrentar de maneira diferente situações novas e inventar novas soluções. Tudo isso esteve presente no resgate dos mineiros no Chile, tanto na conduta deles mesmos, quanto de todos os que se envolveram de corpo e alma nas operações de salvamento, cumprida com pleno sucesso.
Mas nem tudo são flores. A onipresença simpática e risonha do presidente chileno, o seu papel de mestre de cerimônia tipo Silvio Santos, os vários discursos ufanistas proferidos ao longo das operações me incomodaram e soaram oportunistas.
É claro que como chefe de Estado ele tinha a obrigação de ali estar. Bem que poderia, entretanto, se manter mais discreto e distante dos holofotes. Bastaria um pronunciamento ao final dos trabalhos, de agradecimento e de louvor ao que foi realizado, mas também de reflexão sobre os fatos. Como se explica o funcionamento de uma mina em condições tão precárias e com uma única saída? Quais serão as medidas tomadas contra os empresários inescrupulosos e demais responsáveis por isso? É bem verdade que o presidente Sebastian Piñera assumiu o cargo herdando duas grandes tragédias: o terremoto devastador e o desmoronamento da mina. Mesmo assim, e não obstante o sucesso da operação de resgate, ele se aproveitou claramente para surfar na onda.
Alguns se lembraram — e eu também — de um grande filme de Billy Wilder, Ace in the hole, ou The big carnival, como foi rebatizado depois, lançado em 1951 e um fracasso de bilheteria, que retrata a hipocrisia e os interesses reinantes em uma situação parecida.
Charles Tatum, um repórter veterano interpretado pelo sempre ótimo Kirg Douglas, rechaçado nos grandes centros por condutas pouco recomendáveis, busca refúgio em um pequeno jornal da província, em Albuquerque, no estado do Novo México. Após um longo e tedioso ano, ele finalmente encontra uma matéria que pode levá-lo de volta ao grande circuito: um homem preso em velhas ruínas indígenas, justamente na Montanha dos Sete Abutres, que dá o título do filme em português.
O drama humano, as circunstâncias reais ou inventadas pelo repórter e a abordagem sensacionalista logo chamam a atenção do público e da grande mídia. O jornalista manipula o xerife para ter acesso exclusivo às ruínas, controla a mulher da vítima para que ela (que estava prestes a abandonar o marido) aceite desempenhar o papel teatral de esposa desesperada. Por fim, obriga o empreiteiro responsável pelo salvamento a adotar um método de resgate que demoraria uma semana, em vez de outro que libertaria a vítima em menos de 24 horas, pois precisava prolongar o espetáculo ao máximo, o que acaba por resultar na morte da vítima por causa de uma pneumonia, provocando um surto de remorso no jornalista.
“Eu posso cuidar de grandes notícias e pequenas notícias, e se não houver notícias eu saio e mordo um cachorro”, diz o Charles Tatum ao pedir emprego no jornal da pequena Albuquerque, cujo lema exibido orgulhosamente num quadro é “Tell the truth”.
Segundo prega Tatum, a morte de centenas ou milhares de pessoas é apenas um número, enquanto a morte de uma única pessoa (ou dos 33 mineiros encurralados) tem “interesse humano”, faz com que as pessoas “tenham interesse em saber tudo sobre ele” (ou eles, como foi o caso). Veja-se, por exemplo, a curiosidade em saber se seria a mulher ou a atual namorada de um dos mineiros que iria recebê-lo (ou ambas, o que seria melhor ainda), entre outros aspectos da vida pessoal de cada um dos mineiros. O gosto e o desejo da massa, dos consumidores de notícias, é na verdade por uma desgraça ou acontecimento incomum que lhes traga alguma emoção à vida. Por isso a turba grita “pula, pula, pula,” ao suicida indeciso no alto do prédio.
Outro filme excepcional, o premiadíssimo Rede de Intrigas (Network) — a que voltei a assistir recentemente — de Sidney Lumet e estrelado entre outros pelos excelentes Faye Dunaway, Willian Holden, Peter Finch e Robert Duval, é quase uma atualização do filme de Wilder para a década de 70, retratando a informação, não mais impressa, mas televisiva, em adiantado estado de mercantilismo e putrescência, transformada em produto de uma indústria feita não mais para informar, mas apenas para ser consumida.
Como num parto, um a um os mineiros foram saindo do ventre da terra rumo à luz da vida (uma nova vida?). Mas depois que o quarto ou quinto havia sido alçado à superfície sem nenhum incidente, disse à minha mulher que a tudo assistia comigo:
— Isso já está ficando chato. Me chame se acontecer alguma coisa ou quando o último sair…
P.S. Quando já havia escrito este post e pouco antes de publicá-lo recebi um e-mail da Carol e do Marcel com o esboço de um roteiro (uma paródia hollywoodiana) que elaboraram para um filme sobre os mineiros, que achei genial e transcrevo abaixo. Se houver algum interessado em produzi-lo já me autonomeei advogado e empresário dos autores, visando assegurar o futuro da Manuela.
Queridos, um roteiro de Carol e Marcel para os acontecimentos da Mina.
Já estamos em negociação com Warner, Fox e Miramax. beijos.
Trinta e três homens e uma descoberta valiosa.
Um país de terceiro mundo governando por um presidente corrupto e fantoche dos Estados Unidos.
Uma empresa disposta a lavar com sangue os seus erros.
70 dias de insanidade e provação.
MINEIROS
Era um dia normal, Frank (Kurt Russel) acorda mais disposto que o usual, sabedor de que estavam prestes a encontrar as pedras que lhe assegurariam a sonhada aposentadoria. Mike (Ryan Gosslin), seu filho, dorme no quarto ao lado completamente absorto do compromisso com o pai. É preciso que Frank o desperte, o relembre do que é mais importante. Acabou a farra, Mike! É hora de trabalhar. Você tem que ser mais responsável. Frank sabe que somente ele pode dar algum juízo a Mike. Quando todos já desistiram dele, é Frank quem lhe estende a mão, sabe que talvez será o último a fazê-lo.
O filho acorda de mau-humor, ressabiado. Se meter em uma mina, a setecentos metros da superfície com o pai é a última coisa que pensou que faria da vida. Mas agora era tarde. Tinha aprontado muito e sabia que seu pai ainda apostava nele.
Os dois se juntam aos outros trinta e um homens. Homens fortes, homens justos, um sábio, Papa Jack (Robert Duval). Todos começam o dia dispostos, cada um na sua função até que um grita: algo estranho aqui. Um minério reluzente, de uma cor nunca vista antes desponta. Todos se juntam em volta dele. É inacreditável.Na superfície, o inescrupoloso Conrad (Liev Schreiber), CEO da Rockmann Enterprise acabou de receber a notícia por seu ipad: eles acharam.
O segredo devia ser absoluto, Conrad lembra o tolo capataz Mac (Kevin Bacon) que nada pode sair errado, ele deve garantir que seus companheiros mineiros permaneçam no escuro e nada saibam da descoberta. Trata-se de um minério poderossíssimo, capaz de fazer uma liga de metal indestrutível, e a venda do mesmo para os EUA daria um novo fôlego a já combalida guerra.
Mas os mineiros tinham Papa Jack. E Papa Jack sabia da existência do minério. Algo que seu pai, mineiro do inicio dos anos 20 já havia lhe falado a respeito. Uma lenda daquele deserto que ele pensou se tratar apenas de uma lenda. Mas estava lá e eles descobriram. Algo capaz de tornar o pequeno país subdesenvolvido em um país de verdade.
Papa Jack convoca a reunião. Esclarece do que se trata. É necessária uma renegociação. Os mineiros devem ter participação no achado. Contatar alguém do governo. Seriam heróis.
Mac, o infiltrado, informa Conrad. Tudo errado, eles já sabem.
É hora do plano B. Conrad, que já sabe a exata localização do seu achado e os meios de chegar até ele por túneis previamente definidos manda implodir a mina. Saia Mac, e mate todos. Você será recompensado.
Mac arruma tudo para a implosão tantas vezes planejada. Quando avisa que está tudo pronto, que sairá pelo túnel 3.5 antes da implosão, Conrad ri com satisfação. A mina implode. As saídas estão todas bloqueadas. Mas algo dá errado. Mac, imbecil, não dinamitou o suficiente para matar os homens na implosão. Mas apenas para prendê-los como animais em uma gaiola. E Mac está com eles.
Agora são 33 homens. Um traidor para ser desmascarado.
Um pai e filho que trocaram experiências, brigam e se reconciliam.
O velho Papa Jack, que não resistirá.
Um presidente dividido em salvar os trinta e três mineiros, ou ceder a sua ganância.
(….o enredo continua nessa linha de previsibilidade. até que…)
O clamor popular aumenta. O presidente está prestes a ser derrubado. Ele não tem alternativa senão buscar o auxílio do então desacreditado mas genial Professor Lemon (Morgan Freeman). Ele promete que conseguirá construir uma cápsula para liberar os mineiros e salvá-los da morte. O Presidente e Conrad tentam fingir que estão em lados opostos, o presidente chega a assegurar ao CEO que o transloucado Professor Lemon não terá êxito. Mas sessenta dias depois de intermitente trabalho em seu laboratório — sobe música e cortes rápidos com o Professor trabalhando sozinho com alguns estudantes, a beira da exaustão —, a cápsula Phoenix está pronta. Antes que pudesse passar pelo crivo do governo, o Prof. Lemon, sabedor da intenção do presidente em vê-lo fracassado, anuncia a sua invenção pelos quatro cantos do mundo, inclusive internet. Agora ele já está consagrado e ficou tarde demais para o presidente recuar. Ele dá carta branca para Conrad: “Faça o que você quiser. Eu não posso mais intervir”.
Os mineiros, que a esta altura já são heróis, já passaram por tudo na mina, inclusive a morte e enterro de Papa Jack, fome, sede e picada de cobra — cujo veneno foi extraído pelo jovem Mike para orgulho maior de seu pai —, começam a ser retirados. O jovem Mike ficaria por último. Vinte e nove mineiros já saíram. O povo, a imprensa, todos vibrando. É a vez de Mac. Com ele, lá embaixo, só restam Frank e Jack, pai e filho. Antes que suba, Frank agarra o braço de Mac e fala em seu ouvido: “Nós dois sabemos de tudo”. Mac treme. Não dá tempo para mais nada quando ele é içado. Os planos de Conrad, de evitar com que os mineiros saiam com vida, não vingam. Ele está desesperado e fica sabendo por Mac, ao lhe abraçar mantendo o teatro armado, que Frank e seu filho poriam tudo a perder. Os únicos que descobriram o plano todo. Conrad recorre ao último ás de sua manga. Pelo menos aqueles dois não sairiam dali com vida. Ele determina uma última implosão na mina, tudo armado para parecer acidente. Nesse momento, a mina começa a ruir e, com ela, o túnel da cápsula. Frank percebe que em breve tudo estará soterrado. Ele lança Mike para dentro da cápsula e aperta o botão que aciona o equipamento quando ele está pronto para subir. Mike grita. “Nãããããããããão”. Frank olha para o filho saindo daquele lugar maldito, esquecido por Deus e pelo diabo. Tudo está cedendo, deslizando. Mas Frank, estranhamente, se sente em paz.
Na superfície, o resgate foi um sucesso. Apenas Mike se dá conta do que aconteceu. Uma perda contabilizada para um resgate tão difícil é muito pouco. Daqui a poucos dias quase ninguém falará o nome de Frank. Mike e sua mãe estão sozinhos, num cerimonial solitário do jardim da casa, onde enterram a camiseta de futebol do pai e seu capacete quando chegam os outros mineiros. Apenas eles. E pouco a pouco, ao som de uma música melosa, eles tiram o capacete e cantam o hino dos mineiros.
Corta- Em um tribunal Mike aparece engravatado, com um advogado ao lado. Ele diz que seu cliente sabe de tudo e falará tudo. No banco dos réus está Conrad. Corta. Fim.
Apenas devo dizer que carolina gama foi uma grande perda ao jornalismo e uma perda ainda maior por morar tão longe de SP. Apesar do estilo “Monica”, ela se encaixaria como uma luva no meio dos meus amigos.
Modéstia à parte, Delucena e eu somos bons fazedores de meninas. A Carolina, nossa primogênita, sempre se deu bem em qualquer atividade em que se envolveu. É excelente profissional do Direito e uma extraordinária revelação como mãe. Mas a sua grande vocação talvez seja mesmo o cinema, que ela sempre amou e pensava se dedicar. Até mesmo brincando ela revela seu talento. Ela e Tarantino fariam uma dupla infernal…
Pai, primeiro e como era de se esperar, minhas emoções e as suas com a questão do resgate foram as mesmas. Depois de alguma emoção com os primeiros resgastes, aquilo foi me parecendo politicagem demais, tem uma expressão em inglês…they (presidente (s) stoled the thunder dos mineiros. Era para ser tudo deles, uma festa genuína, e não pareceu.
Já sobre o nosso roteirinho, e elogios carinhosos seus e do Rock, é tudo uma grande zoeira aos estúdios. Não tenham dúvida q algo assim ou muitíssimo semelhante já está a caminho. Pelo Marcel, a gente tinha q fazer a sério um roteiro para um filme do Walter Salles…é mole?
Gostei das presenças de Morgan Freeman e Robert Duval. Kevin Bacon não gosto. Faltou Denzel Washington.
Imagino que a parte mais legal de se escrever peças, roteiros seja exatamente a escolha dos artistas que irão interpretar os personagens. Penso, inclusive, que os escolhidos possam até servirem de inspiração para o escritor.
Quando li “O Colecionador de Ossos” ficava o tempo todo imaginando o lindo, o maravilhoso Denzel em sua cama, comandando as investigações. Já Angelina não me convenceu muito. Imaginá-la naquelas cenas prá lá de perigosas era meio difícil.
E gostei muito, muito mesmo da forma como a Carol e Marcel conduziram o roteiro, aproveitando os fatos acontecidos no Chile, que mobilizaram as atenções de tanta gente por bastante tempo. Eu, na verdade, não acreditava que os mineiros pudessem sair de lá. Foi uma gratíssima surpresa ver aquela “Phoenix” funcionando com a necessária precisão.
Imagina, se fosse no Brasil, o circo? – Melhor nem pensar, com tantos palhaços em atividade que temos.