Posts from outubro, 2010

O 10 é 70

 

 

 

 

                        O 10 — quem diria? — faz 70 anos, como John Lennon poucos dias atrás.

                        Dois ídolos da minha juventude que corre célere para alcançá-los,

                        Pelé entrou antes na minha vida. Comecei a admirá-lo, e por meio dele o futebol, ainda na primeira infância, a partir da Copa do Mundo de 58, que vô Tufy e meu pai ouviam angustiados pelo rádio, cuja transmissão às vezes caía ou ficava ruim, com muita estática. Foi gol? Pênalti? O que aconteceu?

                        Não compreendia muito bem a importância daquilo tudo, o trauma da perda da Copa de 50, que ambos sentiram na pele e comentavam a todo instante.

                        Ainda era pequeno, apenas começava a ler e jogava futebol esporadicamente. O mundo que me fascinava então era o dos heróis dos gibis e livros de aventuras para crianças, dos seriados das matinês, dos filmes de faroeste, de capa e espada. Pouco mais tarde descobriria Monteiro Lobato.

                        Mas com o decorrer dos jogos, a entrada de Pelé e Garrincha na seleção na partida contra a União Soviética (que a gente chamava de Rússia) e a vitória final, minha paixão pelo futebol foi despertando para nunca mais adormecer.

                        Era o Brasil desenvolvimentista de JK, depois da era Vargas, cinquenta anos em cinco, a construção de Brasília, a Bossa Nova que nascia. Mas eu ainda não me dava conta de nada disso.

                        Algum tempo depois do encerramento da Copa de 58 — dias, semanas, meses? O tempo tem outro ritmo na infância — viajei para São Paulo com meu pai e numa noite, enquanto ele e alguns amigos jogavam pôquer na casa de um deles — o adorável Melinho, que apesar do diminutivo era corpulento e me impressionava não apenas por sua delicadeza e atenção, mas também porque tinha automóvel e televisão —, assisti sozinho numa outra sala ao filme do jogo final contra a Suécia, que de vez em quando ainda se vê por aí.

                        Foi então que realmente conheci o negrinho (sim, é politicamente incorreto, que se dane!) franzino de que tanto se falava, que depois de dizimar a outra equipe de homenzarrões louros (também será politicamente incorreto?), com uma grande participação de um outro anjo mulato (também?) de pernas tortas, chorava como uma criança, amparado pelo goleiro Gilmar.

                        Daí em diante foi uma sucessão de maravilhas, ou de alumbramentos, se já conhecesse a Evocação do Recife, de Manuel Bandeira.

                        Na década de 60, morando em São Joaquim da Barra e já absolutamente louco por futebol, vinha com frequência a Ribeirão Preto na linda Bel Air cupê do médico, amigo e afinal compadre de meu pai, Tonico Martorano (cuja figura, não sei bem por que, me remete a John Wayne, talvez pelos olhos e por ser um exímio atirador), assistir aos jogos do inigualável esquadrão do Santos F. C. contra o Comercial e o Botafogo, ainda nos antigos campos de Vila Virgínia e Vila Tibério. Embora tanto o Comercial quanto o Botafogo tivessem times muito bons na época, o placar final era quase sempre de goleadas acachapantes, 6×1, 7×4, 5×2.

                        Também havia algumas transmissões pela TV Tupi, e nós já tínhamos finalmente televisão em casa. O elegante Mário Morais narrava os jogos sem estardalhaços, apenas pontuando com comentários precisos e ótimas tiradas. A certa altura deixou de se referir a Pelé pelo nome para dizer simplesmente “ele” ou “lá vai a fera”.

                       

Quando “ele” fez o milésimo gol eu já era um rapaz que amava os Beatles e os Rolling Stones, mas me emocionei às lágrimas. O gol custava a sair, todas as cidades em que o Santos jogava queriam o privilégio, mas os deuses do futebol decidiram que teria de ser no Maracanã e de pênalti para que houvesse tempo para a liturgia digna de um rei. Pelé foi muito criticado pela mensagem emocionada em favor das “criancinhas”. Não foi ouvido e elas continuam por aí, agora cheirando crack, assaltando e matando nos sinais, sendo mortas e seviciadas.

                        Pelé foi um prodígio. Atleta perfeito e natural, sem as técnicas de desenvolvimento muscular e anabolizantes que sobrevieram. Afora a distensão muscular na Copa do Chile, jamais sofreu uma contusão grave, apesar de caçado em campo. Deixou os gramados absolutamente inteiro, com os joelhos intactos, e só foi operar os meniscos com mais de 60 anos, depois de se lesionar numa brincadeira.

                        Soube o momento exato de parar, ainda em grande forma, o que muito poucos conseguem. Voltou a jogar brevemente nos EUA porque foi enganado por pessoas de sua confiança e se viu em situação financeira delicada.

                        Profissional impecável, disciplinado, jamais invocou prerrogativas. Treinava normalmente como todos os outros e dizem que até mesmo mais do que os outros.

                        João Saldanha, que era um grande tipo, mas adorava fanfarrices, pouco antes da Copa de 70 chegou a dizer que ele estava quase cego, não enxergava à noite e o colocou na reserva da seleção. Pelé ficou no banco, comportadamente (com a camisa nº 12 se não me engano) sem criar caso. Após voltar ao time, num jogo noturno contra a Argentina meteu um gol de longe e por cobertura no excepcional Cejas, que como a maioria dos goleiros argentinos gostava de ficar adiantado, além da pequena área, e nunca mais se falou da sua vista.

                        Jamais se envolveu em escândalos na vida profissional ou privada e até mesmo como Ministro dos Esportes.

                        O único fato que talvez o desabone seja a resistência em assumir a paternidade de uma filha e em se aproximar dela. Sabe-se lá que razões teria.

                        Mesmo assim, fiéis à máxima jobiniana de que no Brasil o sucesso é ofensa pessoal, muitos continuam a criticá-lo e a negar seus méritos.

                        Outra crítica que se lhe faz é a declaração — esta sim polêmica — de que o povo brasileiro não sabia votar. Da mesma forma que, segundo o poeta, “caminhante não há caminho, se faz o caminho ao andar”, votar se aprende votando, e ficamos longo tempo sem votar. Mas será que já aprendemos ou estamos aprendendo?

                        A camisa 10, por causa dele, passou a ser o símbolo do craque do time. Alguns a usaram com galhardia: Zico, Rivelino, Ademir da Guia, Platini, Zidane, Maradona (que os “hermanos” e alguns outros idiotas que nem sequer chegaram a ver Pelé jogar teimam em afirmar que foi o melhor).

                        Como fazem os norte-americanos em relação aos seus grandes ídolos, a camisa 10 deveria ser definitivamente excluída do futebol, em respeito e homenagem ao seu primeiro e único rei.

 

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