— Pai, consegui dois ingressos de pista para o show do Paul no domingo. Você e eu. É pegar ou largar. Tem que decidir já.
Quem poderia ser se não a Bell com suas maravilhosas e repentinas maluquices, falando comigo pelo celular?
Era por volta das 11 horas da última sexta-feira e estava entrando na sala do pediatra Dabori, acompanhando a Carolina na consulta mensal da Manuela.
Confesso que hesitei. Tinha mil compromissos na segunda-feira, incluindo aulas na faculdade logo às 8 horas. e ainda que elaborar as provas e os exames das minhas 9 turmas para entregar tudo do Setor de Provas também na segunda de manhã.
Há muitos e muitos anos não vou a um mega show (na verdade acho que nunca havia ido a algum), pois achava que se acaba não vendo quase nada e assistindo pelo telão, e porque as grandes aglomerações me incomodam cada vez mais.
— Filha, acho que não vai dar…, comecei a me desculpar, quando o Dabori, mais do que um grande médico um querido amigo, percebendo o teor da conversa, interveio:
— Tá maluco Gama? Tem oportunidade que não se pode perder, ainda mais na nossa idade! Largue tudo e vai!
Larguei e fui.
Cheguei na manhã de sábado no apartamento das meninas, e depois do almoço com as duas, passei o resto do dia, até umas 20 horas, a elaborar as benditas provas e exames. São quatro provas e exames diferentes, com cinco testes e duas questões dissertativas, para cada turma. Dá para imaginar o trabalho e a atenção que isso exige.
Quando a Bell voltou do jornal, lá pelas 21 horas, ainda fomos na companhia do Daniel (jornalista que trabalha com ela, que conheci naquela dia e com quem logo simpatizei) à casa de um casal amigo, Marcelão (que é ator de teatro, cinema e TV, e atualmente encarna um vilão numa novela no SBT) e a fascinante Renata. A casa fica numa pequena vila fechada, na velha Lapa, e é simplesmente deliciosa, fora dos padrões paulistanos. Lá estavam, como não poderia deixar de ser, o Murilo (o filho que não tive) e a Laura, com seu pimpolho Joaquim — que já quer firmar compromisso com a Manuela —, Priscila (a amiga da Bell que nos conseguiu os ingressos de última hora) e o marido Jonas, professor de matemática dos bons, além de transmitir uma alegria esfuziante.
Conheci os dois filhos do primeiro casamento da Renata, Vítor e Bárbara. Ambos são lindos e encantadores, mas se estabeleceu uma imediata afinidade entre o menino Vitor, com seus 12 anos, e este compíscuo senhor, que ele achou “muito diferente”, segundo a mãe. Talvez porque procuro me relacionar com todos, especialmente os que não são da minha faixa etária ou da meu círculo, tentando penetrar no universo deles, para assim enriquecer o meu. Vítor, além de inteligente, sagaz, de uma educação e gentileza incomuns nos dias de hoje, é um garoto lindíssimo, com uma basta cabeleira que lembra a dos jovens Beatles e as feições do menino Kaká em início de carreira (aliás, ele é são-paulino fanático e boleiro, disseram-me que craque, quem sabe um novo Kaká vem por aí?). Quis saber o endereço do meu blog, embora provavelmente o conteúdo daqui possa não ser do seu maior interesse.
Depois de uns 3 ou 15 tragos (não com o Vítor, é claro), e daquelas conversas intermináveis que se enredam como uma teia de Ariadne, cada um tecendo um novo fio a partir do que o outro diz, voltamos alta madrugada, mais uma vez de carona com o Daniel, para o apartamento da Bell.
Acordamos lá pelo meio-dia. Tinha marcado um almoço com o Rockman e a Tuka, que me levaram ao Pomodoro, que adoro, um pouco menos do que adoro eles dois.
Quando me deixaram em casa, lá pelas 16h30, Rockman achava que Bell e eu devíamos ir o quanto antes para o Morumbi, pois mais tarde tudo ia se complicar.
A Bell, com sua experiência em shows e informações jornalísticas privilegiadas de última ou meia hora, disse para eu não me preocupar, que tudo estava tranquilo. Iríamos lá pelas 19 horas, sem problemas, e que não choveria.
Que fazer, a não ser confiar nela?
Com meu costumeiro pessimismo-realista, ainda estava um tanto cético com o super show. Na pista, de pé por umas 5 horas, aguentando empurrões, pisadelas no pé, cotoveladas, doidões de todos os tipos. E na saída, encontrar um táxi para regressar.
Mas se é possível, ainda que por uma única vez, tudo ser absolutamente perfeito e maravilhoso numa noite de domingo e num show de um grande astro pop, essa foi a vez.
Na ida, trânsito tranquilo, tanto que o motorista nos deixou defronte do Morumbi, em vez de parar lá atrás, a cerca de 1 quilômetro, como planejávamos.
É verdade que a fila para a pista era monumental, serpenteando em torno do estádio inteiro. Coisa de uns 4 mil metros, sem exagero algum. O mais difícil foi encontrar o final da fila, que logo se estendeu para muito além de nós. Mas em seguida tudo fluiu com muita rapidez. Sem atropelos. Sem ninguém tentando furar a fila. Tudo na maior civilidade e camaradagem. Conversas de fãs, apoio mútuo, brincadeiras, expectativa crescente.
Entramos por volta das 21 horas no estádio, praticamente já lotado. Ficamos mais ao fundo e à direita da pista, onde havia menos aglomeração e permitia uma visão algo distante, porém muito boa do imenso palco.
Quando britanicamente no horário (apenas uns minutinhos de atraso por culpa, como sempre, da Globo), Sir Paul entrou no palco com sua banda, ele trajando um belo paletó azul (acho que entre o azul celeste e o royal, e que mais tarde tirou, arregaçando as mangas da impecável camisa branca e exibindo vistosos suspensórios), que o destacava dos demais, uma lua esplendorosa sorrateiramente elevou-se sobre as arquibancadas do Morumbi e ali ficou pairando, como a iluminar, assistir e participar do espetáculo.
Absolutamente deslumbrado com os primeiros acordes, com a qualidade do som (nenhuma distorção, nenhum ruído), com a visão de Paul numa forma física exuberante, com a altíssima definição dos dois telões laterais do palco, quase sempre focados na figura da Paul, cantando, nas suas mãos tocando o baixo ou dedilhando o piano, fazendo caras e bocas, brincando com o público, falando algumas frases em um português surpreendente, quase sem sotaque, senti que o sonho não tinha acabado, nem vai se acabar nunca.
O meu velho coração adormecido de roqueiro e beatlemaníaco despertou com seu comboio de cordas acompanhando o ritmo das cordas do baixo, das guitarras, dos violões, piano, pianola e vários outros instrumentos tocados por Paul. Os demais músicos da banda, em especial o baterista eram igualmente excepcionais.
O talento e carisma , a simpatia e presença cênica de Paul são inigualáveis. Aquilo que só tinha visto Simonal fazer certa vez no Maracanãzinho, regendo e fazendo o público cantar (só homens, só mulheres, repetindo o que ele cantava), Paul fez com a maior facilidade, várias vezes.
Olhava ao redor e via vários casais grisalhos, com jovens senhoras ainda muito bonitas e charmosas, se abraçando e beijando, a recordar certamente suas vidas. Pais, avós e filhos se confraternizando, unidos por uma música que desperta a emoção de todos. De vez em quando, alguém acendia um, mas ninguém extrapolou.
Ao meu lado a Bell chorava como quando era menina, eu também queria chorar, sentia um nó no peito, mas simplesmente não conseguia. A euforia me sufocava. Com medo de me dar um troço, extravasei pulando, gritando, cantando, aplaudindo, abraçando e beijando a Bell.
Não senti o tempo passar. Não me senti cansado. Não tive dor nas pernas ou nas costas, não quis me sentar, nem mesmo senti vontade de fazer xixi.
De repente, não mais que de repente, depois de quase três horas, sem intervalo, escalonando músicas pauleiras e românticas, o show terminava. Ainda houve três bis (o paradoxo aqui é inevitável). Num deles, batucando no baixo, Paul improvisou uma pequena canção modulando apenas a palavra São Paulo para que nós, o público, replicássemos seus trilados. Sensacional.
Não houve um único momento de queda do padrão de qualidade do show ou das músicas, mas se além dessa brincadeira improvisada de Paul fosse para escolher o clímax, talvez tenha sido com Live and let die (a Tuka ia morrer), quando fogos de artifícios espocavam e subiam como bólidos rumo ao céu por detrás do palco, onde também se simularam explosões fantásticas. Esse, aliás, foi o único momento de alguma pirotecnia do show, genuinamente de música, interpretada e tocada ao vivo, sem coreografias, dancinhas, recursos de playback e outros artifícios, o que só pode ser feito por quem realmente sabe e pode (viu, Madonna?).
Quando saímos do estádio, a lua ainda estava lá, agora bem em cima do palco, em pleno apogeu.
Andamos poucas quadras e conseguimos um táxi que nos levou rápida e tranquilamente para casa, cobrando apenas R$ 50,00 (na ida, com o velocímetro ligado, pagamos R$ 40,00).
Haveria ainda muito a dizer, enquanto escrevo ouvindo os dois cds com todas as músicas do show, que ganhei da Bell e da Júlia (há também o dvd do mesmo show em Nova Yorq).
A frase definitiva e a síntese perfeita foi da Bell (a quem devo tudo isso) e com ela encerro.
— Quando era criança e me perguntavam o que eu iria ser quando crescesse, não sabia o que responder, porque queria ser um monte de coisas e me confundia. Hoje, se me perguntarem o que eu quero ser quando envelhecer, tenho a resposta na ponta da língua: Paul McCartney.
Live and let die