Posts from novembro, 2010

Jabuti na árvore

 

 

 

 

                      Assim como Vandré já alertava que a vida não se resumia a festivais, tampouco a literatura se resume a premiações de qualquer tipo.

                       Os festivais e as premiações em geral são importantes especialmente pelo incentivo aos autores, tanto novos como consagrados, por divulgar as obras e despertar o interesse do público. As colocações e os vencedores importam menos, e sempre serão passíveis de controvérsia, de preferências e idiossincrasias.

                       O ruim é quando se estabelece um Fla-Flu, com a radicalização típica do torcedor fanático, que prefere que seu time entregue um jogo a ver o rival campeão.

                       Agora puserem o Jabuti na árvore, e há os que querem que Chico Buarque o devolva ao chão, por considerar injusto ou contraditório que o seu romance Leite Derramado, que ficou em segundo lugar na categoria, tenha ganhado depois o prêmio de livro do ano.

                       O Fla-Flu literário se trava entre dois cachorros grandes, Record, que publicou o livro de Edney Silvestre, Se eu fechar os olhos agora, vencedor da categoria melhor romance, e Companhia das Letras, que edita Chico Buarque.

                       Para quem quiser participar, há até mesmo dois abaixo-assinados na internet: Chico, devolve o Jabuti! e Chico Buarque, fique com o seu Jabuti.

                       A polêmica já desbordou do âmbito literário para o ideológico: a Record representaria a direita retrógada, antilulista, por ter no seu catálogo Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli, Merval Pereira, Ferreira Gullar(!); a Companhia das Letras abrigaria a esquerda festiva, pró-Lula, por publicar, além do próprio Chico, José Miguel Wisnik, Marilena Chaui, entre outros (Lula está em todas…).

                       Quanta bobagem!                  

                        Pois vejam só como La Donna è mobile / qual piuma al vento / muta d’accento / e de pensiero. No festival de MPB da TV Record em 1966, Chico Buarque com a sua lírica A Banda, tida por muitos como saudosista e alienada, dividiu o primeiro lugar com a esquerdista Disparada, de Geraldo Vandré. Consta que o próprio Chico teria exigido do júri a declaração de empate sob pena de recusar o prêmio.

                       Já comentei neste blog Leite Derramado e Se eu fechar os olhos agora.

                       O livro do estreante Edney Silvestre foi uma agradável surpresa. Leite Derramado é, de longe, o melhor romance de Chico, que parece finalmente ter acertado a mão como escritor. Mas não fico em cima do muro ou da árvore com o Jabuti: para meu gosto, Leite Derramado é superior, mas isso não desmerece a premiação de Se eu fechar os olhos agora, que por sua vez me agradou bem mais do que os dois primeiros romances de Chico, Estorvo e Benjamim.

                       O regulamento do Prêmio Jabuti pode ser emaranhado, mas quem se inscreveu o aceitou e deveria conhecê-lo. Não vale reclamar depois, ou querer mudar as regras após o fim do jogo.

                       Também no Oscar ocorrem disparates: o melhor diretor frequentemente não é o diretor do melhor filme. O filme mais premiado nem sempre recebe o prêmio de melhor filme.

                       No caso do Jabuti, o melhor romance (eleito por um júri técnico), pode não ser o livro do ano, escolhido pelos associados da Câmara Brasileira do Livro, certamente levando em conta outros critérios, não literários, como repercussão e vendagem. Aliás, o romance de Edney Silvestre ganhou projeção somente após receber o Prêmio São Paulo de Literatura de melhor romance estreante, e depois o próprio Jabuti.

                       Chico e Edney, fiquem com seus Jabutis!

                        E os incomodados que vão pentear macaco.

 

 

 

 

 

 

Eu vos abraço, Milhões

 

 

 

 

                        O polêmico, vaidoso e maledicente Sinhô, José Barbosa da Silva, nascido no Rio de Janeiro em 18 de setembro de 1888 e morto em 4 de agosto de 1930, ao sofrer uma hemoptise fulminante a bordo da velha barca que fazia a travessia entre a Ilha do Governador e o Cais Pharoux, foi um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos e um dos criadores do gênero que passou a ser denominado de “samba”.

                        Manuel Bandeira, que era seu amigo e admirador, escreveu uma belíssima crônica sobre a sua morte e seu enterro, publicada no livro “Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas”, e incluída em “Crônicas da província do Brasil”, assinala: O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um “beijo puro na catedral do amor”, enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica…”

                        Como Sinhô era frequentemente acusado de plagiar composições ou de se apropriar de músicas alheias, costumava responder a seus detratores, com a irreverência e o bom humor que eram sua marca, que “samba é como passarinho, está no ar, é de quem pegar”.

                        Por isso mesmo, e para não dar sopa ao azar, fazia questão de carimbar cada uma de suas partituras com seu nome e assinatura, tornando-se também um dos pioneiros da defesa dos direitos autorais (pelo menos dos dele).

                        Mas não apenas o samba é como passarinho no ar. Também na literatura as ideias volitam soltas à espera de quem as apanhe primeiro.

                        Algumas vezes já me ocorreu uma história, um esboço de poema ou letra de música, que por incapacidade ou falta de tempo não consigo desenvolver e de repente aparece na gaiola de outro, geralmente bem mais cuidado do que eu faria, maravilhando-me com sua rica plumagem e seu gorgeio mavioso.

                        Muitas outras vezes — e aí a emoção é maior ainda — deparo com uma revelação surpreendente, mas que diz o que eu sempre quis dizer, sem que sequer soubesse ainda.

                        Já há algum tempo cogitava escrever uma pequena resenha sobre o mais recente romance de Moacyr Scliar, Eu vos abraço, Milhões, que me encantou e cuja leitura estava prestes a terminar, quando mestre Carlos Heitor Cony, com algumas poucas palavras da sua crônica do último dia 9, na Folha de S. Paulo (O novo livro de Scliar), me tomou todas as minhas pobres palavras.

                        O mais recomendável seria que eu então me calasse e recolhesse à minha insignificância, mas como alguém que acessa este blog pode não ter visto a crônica, e sobretudo porque Cony, que se diz esmorecido de ler novos livros e desatualizado com a literatura, gostou muito do livro, a ponto de afirmar que teve “[…} um momento de verdade ao ler o último romance de Moacyr Scliar […]”, arrisco-me a lhe furtar o passarinho e colocá-lo a cantar aqui.

                        Moacyr Scliar, ano a ano, tem mantido uma produção impressionante, tanto na qualidade, quanto na abundância e diversificação dos temas. Como informa a orelha de Eu vos abraço, Milhões, “É autor de mais de oitenta livros em vários gêneros: romance, conto, ensaio, crônica, ficção infantojuvenil”, além de ser colaborador em vários órgãos de imprensa no país e no exterior. Tudo isso e ainda é médico e participa com frequência de diversos eventos literários que (felizmente) proliferam por todo o país.

                        O intrigante título do livro, que logo me despertou a atenção, é um verso extraído da Ode à Alegria, de Friedrich Schiller, que teria inspirado Beethoven a compor a Nona Sinfonia. Mas, acima de tudo, expressa com perfeição o sentimento do protagonista Valdomiro ou simplesmente Valdo, quando ainda jovem, que se apaixona pelos ideais do comunismo, influenciado por um amigo mais velho que lhe diz: “Abraçar os milhões de seres humanos que compunham as massas, esse deveria ser o nosso ideal”

                        Valdo nasceu e vivia no interior do Rio Grande do Sul, em Santo Ângelo (onde Luís Carlos Prestes chegou em 1922 integrando o 1º Batalhão Ferroviário) e sua revolta latente contra o capitalismo e os capitalistas desperta a partir de uma cena que presencia de sofrida submissão do pai, capataz de uma estância, ao ser estupidamente humilhado pelo patrão.

                        Pouco antes de morrer, devastado por um câncer fulminante, Geninho, o amigo e guru de Valdo, pede-lhe para continuar na luta e que fosse completar seu aprendizado pelas mãos de Atrojildo Pereira, um dos lendários fundadores do PCB, que morava no Rio de Janeiro, para depois regressar ao Rio Grande do Sul, integrar a militância e comandar as massas.

                        Assim, o ainda guri Valdo parte como clandestino num trem de carga para o Rio de Janeiro, a fim de completar sua formação e participar do projeto revolucionário de mudança social.

                        Ouso discordar de Cony que entende não se tratar de um romance de formação, já que Scliar nasceu bem depois do tempo em que se passa a narrativa. Talvez não seja um romance clássico de formação do próprio autor, mas sem dúvida o é em relação a Valdo, que provavelmente terá, apesar da diferença de idade, traços da própria vivência de Scliar.

                        No Rio, nada se passa como havia planejado ou sonhado Valdo. Astrojildo Pereira está fora do Brasil, em Moscou, e ninguém sabe quando voltará. Resta então ao jovem descobrir o mundo por sua própria conta.

                        Para se manter, acaba por trabalhar (e se torna um empregado de confiança tanto do mestre de obras, quanto do engenheiro Heitor Levy, outro personagem real) na construção da monumental obra do Cristo Redentor; acompanha de longe as escaramuças da Revolução de 30, mas assiste à chegada triunfal dos conterrâneos gaúchos no Rio de Janeiro, com o famoso episódio dos cavalos amarrados no obelisco e a tomada do poder por Vargas; faz um curso e se torna um excelente eletricista; descobre o amor ou a paixão com uma linda anarquista, que o manipula e quer que a ajude, graças às facilidades de que dispõe como trabalhador do monumento e aos seus conhecimentos de eletricidade, a colocar explosivos no interior da estátua para explodi-la no momento em que Marconi acionasse da Itália um sinal que acenderia as lâmpadas do Cristo Redentor, na noite da inauguração.

                        Astrojildo Pereira finalmente retorna, mas cai em desgraça, é defenestrado da secretaria-geral e se afasta do Partido Comunista, passa a escrever crítica literária e se torna um reles vendedor de bananas, para completa decepção do jovem Valdo, que nunca chegará a encontrá-lo (sobre a extraordinária figura de Astrojildo, há um pequeno mistério ou um gancho — na verdade um fato que eu já conhecia e muitos também conhecem — que Scliar guarda para o final, e portanto não revelarei).

                        Tudo isso é relatado pelo velho Valdo, apaziguado e com certa ironia nostálgica, em uma carta ao neto nascido nos EUA, que lhe escrevera pedindo informações sobre suas raízes brasileiras e indagando do avô se é feliz.

                        Apesar da idade avançada, Valdo se orgulha de manter a lucidez e, sobretudo, a memória: “Para alguns, mesmo não muito velhos, o rio da memória é um curso de água barrenta que flui, lento e ominoso, trazendo destroços, detritos, cadáveres, restos disso ou daquilo; para mim, não: é uma vigorosa corrente de água límpida e fresca.”

                        Ainda no início do livro, ao tentar responder à pergunta do neto se é feliz, há trechos simplesmente antológicos (que são numerosos ao longo de todo o romance), como este:

 

“De qualquer modo, tua pergunta me faz pensar. E tendo pensado a respeito, acho que posso responder afirmativamente: sim, sou feliz. Quão feliz? Que nota eu atingiria na escala de felicidade, se é que tal coisa existe? Dez sei que não, mas do zero também escapo. E acho que estou acima de cinco, acima da média; se houvesse um exame vestibular de felicidade, provavelmente eu nele passaria, arranhando, mas passaria. Descontada a inevitável angústia — parte existencial, parte neurose propriamente dita (a velhice não nos poupa disso) —, acho que na maior parte do tempo sou razoavelmente feliz. Poderia ser mais feliz, se não tivesse essas dores pelo corpo, se escutasse melhor, se enxergasse melhor… se urinasse melhor já seria uma coisa muito boa. Eu queria, meu neto, que minha urina fluísse impetuosa e alegre como o rio da memória de que te falei antes. Mas a próstata, meu caro, a próstata de um idoso é qualquer coisa de inimaginável em termos de obstáculo e de transtorno. “Crescei e multiplicai-vos”, disse Deus, e a próstata segue esse ditame à sua maneira; não pode multiplicar-se, a não ser através de metástases de um câncer, o que seria, contudo, contraproducente, porque poderia levar ao óbito o corpo que a aloja; mas “crescei” — por que não? Todos querem crescer, sobretudo os empreendedores, e a próstata, a minha pelo menos, é, antes de tudo isso, uma ambiciosa empreendedora. Seu sonho é, mediante um processo de imperialismo biológico, expandir-se, rechaçando para a periferia o frágil, inócuo, descartável portador, o portador em quem o destino a colocou, reduzindo-o a um gnomo enfezado, grotesco, um ser encarquilhado e atrófico que por algum tempo, e antes de desaparecer por completo, servirá de suporte para a descomunal e arrogante glândula.”

 

                        Ao ler Eu vos abraço, Milhões desfrutei — como Cony — de um momento de verdade e arrebatamento, que só os grandes livros são capazes de nos proporcionar.

 

 

 

 

 

 

 

A noite em que São Paulo foi Saint Paul

 

 

 

 

 

              

 

 

 

 

 

 

 

 

          — Pai, consegui dois ingressos de pista para o show do Paul no domingo. Você e eu. É pegar ou largar. Tem que decidir já.

                        Quem poderia ser se não a Bell com suas maravilhosas e repentinas maluquices, falando comigo pelo celular?

                        Era por volta das 11 horas da última sexta-feira e estava entrando na sala do pediatra Dabori, acompanhando a Carolina na consulta mensal da Manuela.

                        Confesso que hesitei. Tinha mil compromissos na segunda-feira, incluindo aulas na faculdade logo às 8 horas. e ainda que elaborar as provas e os exames das minhas 9 turmas para entregar tudo do Setor de Provas também na segunda de manhã.

                        Há muitos e muitos anos não vou a um mega show (na verdade acho que nunca havia ido a algum), pois achava que se acaba não vendo quase nada e assistindo pelo telão, e porque as grandes aglomerações me incomodam cada vez mais.

                        — Filha, acho que não vai dar…, comecei a me desculpar, quando o Dabori, mais do que um grande médico um querido amigo, percebendo o teor da conversa, interveio:

                        — Tá maluco Gama? Tem oportunidade que não se pode perder, ainda mais na nossa idade! Largue tudo e vai!

                        Larguei e fui.

                        Cheguei na manhã de sábado no apartamento das meninas, e depois do almoço com as duas, passei o resto do dia, até umas 20 horas, a elaborar as benditas provas e exames. São quatro provas e exames diferentes, com cinco testes e duas questões dissertativas, para cada turma. Dá para imaginar o trabalho e a atenção que isso exige.

                        Quando a Bell voltou do jornal, lá pelas 21 horas, ainda fomos na companhia do Daniel (jornalista que trabalha com ela, que conheci naquela dia e com quem logo simpatizei) à casa de um casal amigo, Marcelão (que é ator de teatro, cinema e TV, e atualmente encarna um vilão  numa novela no SBT) e a fascinante Renata. A casa fica numa pequena vila fechada, na velha Lapa, e é simplesmente deliciosa, fora dos padrões paulistanos. Lá estavam, como não poderia deixar de ser, o Murilo (o filho que não tive) e a Laura, com seu pimpolho Joaquim — que já quer firmar compromisso com a Manuela —, Priscila (a amiga da Bell que nos conseguiu os ingressos de última hora) e o marido Jonas, professor de matemática dos bons, além de transmitir uma alegria esfuziante.

                        Conheci os dois filhos do primeiro casamento da Renata, Vítor e Bárbara. Ambos são lindos e encantadores, mas se estabeleceu uma imediata afinidade entre o menino Vitor, com seus 12 anos, e este compíscuo senhor, que ele achou “muito diferente”, segundo a mãe. Talvez porque procuro me relacionar com todos, especialmente os que não são da minha faixa etária ou da meu círculo, tentando penetrar no universo deles, para assim enriquecer o meu. Vítor, além de inteligente, sagaz, de uma educação e gentileza incomuns nos dias de hoje, é um garoto lindíssimo, com uma basta cabeleira que lembra a dos jovens Beatles e as feições do menino Kaká em início de carreira (aliás, ele é são-paulino fanático e boleiro, disseram-me que craque, quem sabe um novo Kaká vem por aí?). Quis saber o endereço do meu blog, embora provavelmente o conteúdo daqui possa não ser do seu maior interesse.

                        Depois de uns 3 ou 15 tragos (não com o Vítor, é claro), e daquelas conversas intermináveis que se enredam como uma teia de Ariadne, cada um tecendo um novo fio a partir do que o outro diz, voltamos alta madrugada, mais uma vez de carona com o Daniel, para o apartamento da Bell.

                        Acordamos lá pelo meio-dia. Tinha marcado um almoço com o Rockman e a Tuka, que me levaram ao Pomodoro, que adoro, um pouco menos do que adoro eles dois.

                        Quando me deixaram em casa, lá pelas 16h30, Rockman achava que Bell e eu devíamos ir o quanto antes para o Morumbi, pois mais tarde tudo ia se complicar.

                        A Bell, com sua experiência em shows e informações jornalísticas privilegiadas de última ou meia hora, disse para eu não me preocupar, que tudo estava tranquilo. Iríamos lá pelas 19 horas, sem problemas, e que não choveria.

                        Que fazer, a não ser confiar nela?

                        Com meu costumeiro pessimismo-realista, ainda estava um tanto cético com o super show. Na pista, de pé por umas 5 horas, aguentando empurrões, pisadelas no pé, cotoveladas, doidões de todos os tipos. E na saída, encontrar um táxi para regressar.

                        Mas se é possível, ainda que por uma única vez, tudo ser absolutamente perfeito e maravilhoso numa noite de domingo e num show de um grande astro pop, essa foi a vez.

                        Na ida, trânsito tranquilo, tanto que o motorista nos deixou defronte do Morumbi, em vez de parar lá atrás, a cerca de 1 quilômetro, como planejávamos.

                        É verdade que a fila para a pista era monumental, serpenteando em torno do estádio inteiro. Coisa de uns 4 mil metros, sem exagero algum. O mais difícil foi encontrar o final da fila, que logo se estendeu para muito além de nós. Mas em seguida tudo fluiu com muita rapidez. Sem atropelos. Sem ninguém tentando furar a fila. Tudo na maior civilidade e camaradagem. Conversas de fãs, apoio mútuo, brincadeiras, expectativa crescente.

                        Entramos por volta das 21 horas no estádio, praticamente já lotado. Ficamos mais ao fundo e à direita da pista, onde havia menos aglomeração e permitia uma visão algo distante, porém muito boa do imenso palco.

                        Quando britanicamente no horário (apenas uns minutinhos de atraso por culpa, como sempre, da Globo), Sir Paul entrou no palco com sua banda, ele trajando um belo paletó azul (acho que entre o azul celeste e o royal, e que mais tarde tirou, arregaçando as mangas da impecável camisa branca e exibindo vistosos suspensórios), que o destacava dos demais, uma lua esplendorosa sorrateiramente elevou-se sobre as arquibancadas do Morumbi e ali ficou pairando, como a iluminar, assistir e participar do espetáculo.

                        Absolutamente deslumbrado com os primeiros acordes, com a qualidade do som (nenhuma distorção, nenhum ruído), com a visão de Paul numa forma física exuberante, com a altíssima definição dos dois telões laterais do palco, quase sempre focados na figura da Paul, cantando, nas suas mãos tocando o baixo ou dedilhando o piano, fazendo caras e bocas, brincando com o público, falando algumas frases em um português surpreendente, quase sem sotaque, senti que o sonho não tinha acabado, nem vai se acabar nunca.

                        O meu velho coração adormecido de roqueiro e beatlemaníaco despertou com seu comboio de cordas acompanhando o ritmo das cordas do baixo, das guitarras, dos violões, piano, pianola e vários outros instrumentos tocados por Paul. Os demais músicos da banda, em especial o baterista eram igualmente excepcionais.

                        O talento e carisma , a simpatia e presença cênica de Paul são inigualáveis. Aquilo que só tinha visto Simonal fazer certa vez no Maracanãzinho, regendo e fazendo o público cantar (só homens, só mulheres, repetindo o que ele cantava), Paul fez com a maior facilidade, várias vezes.

                        Olhava ao redor e via vários casais grisalhos, com jovens senhoras ainda muito bonitas e charmosas, se abraçando e beijando, a recordar certamente suas vidas. Pais, avós e filhos se confraternizando, unidos por uma música que desperta a emoção de todos. De vez em quando, alguém acendia um, mas ninguém extrapolou.

                        Ao meu lado a Bell chorava como quando era menina, eu também queria chorar, sentia um nó no peito, mas simplesmente não conseguia. A euforia me sufocava. Com medo de me dar um troço, extravasei pulando, gritando, cantando, aplaudindo, abraçando e beijando a Bell.

                        Não senti o tempo passar. Não me senti cansado. Não tive dor nas pernas ou nas costas, não quis me sentar, nem mesmo senti vontade de fazer xixi.

                        De repente, não mais que de repente, depois de quase três horas, sem intervalo, escalonando músicas pauleiras e românticas, o show terminava. Ainda houve três bis (o paradoxo aqui é inevitável). Num deles, batucando no baixo, Paul improvisou uma pequena canção modulando apenas a palavra São Paulo para que nós, o público, replicássemos seus trilados. Sensacional.

                        Não houve um único momento de queda do padrão de qualidade do show ou das músicas, mas se além dessa brincadeira improvisada de Paul fosse para escolher o clímax, talvez tenha sido com Live and let die (a Tuka ia morrer), quando fogos de artifícios espocavam e subiam como bólidos rumo ao céu por detrás do palco, onde também se simularam explosões fantásticas. Esse, aliás,  foi o único momento de alguma pirotecnia do show, genuinamente de música, interpretada e tocada ao vivo, sem coreografias, dancinhas, recursos de playback e outros artifícios, o que só pode ser feito por quem realmente sabe e pode (viu, Madonna?).

                        Quando saímos do estádio, a lua ainda estava lá, agora bem em cima do palco, em pleno apogeu.

                        Andamos poucas quadras e conseguimos um táxi que nos levou rápida e tranquilamente para casa, cobrando apenas R$ 50,00 (na ida, com o velocímetro ligado, pagamos R$ 40,00).

                        Haveria ainda muito a dizer, enquanto escrevo ouvindo os dois cds com todas as músicas do show, que ganhei da Bell e da Júlia (há também o dvd do mesmo show em Nova Yorq).

                        A frase definitiva e a síntese perfeita foi da Bell (a quem devo tudo isso) e com ela encerro.

                        — Quando era criança e me perguntavam o que eu iria ser quando crescesse, não sabia o que responder, porque queria ser um monte de coisas e me confundia. Hoje, se me perguntarem o que eu quero ser quando envelhecer, tenho a resposta na ponta da língua: Paul McCartney.

 

 

 

 

 

Live and let die

 

 

 

Azul-celeste

 

 

 

 

                                    Não é o céu que é azul

                                    a Terra (com sua água) é azul

                                                           como anunciou ao planeta

                                                           o cosmonauta Gagarin

                                                           a bordo da cápsula Vostok.

 

 

                                    Não são as nuvens

                                    carneirinhos de algodão

                                                           um elefante com sua tromba

                                                            um jacaré ou golfinho

                                                           um cachorrinho e um balão.

 

 

                                   Não é o brilho das estrelas

                                    o que vem até você

                                                           elas nem estão mais lá

                                                           finaram-se, mudaram de lugar

                                                           e apenas o rasto delas se vê.

 

 

                                    É o quanto nos açula

                                    (e serena) a celeste ilusão

                                                           enquanto nos arrastamos

                                                           viventes terrenos

                                                           na poeira do duro chão.

 

 

 

O tempo envelhece depressa

 

 

 

“Perguntei-lhe sobre aquele tempo, quando ainda éramos tão jovens, ingênuos, impetuosos, tontos, despreparados. Algo disso restou, menos a juventude — me  respondeu.”

(Antonio Tabucchi, “O tempo envelhece depressa”, versos atribuídos à grande poeta polonesa Wislawa Szymborska)

 

 

Eu, pecador, me confesso

 

 

 

                        Confesso que foi amor à primeira vista (ainda que se tratasse de uma primeira visão indireta, apenas da imagem dela).

                        Confesso que pensava já haver esgotado os arroubos da paixão.

                        Confesso que sempre me dei bem com as mulheres, tive algumas na vida e, além dela,  ainda mantenho relações amorosas distintas com quatro outras, sem as quais não saberia viver.

                        Confesso que quando finalmente a tive nos braços, todas as velhas paixões adormecidas e aquelas que ainda não havia imaginado arrebataram-me completamente.

                        Confesso que nestes últimos oito meses tenho vivido por e para ela.

                        Confesso que tenho cometido excessos e estou numa idade em que devo me precaver, não sou mais um jovenzinho.

                        Confesso que passo todo o tempo que posso a beijá-la, acariciá-la e a lhe dizer aquelas gracinhas tolas dos apaixonados (com a voz em falsete ou num grave cavernoso), fazendo de tudo para que ela me conceda a graça da sua risada, que para mim soa como sinfonia que jamais olvido.

                        Confesso que de vez em quando a banho e penteio com carinho e devoção que causariam inveja ao Bentinho machadiano.

                        Confesso que me enrosco e rolo com ela na minha cama, e muitas vezes nos arrastamos pelo chão, como bichos.

                        Confesso que, mesmo ela sendo menor de idade, vou levá-la para um hotel neste fim de semana prolongado, para que conheça o mar e o Rio de Janeiro, que então verdadeiramente e para sempre será a Cidade Maravilhosa.

                        Confesso que sou um avô babão, sem remissão.

 

 

 

 

                        Para quem gosta, O Boca do Inferno volta a atacar nas Pílulas.

 

Aquém mar além

 

 

 

Em alguma parte alguma,

ao poeta Ferreira Gullar,

às vezes o cidadão maranhense

José Ribamar Ferreira

 

 

 

                                               Mar

                        de Netuno e Odisseu                                         

                        quimera

 (quisera-te também meu)

 

 

                                                Mar

                        venturoso

                        e saudoso

 (“quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?”)

 

 

                                               Mar

                        tinto de sangue                                

                        que se abre à fé de Moisés

 (ao passo que só tatuo na tua areia o rastro breve dos pés)

 

 

                                               Mar

                        marinho

                        ninho darwiniano                                         

                                    o arminho de tuas ondas

                                    é manto que agasalha a quem                                            

                                    naufraga neste vasto mundo além

                                               Mar

(e nem sequer me chamo Ribamar…)

 

 

                                               Mar

                        oceano                 

                        bento

                        e profano

                                               Mar

                        pleno

                        infindo

                        espaço

                                               Mar

                        Vermelho

                                          Negro

                                                           Morto

                                               Mar

                        maranhoso

                        de arrefice

                        e sargaço

 (em que me encalho aquém porto)

 

 

 

 

 

 

                        Nas Pílulas, algumas reflexões pós-eleição.

Em alguma parte alguma

 

 

 

 

 

 

                        Passados onze anos desde a publicação no seu último livro de poesia, e no ano em que completa oitenta anos, Ferreira Gullar é que nos presenteia com Em alguma parte alguma, que tenho em mãos neste exato instante, mas venho lendo, em completo enlevo, há vários dias.

                        Na realidade venho relendo, porque se trata de um pequeno livro (apenas no tamanho), de pouco mais de cem páginas, em que os poemas vão da página 21 à 130, precedidos de duas visões críticas sobre Ferreira Gullar, assinadas por Alfredo Bosi e Antonio Carlos Secchin, e contendo nas páginas finais alguns dados biográficos do autor e da sua obra.

                        Agradam-me os livros de poesia assim, não muito extensos (salvo evidentemente as Antologias ou Obras Completas), tal como os próprios poemas de Em alguma parte alguma, enxutos, que podem ser lidos em qualquer ordem, indo e voltando, abrindo as páginas ao acaso. Parece então que são os poemas que nos buscam e não nós a eles.

                        Ferreira Gullar, nascido José Ribamar Ferreira, em São Luís do Maranhão, sem dúvida integra o rol dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, já tendo sido indicado duas vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, além das inúmeras premiações de grande importância que recebeu.

                        Sempre foi considerado de esquerda (chegou a ser forçado a se exilar em 1971) e de vanguarda (seja lá o que essas duas expressões tão desgastadas ainda possam significar), bem como integrado às manifestações da cultura popular. Como, apesar da idade e de consagrado, não se acomodou nem parou de pensar e continua a fazer um juízo crítico das suas experiências, ideologias e crenças passou nos últimos tempos a ser patrulhado e tachado de reacionário(?), especialmente por cometer o pecado capital, num Estado que se pretende democrático de direito, de se opor ao governo de Lula, O Impoluto.

                        Mas o que me interessa e de quem quero falar é do poeta, que Ferreira Gullar diz ser “às vezes”.

                        Muito melhor do que eu, falam por ele os seus poemas. Aquele — excepcional — que abre Em alguma parte alguma (aliás, que maravilhoso título!), denominado Fica o não dito por dito, é definido por Alfredo Bosi como “puro pensamento sobre a fundação do poema a partir e no interior da sua própria locução. A palavra existe, mas só na medida em que é dita, como um fiat que sucede o vazio, o nada, o silêncio. Ao ser dita, a poesia instaura um sentido pela própria força de seu produzir-se enquanto verbo.”

                        Por sua vez, Antonio Carlos Secchin assinala: “Com 61 anos de ofício, a poesia de Ferreira Gullar torna-se cada vez mais nova. Neste arrebatador Em alguma parte alguma pulsa a urgência da vida, por meio de um olhar que se lança tanto microscopicamente à textura espessa das frutas condenadas ao apodrecimento, quanto telescopicamente à solidão esquiva e silenciosa do cosmo. Se Fernando Pessoa afirmou: “O que em mim sente está pensando”, podemos dizer, quanto a Gullar, que o que nele pensa está sentindo.”

                        Eis o início e o fecho de Fica o não dito por dito:

 

 

                                   o poema

                                               antes de escrito

                                   não é em mim

                                               mais que um aflito

                                                                       silêncio

                                   ante a página em branco

 

 

                                   ou melhor

                                   um rumor

                                   branco

                                               ou um grito

                                   que estanco

                                                           já que

                                   o poeta

                                               que grita

                                               erra

                                   e como se sabe

                                               bom poeta (ou cabrito)

                                   não berra

 

 

                                   […]

 

 

                                   é que só o que não se sabe é poesia

                                   assim

                                               o poeta inventa

                                               o que dizer

                                   e que só

                                               ao dizê-lo

                                               vai saber

                                   o que

                                               precisava dizer

                                   ou poderia

                                               pelo que o acaso dite

                                   e a vida

                                               provisoriamente

                                               permite