Posts from março, 2011

Reverência e Aversão

 

 

 

                        “Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso da sua beleza e da sua transcendência. Preciso delas contra a vulgaridade do mundo. Quero erguer o meu olhar para seus vitrais brilhantes e me deixar cegar pelas cores etéreas. Preciso do seu esplendor. Preciso dele contra a suja uniformidade das fardas. Quero cobrir-me com o frescor seco das igrejas. Preciso do seu silêncio imperioso. Preciso dele contra a gritaria no pátio da caserna e a conversa frívola dos oportunistas. Quero escutar o som oceânico do órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra a estridência ridícula das marchas. Amo as pessoas que rezam. Preciso de sua imagem. Preciso dela contra o veneno traiçoeiro do supérfluo e da negligência. Quero ler as poderosas palavras da Bíblia. Preciso da força irreal de sua poesia. Preciso dela contra o abandono da linguagem e a ditadura das palavras de ordem. Um mundo sem essas coisas seria um mundo no qual eu não gostaria de viver.

                        Mas existe um outro mundo no qual eu não quero viver: um mundo em que se demoniza o corpo e o pensamento independente e onde as melhores coisas que podemos experimentar são estigmatizadas e consideradas pecado. O mundo em que nos é exigido amar os tiranos, os opressores e assassinos, mesmo quando seus brutais passos marciais ecoam atordoantes pelas vielas ou quando se esgueiram para enterrar, por trás, o aço faiscante no coração de suas vítimas. Entre todas as afrontas que se lançaram do alto dos púlpitos às pessoas, uma das mais absurdas é, sem dúvida, a exigência de perdoar e até de amar essas criaturas. Mesmo se alguém o conseguisse, isso significaria uma falsidade sem igual e um esforço de abnegação desumano que teria que ser pago com a mais completa atrofia. Esse mandamento, esse desvairado e absurdo mandamento do amor para com o inimigo, serve apenas para quebrar as pessoas, para roubar-lhes toda a coragem e toda a autoconfiança e torná-las maleáveis nas mãos dos tiranos para que não consigam encontrar forças para se levantar contra eles, se necessário, com armas.

                        Venero a palavra de Deus, pois amo a sua força poética. Abomino a palavra de Deus, pois odeio a sua crueldade. Este amor é um amor difícil, pois tem que distinguir constantemente entre o brilho das palavras e a subjugação verborrágica a uma divindade presumida. Este ódio é um ódio difícil, pois como é que podemos nos permitir odiar palavras que fazem parte da própria melodia da vida nessa parte da Terra? Palavras que para nós foram dadas como fatais, quando começamos a pressentir que a vida visível não pode ser toda a vida? Palavras sem as quais não seríamos aquilo que somos?

                        Mas não nos esqueçamos: são palavras que exigem de Abraão que sacrifique seu próprio filho como se fosse um animal. O que fazer com a nossa ira quando lemos isto? Um Deus que acusa Jó de disputar com ele quando nada sabe e nada entende? Quem foi que o criou assim? E por que seria menos injusto quando Deus lança alguém no infortúnio sem motivo do que quando um mortal o faz? E Jó não teve todos os motivos para a sua queixa?

                        A poesia da Palavra divina é tão avassaladora que cala tudo e reduz toda e qualquer contestação a um uivo lastimável. É por isso que não se pode simplesmente pôr a Bíblia de lado, mas ela deve ser jogada fora assim que estejamos fartos de suas exigências e do jugo que ela nos impõe. Nela, manifesta-se um Deus avesso à vida, sem alegria, um Deus que quer restringir a poderosa dimensão de uma vida humana — o grande círculo que descreve quando está em plena liberdade — a um só e limitado ponto da obediência. Carregados com o fardo da mágoa e o peso do pecado, ressequidos pela subjugação e pela falta de dignidade da confissão, a testa marcada pela cruz de cinza, devemos marchar em direção à sepultura, na esperança mil vezes contestada de uma vida melhor a Seu lado; mas como pode ser melhor ao lado de alguém que antes nos privou de todos os prazeres e de todas as liberdades?”

 

 

                      

 

                        Depois de algum tempo de abstinência, vamos às Pílulas para remediar a irritação com a mídia chapa branca.

                        E para os que se dispuserem, estou no Blog da Maria Helena, como em todas as terças-feiras.

 

Os olhos de Elisabeth Taylor

 

 

 

 

 

 

 

 

                    

        

                             Rapsódia em violeta

                             desconhece o preto e branco

                             com a luz que resplandece.

                              Quando o primeiro verme corroeu

                              renasceu na estrela derradeira

                              que indelével refulgiu

                              no infinito da saudade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paradoxo I

 

 

                       As palavras

                       ao olvido destinadas

                       emudeceram,

                       e porque calaram

                       não serão olvidadas.

 

 

 

O grande grito

 

 

                        Estive em São Paulo no final de semana passado para ver como ficou, depois de reformado e decorado, o apartamento que a Bell comprou. Maravilhoso, tudo a ver com ela, que foi a própria arquiteta e decoradora.

                        Além disso, na noite de sexta-feira assisti à peça O grande grito, escrita por Gabriela Rabelo e dirigida por José Renato, encenada pelo Grupo Luz e Ribalta, da Cooperativa Paulista de Teatro, que iniciou suas atividades em 1982 e realizou produções que conquistaram diversos prêmios, entre os quais APCA, APETESC, Molière, Governador do Estado.

                        A peça está em cartaz até 17 de abril no Centro Cultural São Paulo, Sala Jardel Filho, sextas e sábados às 21h e nos domingos às 20h, e se baseia em fatos reais, que também foram abordados pela autora em sua tese de doutorado: o afastamento de Mário de Andrade do cargo de Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e o seu grande sofrimento com a inesperada demissão que interrompeu seu trabalho de incentivo, pesquisa e preservação das diversas manifestações da cultura brasileira. Muitos anos depois da morte de Mário de Andrade, um acervo valiosíssimo colhido pela Missão de Pesquisas Folclóricas, coordenada por ele, foi encontrado no porão de uma biblioteca pública de São Paulo, sob goteiras, mofando com a umidade.

                        A peça parte daí. O espírito ou fantasma de Mário preso e agoniado naquele porão por malas-artes de Exu, que lhe exige o cumprimento da promessa feita em vida, de dar à sua imagem o devido reconhecimento e um lugar de destaque. Macunaíma também aparece por ali durante o dia, deixando a constelação da Ursa Maior para conversar com Mário e tentar levá-lo para os vastos campos do céu.

                        Paralelamente a esse entrecho onírico e fantástico, desenrola-se uma trama real, envolvendo um jovem casal, ela filha do porteiro da biblioteca onde se encontra o acervo abandonado; ele, tentando desperadamente deixar as drogas e fugir de traficantes que o perseguem, filho de um empresário de sucesso que se tornou colaborador da Secretaria da Cultura e é velho amigo do porteiro, por meio do qual toma conhecimento das preciosidades existentes no porão.

                        O papel do rapaz drogado é feito por Murilo Inforsato, grande amigo da Bell e a quem considero como um filho. Seu desempenho me comoveu, mas não me surpreendeu, pois sei bem do que ele é e ainda será capaz como ator. Embora moço, emagreceu mais de 5 quilos e raspou a barba para parecer mais jovem, da idade do personagem, entre os 18 e 20 anos.

                        Assim como Murilo, os demais integrantes do elenco têm ótima atuação, mas merece uma referência especial o veterano Augusto Pompeo, que com seus mais de 60 anos faz um Macunaíma absolutamente deslumbrante, na postura, nos trejeitos, na voz. Parece ter nascido para o papel e nada fica a dever a Grande Otelo (chego a pensar se não o supera) que encarnou o personagem no cinema. Igualmente maravilhosa a iluminação de Davi de Brito.

                         Ao longo da peça, um Mário de Andrade angustiado e perplexo com o descaso por tudo aquilo que nos deixou questiona se valeu a pena sacrificar a sua vocação de escritor para se dedicar às outras tantas atividades de pesquisa, descoberta e preservação das nossas raízes, na tentativa de dar uma alma ao Brasil. Chega a se enfurecer com um livro didático que se refere a Macunaíma como um herói indigno, fazendo a costumeira confusão do “herói sem nenhum caráter” com a de um herói sem caráter, da mesma forma que se costuma interpretar equivocadamente o que seja o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda.

                        Ainda sob o impacto da peça, no sábado pela manhã passei pela Livraria Cultura pensando em comprar Macunaíma e um livro de poemas de Mário de Andrade para presentear Murilo e Bell.

                        Depois de muito procurar, acabei apelando para uma funcionária da livraria que, consultando o computador, me informou ter apenas um livro disponível de Mário de Andrade, Contos De Belazarte, e que Macunaíma está esgotado!

                        Senti então na pele e na alma o mesmo desalento de Mário de Andrade na peça.

 

 

 

 

Bobo quem?

 

 

                        Gosto de Maria Bethânia como artista.

                        Muitos não gostam.

                        Mas eu gosto.

                        Talvez porque seja bobo.

                        Ela de vez em quando desafina, semitona, mas acho que é uma grande intérprete de canções e poemas. Ela emociona, arrebata, principalmente se a assistimos ao vivo, e uma lua, um conhaque, botam a gente comovido como o diabo.

                        Mas acho que isso só acontece com os bobos, como eu.

                        Maria Bethânia acaba de conseguir autorização do Ministério da Cultura para captar R$ 1.300.000,00 com a finalidade de criar um blog intitulado “O Mundo Precisa de Poesia”, no qual ela postará diariamente um vídeo interpretando grandes obras, sob a direção do cineasta Andrucha Waddington, ex-marido da Fernandinha Torres.

                        Há pouco tempo, o ex-ministro Juca Ferreira, que foi chefe de gabinete do também ex-ministro Gilberto Gil (amigão da Bethânia e do Caetano) e o substituiu na pasta, autorizou Bethânia a arrecadar outros R$ 1.500.000,00 para uma turnê, apesar do parecer contrário da área técnica do Ministério da Cultura.

                        Mesmo assim ainda gosto da Bethânia como intérprete.

                        Mas eu sou bobo.

                        Tanto assim que ofereço de graça neste blog, sem patrocínio algum, o vídeo do grande Paulo José interpretando um trecho do poema da fulgurante Clarice Lispector, Das vantagens de ser bobo.

                        É que eu adoro ser bobo.

 

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Agora é recordar

 

 

                        Duas maravilhosas interpretações do lindo samba-canção Nossos Momentos, de Haroldo Barbosa e Luiz Reis.

                        A primeira, da divina Elizeth Cardoso, que lançou a música em 1960.

                        A segunda, da não menos divina Gal Costa, digna sucessora de Elizeth.

                        Além da afinação irretocável, do cantar absolutamente natural e das vozes límpidas, é notável a clareza com que ambas dizem as palavras da letra, coisa cada vez mais rara hoje em dia.

                        Nesse aspecto, Gal me parece imbatível. Aliás,  alguns anos atrás, quando precisei me socorrer de uma fonoaudióloga para superar uma crise que me deixou quase sem voz, comentei isso com ela, que não só concordou plenamente, como acrescentou que costumava utilizar as interpretações de Gal para mostrar aos pacientes como respirar e pronunciar com clareza e mínimo esforço. Continuo com meu timbre rouco, mas aprendi muito com as lições e exercícios da competentíssima Sílvia (a fonoaudióloga, de quem me tornei amigo) e o canto mavioso de Gal.

                        Nem seria preciso, mas eis a letra da canção:

  

                                   Momentos são iguais àqueles

                                    Em que eu te amei,

                                   Palavras são iguais àquelas

                                    Que eu te dediquei.

 

                                    Eu escrevi na fria areia

                                   Um nome para amar,

                                    O mar chegou, tudo apagou,

                                   Palavras leva o mar.

 

                                    Teu coração, praia distante

                                    Em meu perdido olhar,

                                    Teu coração, mais inconstante

                                    Que a incerteza do mar.

 

                                   Teu castelo de carinhos

                                    Eu nem pude terminar,

                                    Momentos meus, que foram teus

                                   Agora é recordar.

 

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Número plural

 

 

                                                                        

                                                                     Sozinhos

                                                                                       o homem

                                                                                       e a mulher

                                                    subtraem-se de si mesmos.

 

                                                                     Juntos

                                                    são partes indivisíveis

                                                                                       que se somam

                                                                                       e multiplicam.

 

                                                                      

 

 

 

Tanto ano

 

 

  

 

 

Para a Manuela, no seu primeiro ano de vida (e na sua primeira febre)

 

 

                                                Um ano é muito tempo,

                                                todo o tempo da vida vivida

                                                pouco a pouco apreendida,

                                                luzes, olores, cores, sabores,

 

                                    sons gostosos e assustosos,

                                    bichos encantados e amigos,

                                    o urso com música na barriga,

                                    a boneca que ri e que chora,

 

                                                a bola que rola, a bexiga que estoura,

                                                a lebre que salta do livro,

                                                a primeira febre que arde,

                                                estranha quentura noturna.

 

                                    Um ano é pouco tempo,

                                    fração de uma vida cumprida

                                    mas não de todo entendida,

                                    luzes, olores, cores, sabores

 

                                                e sons que se repetem e esvaecem,

                                                bichos e amigos que fenecem,

                                                até que súbito renascem dela

                                                o urso com música na barriga,

 

                                    a boneca que ri e que chora,

                                    a bola, a bexiga, a lebre alegre,

                                    o amor que se reparte e multiplica,

                                    febre entranha que arde diuturna.