Os bem intencionados

 

 

 

 

“Incrível ver como o povo, uma vez submetido, cai de repente num tão profundo esquecimento de sua liberdade anterior que lhe é impossível despertar e recuperá-la; o povo serve tão bem, e tão voluntariamente, que ao vê-lo dir-se-ia que não apenas perdeu sua liberdade, mas conquistou sua servidão.” (Etienne de La Boétie, Discurso da servidão voluntária)

 

 

 

             — O inferno está calçado de boas intenções, costumava dizer meu avô paterno.

             — Não apenas o inferno, lhe diria hoje este seu neto. Ou talvez o inferno seja por aqui mesmo, como dizem outros.

             É avassalador o número atual de bem intencionados que se arvoram a interferir em nossa vida para nos ensinar a vivê-la, mostrando-nos como ser mais saudável, comer alimentos funcionais, ingerir líquidos, fazer exercícios regularmente, usar camisinha, tomar vacina contra a gripe, dormir pelo menos oito horas, educar os filhos,  planejar o orçamento, não gastar à toa, não ter maus pensamentos, não futucar o nariz.

             Isso tudo sem que lhes tenhamos pedido a opinião ou os bons conselhos, cuja graça nos dão de graça em jornais, folhetos, livros, programas de rádio e televisão, pela internet ou no nosso portão.

             — Acho melhor não, lhes digo a todos, tomando emprestado o bordão de Bartleby, o escrivão.

             O pior e mais preocupante, entretanto, é a cruzada redentora que os governos e órgãos públicos promovem de um tempo a esta parte para nos tornar cidadãos e pessoas melhores, sem vícios e malefícios, bovinamente obedientes e pacientes.

              E assim nos proíbem de fumar, de beber, de ter armas, de levar as crianças nos automóveis sem cadeirinhas e cadeirões especiais (alguém se lembra dos ridículos kits de primeiros socorros que tínhamos de carregar nos carros?), de tomar remédio para emagrecer, enquanto nos obrigam a pagar impostos, pedágios, tarifas, taxas e contribuições, votar nas eleições, prestar serviço militar e morrer pela pátria. Em contrapartida não nos oferecem boas escolas e creches, hospitais decentes, rodovias e ruas seguras, meios de transporte urbano que nos sirvam de locomoção sem comoção, esgotos que nos levem a podridão (sem crase).

             Ainda agora acaba de ser aprovado pelo Congresso Nacional um relevante projeto de lei para que doravante as etiquetas das nossas cuecas nos alertem “sobre importância do exame de câncer de próstata para homens com mais de 40 anos”, as calcinhas, “sobre a importância do uso de preservativos como forma de prevenção do câncer de colo de útero e da realização periódica, por todas as mulheres com vida sexual ativa, de exames de detecção”, e os sutiãs, “sobre a importância do autoexame para detecção de câncer de mama”, além de trazer informações sobre como fazer o exame.

             Fico a imaginar de que tamanho deverão ser essas etiquetas para conter tantos avisos bem intencionados e salvadores, enquanto os saltitantes salteadores da nossa liberdade continuam a lucubrar novos assaltos, para sobressalto nosso.

 

 

 

 

5 comentários

  1. Pois é meu bom amigo Antonio Carlos Augusto, esse é o nosso mundo pósmoderno(?) e contemporâneo! E os bem intencionados sempre querendo “levar” o nosso rico dinheirinho. Como diz o famoso canhotinha Gerson, esse congresso nacional “é brincadeeeiira!!” Falta seriedade, isso sim!

    forte abraço do leitor

    c@urosa

  2. sonia k.
    14/05/11 at 19:05

    Eu fico pasma de ver tanta criatividade em nossos legisladores!Parece sempre que o país está super bem e nada de importante tem para ser tratado, discutido e resolvido! Meu Deus! Onde está a solução para a saúde? Os postos, pronto socorros e hospitais estao cada vez mais ineficientes e carentes de atendimento.
    As pessoas morrem nas filas. Será que entendem que cuidar da saúde são esses pífios métodos de prevenção?
    Realmente não consigo atinar com tanta impertinência!
    Como dizia minha velha mãe para algumas situações: os cachorros da rua não perderam pra você achar…..
    É de rir se não fosse tão grave.
    Onde está a solução para a educação cada vez mais longe de ser real? O MEC já está até autorizando livros que sublimam como “maneira popular de se falar”, divulgando as formas erradas de escrita que a gente tenta tanto corrigir em nossos pequenos no primeiro ciclo escolar. Como vamos defender formas certas?
    E a segurança tão ineficiente que impede-nos de sair às ruas sem temor? Ninguém pode se dar ao “luxo” de discutir assuntos mais pertinentes?

  3. sonia k.
    14/05/11 at 19:13

    Perdoe-me a invasão, mas v. sabe que acompanho seu blog diariamente, mesmo quando não teço comentários.
    Perdoe muito me atrever a dar opinião, mas prefiro o layout anterior. Parecia-me mais claro, de mais fácil leitura. Talvez v. possa fazer outras alterações até pra não cansar o visual – embora eu ache que fixar é uma tática – mas poderá usar cores mais claras, talvez ilustrações, tipo maior e mais forte para facilitar a leitura…. Perdoe o palpite, mas é com a melhor das intenções, tá?

    • 14/05/11 at 21:07

      Sonia, também achei que a as letras tinham ficado meio apagadas. Hoje fiz inovações, tentando melhorar. Acho que consegui. Diga-me o que acha. Beijão.

  4. Lilian
    15/05/11 at 11:17

    A princípio, adorei o novo formato, porque gosto muito de novidades, coisas novas para se ver. Gostei da nova estrela; estou estranhando um pouco as margens escuras. Mas está lindo! O que, entretanto, mais me deixa contente é a sua preocupação em nos proporcionar beleza, aprimoramento neste blog. Muitíssimo obrigada. Mas só os textos já bastariam, ainda que fossem escritos em papiros… rsrs Mas o senhor nunca se contenta e quer mais. Sorte nossa!
    “Conquistar a servidão” (e dela não se abdicar, em hipótese alguma). Muito bom!
    Mas aqui no Brasil, percebo que aquelas boas almas (que o diabo as tenha) que tanto lutaram, num passado recente, pela democracia, brigavam apenas por si mesmos, pelo bem estar que atualmente (e para sempre, creio) usufruem.
    Na França, um país cuja história sempre me chamou a atenção, pior ainda; ou muito me engano ou hoje é “terra de ninguém”, ou melhor, de invasores. Os EUA, então…
    Gostaria de me mudar para o Canadá (ou até para a Inglaterra – Deus salve a rainha!), aonde os rigores do clima parecem desestimular os aproveitadores de sempre. Mas, para “azar” meu, nasci num país lindo e habitado por salteadores.

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