Dois livro e um chopes

 

 

 

“Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.” (Fernando Pessoa, pela fala de Bernardo Soares, em “Livro do Desassossego”)

 

 

            Entre estarrecido e estupidificado (sou mesmo um estúpido por ainda me surpreender com essas asnices de que o Brasil é pródigo) li a notícia de que um capítulo do livro “Por uma Vida Melhor”, da ONG “Ação Educativa” (?), ensina que é correto dizer “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”.

            Segundo preleciona a “obra” (sim, eu disse “obra”) destinada a jovens e adultos, distribuída pelo MEC a mais de quatro mil escolas do país, “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”.

            Preconceito linguístico? Mais uma versão de bullying e de politicamente incorreto?

            Assegura o MEC (ora, o MEC…) que o livro está de acordo com os “Parâmetros Curriculares Nacionais”, que estabelecem normas a ser seguidas por todas as escolas e todos os livros didáticos. “A escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma ‘certa’ de falar, a que parece com a escrita; e o de que a escrita é o espelho da fala.” “Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos”, assinalam os tais parâmetros (ou deveria dizer os tal parâmetro?)

            Mais tarde, assisti pela televisão a uma das que “obraram” (sim, do verbo “obrar”) o livro dizendo coisa parecida em uma entrevista.

            Como diria o esquartejador, vamos por partes. Ou como diria o filósofo, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

            Convém ressaltar que não sou em absoluto contrário à evolução da língua, à introdução de novos termos que a enriqueçam e vivifiquem (como é o caso de algumas gírias ou expressões populares, de termos da informática e de palavras estrangeiras para as quais não temos equivalente perfeito). Caso contrário, como o latim, o português também se tornaria uma língua morta, ou enclausurada em si mesma, de costas para o mundo globalizado.

            O que não significa que a língua possa ou deva ser maltratada, vilipendiada, ignorada nas suas regras comezinhas, porque isso também a mata, e muito mais rapidamente, como, aliás, vem acontecendo.

            Uma coisa é menosprezar ou repelir alguém pelo modo de falar, fora dos padrões da chamada norma culta. Outra, muitíssimo diferente, é a escola ensiná-lo que está correto e os que assim não pensam têm “preconceito linguístico”!

            É óbvio também que a língua falada e a língua escrita muitas vezes se dissociam, e que há modos de falar e escrever menos ou mais formais, de acordo com a circunstância. Não se usa o mesmo vocabulário, nem as mesmas regras gramaticais em uma tese, na sala de aula, em um diálogo profissional e num bilhete, no campo de futebol, em família ou na mesa de bar.

            Mas o indivíduo que no Brasil, a duras penas, tem acesso à escola busca aprimorar-se, descobrir coisas que desconhece, aprender a raciocinar, falar e escrever melhor. E a concordância gramatical é um dos melhores meios de se desenvolver o pensamento lógico.

            Não se trata simplesmente de decorar regras e exceções e se tornar escravo delas — se “excrever ecessões”, o aluno não deve ser esclarecido e corrigido, para não sofrer “preconceito linguístico” ou “mutilação cultural”? — mas de saber o que é correto, para também saber quando transgredir as regras. E há formas e formas, criativas e envolventes, de se ensinar e aprender.

            Adoniran Barbosa é genial e deliciosamente incorreto nas suas letras. Mas ele conhecia a língua e tinha perfeita consciência do que fazia. Guimarães Rosa, idem.

            Em sua Evocação do Recife, Manuel Bandeira (outro que sabia tudo sobre a língua) nos brinda com esta pérola:

 

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

                        Ao passo que nós

                        O que fazemos

                        É macaquear

                        A sintaxe lusíada

 A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem

Terras que não sabia onde ficavam

Recife…

                        Rua da União…

                                               A casa de meu avô…

Nunca pensei que ela acabasse!

Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife…

                        Meu avô morto.

Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.

 

            A língua deve ser como a casa do nosso avô, de que conhecemos os cômodos, os cantos, os cheiros, na qual entramos e passeamos felizes e à vontade como crianças. Mas se não cuidamos dela, um dia a perdemos para sempre, como a infância.

 

 

 

 

 

 

8 comentários

  1. brenno
    17/05/11 at 18:39

    Falou TUDO, Gama! Desde o lance de que a fala é diferente da escrita, pois senão seria, digamos, pedante; até o estilo Adoniram, doce e embriagador.
    E lembrando, também, que nossas crianças tem apenas UMA infância, que deve ser, na medida do possível, conservada até o fim.

    • 17/05/11 at 21:01

      É isso mesmo, parceiro. Se não cuidarmos da infância e da casa do nosso avô, perdemos ambas,assim como a nossa língua.
      Abração.

  2. Aluysio Righetti
    17/05/11 at 20:35

    É essa a revolução do PT. A ignorância passa a ser virtude. Existem dois lugares em que as coisas devem ser ensinadas corretamente, a escola e a familia. Nunca antes nesse país as escolas tiveram tanto abandono do governo. O próximo passo é acabar com familia.

  3. Lilian
    18/05/11 at 11:47

    Agora ficou CLARO demais!… rsrs
    (Refiro-me ao formato da página; escuro me parecia melhor…)

  4. sonia k.
    19/05/11 at 9:34

    O estabelecido pelo MEC é realmente um despropósito.
    Não dá pra acreditar que a gente ia ver e ouvir tais barbaridades.
    Será que os “pensadores” daquele órgão não têm nada de útil pra fazer?
    É o que dá pra pensar. Deve ser mais um bando de desocupados tentando preencher o tempo. Parece pegadinha, de tão absurdo.
    A criançada de hoje nas escolas já têm uma dificuldade de todo tamanho pra aprender alguma coisa e ainda vem o órgão maior (??) pra ajudar a desaprender. Começando pela formação (ou má?) dos professores. Uma judiação. Ontem fui a duas reuniões de pais na escola estadual de meus netos (uma de manhã, outra a tarde). A reunião começou com a explicação da professora: Não vou tratar aqui de casos individuais por ser uma reunião coletiva pra todos.
    E por aí foi. Acho chatíssimas essas reuniões por que não acrescentam nada, mas os pais não podiam e então lá fui eu. Dizem que os velhos se tornam saudosistas e melancólicos, mas tem outro jeito?

    Quanto ao layout do blog me agradou mais assim. Parece-me mais claro e mais amplo. Mesmo que o que mais interessa seja o que ele contém.

  5. Lilian
    19/05/11 at 9:42

    Nossa, tá lindo de novo!
    Perfeito!
    Muito obrigada, Dr.Gama!

  6. Lilian
    19/05/11 at 11:58

    Putz, eu queria tanto fugir dessa discutição…
    Simplesmente porque o assunto me enoja, como tantas outras coisas que estamos vivendo neste império auto-imposto pelos nossos próprios cidadãos, se é que merecem tal qualificação.
    Li, em algum lugar, o texto de alguém que detesta as maiorias. Eu também. Aliás, não só detesto, como também me repugna.
    É isso mesmo; vamos abolir tudo o que possa conter (ou atrasar) o processo de mutilação do povo brasileiro, de algo que se poderia chamar de cultura nacional. Cavemos abismos cada vez mais profundos entre a família imperial que nos governa e os bobos pagadores de impostos. É fácil; basta não fazer nada (da minha parte, se pudesse, voltava correndo pra Portugal…)

  7. Pois é meu bom amigo Antonio Carlos Augusto, essa “molecada” vive procurando argumento para nos contestar. E o nosso sofrível ministério das “letras” não perde a oportunidade de dar tiros no pé. Triste! Lamentável. Já não basta termo que aturar o internetês que já invadiu as nossas escolas!

    forte abraço do leitor,

    c@urosa

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