A morte de Osama bin Laden, e a forma pela qual a ação militar foi executada, incluindo a prática de tortura para obter informações, constitui um dilema moral de alta complexidade que não será resolvido com abordagens simplistas ou maniqueístas, do tipo a favor ou contra, o bem contra o mal, civilizados contra incivilizados, mocinhos contra bandidos.
O terrorismo é hediondo, ignominioso e inadmissível sob qualquer circunstância ou ponto de vista. Mas como enfrentá-lo, como reagir a ele? Com as mesmas armas, olho por olho, dente por dente, os fins justificam os meios?
Tampouco me parece que se possa fincar pé no imperativo categórico kantiano, na pureza imaculada das motivações e das condutas. O terrorismo sequer se compara à guerra, que por mais execrável que seja, pressupõe uma conflagração frontal, em que os inimigos estão determinados.
Na noite de domingo, quando minha mulher me chamou para perto da televisão para assistir ao surpreendente noticiário da morte de Bin Laden, confesso que exultei com o fato de nos livrarmos de um facínora sanguinário, traiçoeiro e covarde. E não posso dizer que esse sentimento tenha desaparecido de todo.
No caso tenho razões pessoais, porquanto no dia 11 de setembro de 2001 estava com minhas três filhas e um sobrinho de 9 anos em Orlando, visitando os parques da Disney, graças ao prêmio que minha filha mais velha, Carolina, havia ganhado pelo comentário que escreveu sobre um dos desenhos da Disney. Era o dia do nosso regresso e, antes de seguirmos para o aeroporto, Carolina e eu estávamos tomando café da manhã no esplendoroso resort em que ficamos hospedados sem despender nenhum tostão (ou dólar), quando assistimos incrédulos pela televisão ao noticiário da primeira colisão e logo em seguida, ao vivo, o segundo avião se chocando contra uma das Torres Gêmeas. No primeiro instante até pensei que se tratasse de um videoteipe, mas logo percebemos que fora atingida a outra torre.
Ficamos retidos por mais cinco dias, sem poder sair das dependências da Disney, à espera da reabertura do espaço aéreo e da retomada dos voos para o Brasil. Consta que no mesmo dia 11 de setembro houve uma tentativa de embarque de terroristas em um avião que decolaria do aeroporto de Orlando, onde embarcaríamos.
Enquanto tentava acalmar as crianças, acompanhei de perto o abalo que representou a ação tresloucada e assassina dos terroristas suicidas capitaneados por Bin Laden. Posso compreender, pois, a reação de júbilo e alívio dos norte-americanos com a notícia da execução daquele algoz cruento e o significado simbólico disso.
Todavia, passadas as primeiras emoções, sobreveio o apelo da racionalidade, da reflexão que nos distingue das bestas-feras.
Mesmo assim, não tenho respostas definitivas, nem mesmo provisórias, e sou tragado pelo redemoinho de contradições, incertezas e absurdos da condição humana.
Nesses momentos, a tábua que me salva, ou pelo menos me enseja voltar à tona para respirar, é a literatura.
Acudiu-me o romance arrebatador e doloroso de J.M. Coetzee À Espera dos Bárbaros, uma alegoria pungente do apartheid e das suas máculas indeléveis que se impregnaram na sociedade sul-africana. Sob a visão, as meditações e lembranças do velho e bonachão magistrado de um vilarejo perdido nos confins de um império inominado, o livro narra a desgraça que sobre ele se abate com a súbita chegada de uma tropa de guardiães da segurança do Estado, com o objetivo de reprimir a todo custo uma suposta rebelião preparada pelos bárbaros que vivem nas cercanias das fronteiras imperiais.
Quase no final, o magistrado recorda-se do julgamento que presidira de um jovem camponês que anos antes havia tentado desertar do exército para ver a mãe e as irmãs:
“A gente não pode fazer o que quer”, eu o admoestei. “Estamos sujeitos à lei, que é maior que qualquer um de nós. O magistrado que mandou você aqui, eu próprio, você — estamos todos sujeitos à lei.” Ele olhou para mim com olhos vazios, esperando para ouvir o castigo, as mãos algemadas nas costas, os dois homens de escolta impassíveis atrás dele. “Você sente que é injusto, eu sei, ser castigado por ter os sentimentos de um bom filho. Acha que sabe o que é justo e o que não é. Eu entendo. Nós todos achamos que sabemos.” Quanto a mim, eu não tinha dúvida, na época, de que a todo momento cada um de nós, homem, mulher, criança, talvez até o pobre cavalo velho que gira a roda do moinho, sabia o que era justo: todas as criaturas vêm ao mundo trazendo com elas a lembrança da justiça. “Mas vivemos num mundo de leis”, eu disse a meu pobre prisioneiro, “um mundo de segundo colocados. Nada se pode fazer a respeito. Somos criaturas decaídas. Tudo o que podemos fazer é preservar as leis, nós todos, sem deixar a lembrança da justiça se apagar.” Depois da admoestação, sentenciei-o. Ele aceitou a sentença sem resmungar, e a escolta o levou embora. Lembro-me da vergonha inquieta que sentia em dias como esse. Saía do tribunal e voltava para meu apartamento, sentava na cadeira de balanço no escuro a noite inteira, sem apetite, até chegar a hora de ir para a cama. “Quando alguns homens sofrem injustamente”, dizia a mim mesmo, “é destino dos que testemunham esse sofrimento envergonhar-se disso.” Mas o consolo ilusório desse raciocínio não conseguia me confortar.”
O romance de Coetzee é claramente inspirado no poema de mesmo título do grego Konstantino Kaváfis, incluído por muitos entre os 100 melhores poemas do século XX.
Nascido em Alexandria, Kaváfis é considerado o mais importante poeta grego do século passado. Ele mesmo se definia como “poeta-historiador”. Em sua obra pouco extensa e publicada apenas postumamente, busca remontar a história da Grécia e do homem do passado, com a soma de todas as paixões que conduzem o destino trágico da aventura humana.
À ESPERA DOS BÁRBAROS
Konstantino Kaváfis
O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
aborrecem arengas, eloquências.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
(tradução de José Paulo Paes)