Posts from junho, 2011

Gestos que calam

 

 

 

                                                                          “Não sabemos da alma senão da nossa;

                                                                           As dos outros são olhares,

                                                                           são gestos, são palavras,

                                                                           com a suposição

                                                                           de qualquer semelhança

                                                                           no fundo.”

                                                                           (Fernando Pessoa)

 

 

 

            Ao sair com meu carro de manhãzinha rumo às aulas da faculdade, dirijo alguns quarteirões até ser surpreendido pelo motorista que segue logo à frente.

            Ele coloca o braço para fora e executa uma perfeita sinalização gestual de que vai dobrar à direita, formando um ângulo reto, com o punho ligeiramente flectido.

            Há quanto tempo não via alguém fazer isso! O seu automóvel é novo e aparenta estar em perfeitas condições, o que torna improvável que se utilize do gesto por causa de algum defeito no pisca-pisca. Prefiro pensar que se trata de um cultor de antigos usos.

            O inopinado gesto alegra minha manhã, e desarrolha aromas e sabores do vinho decantado das lembranças com sua doce embriaguez.

            Aonde andarão ou onde se perderam tantos gestos singelos de delicadeza?

            O bom e velho aperto de mão (que sinaliza que venho em paz e não trago armas) foi substituído pelos beijinhos (quantos devem ser, um, dois ou três?), até mesmo entre marmanjos.

            O que dizer então do toque no chapéu, o breve levantar dele ou a retirada completa da cabeça (cada qual com um significado próprio). Ninguém mais usa chapéu, exceto os falsos sertanejos que se vestem como caubóis. A moda de agora são os múltiplos bonés, de preferência com a aba virada para trás.

            Na guerra do trânsito de hoje, se gestos houver será para xingar o outro e chamar para briga. Pretende-se estabelecer o costume de que se o pedestre esticar o braço, os veículos se detenham e lhe permitam cruzar a rua ou avenida em segurança. Parece que em Brasília deu certo, mas temo que na maioria de nossas grandes cidades o pedestre correrá o risco de ter o braço arrancado ou receber de volta o “OK” norte-americano que cá entre nós tem significado bem diferente, o mesmo do dedo médio em riste, que também passamos a copiar.

            E por falar (ou pensar) em gestos e trânsito, lembra-me o Guarda Luizinho, integrante da antiga Guarda Civil que lamentavelmente foi incorporada e descaracterizada pela atual Polícia Militar ou militaresca que nos legou a ditadura.

            Quando que ingressei no Ministério Público, nos idos de 1975, passei uma breve temporada em São Paulo para participar do curso preparatório dos então novéis promotores substitutos. Naquela época o Guarda Luizinho ainda se achava em plena atividade, nas cercanias do antigo Mappin, na Praça Ramos de Azevedo, e pude vê-lo em ação diversas vezes. Era delicioso acompanhar a gesticulação, a postura, o bom humor permanente e contagiante dele. Pegava pela mão (ou às vezes dava o braço, se fosse mulher) o pedestre afoito ou atrasado e o levava de volta à calçada. Em seguida o presenteava com um pequeno esqueleto de plástico, símbolo do pedestre desatento, segundo avisava. Veículos maiores (kombis e similares) que paravam sobre a faixa de travessia tinham as portas abertas para que os transeuntes passassem por dentro deles. Carregava crianças no colo, ajudando as mães a atravessar a rua. Tudo isso e muito mais sempre sorrindo, gesticulando e fazendo caras e bocas.

            Nesse fluxo de lembranças, chego ao meu destino recordando-me do célebre “Monólogo das Mãos” imortalizado por Procópio Ferreira e que, ao contrário do que muitos pensam, não é de autoria de Oduvaldo Vianna (que apenas o utilizou na sua peça “O Vendedor de Ilusões”), mas sim de Giuseppe Ghiaroni, que o escreveu em 1931, foi redator da Rádio Nacional nos anos 50 e da “Escolinha do professor Raimundo”.

 

“Para que servem as mãos? As mãos servem para pedir, prometer, chamar, conceder, ameaçar, suplicar, exigir, acariciar, recusar, interrogar, admirar, confessar, calcular, comandar, injuriar, incitar, teimar, encorajar, acusar, condenar, absolver, perdoar, desprezar, desafiar, aplaudir, reger, benzer, humilhar, reconciliar, exaltar, construir, trabalhar, escrever …”

[…]

“E nos dois extremos da vida, quando abrimos os olhos para o mundo e quando os fechamos para sempre ainda as mãos prevalecem.

Quando nascemos, para nos levar a carícia do primeiro beijo, são as mãos maternas que nos seguram o corpo pequenino.

E no fim da vida, quando os olhos fecham e o coração pára, o corpo gela e os sentidos desaparecem, são as mãos, ainda brancas de cera que continuam na morte as funções da vida.

E as mãos dos amigos nos conduzem..

E as mãos dos coveiros nos enterram!”

 

            Como os veículos de hoje dispõem até de computador a bordo, quem há de querer se guiar pelas estrelas ou usar as mãos, como fez o motorista à minha frente, para nos indicar o rumo em que vão seguir? Em caso de dúvida, o GPS dirá para onde ir.

            “José, para onde?”