Rogério Tolomei Teixeira é um bancário com cara de nerd, competente e zeloso, que chega sempre no horário e trabalha com afinco durante toda a manhã nos repetitivos serviços burocráticos.
Ao badalar das doze horas, seu expediente se encerra e ele se transforma, como um vampiro do meio-dia, em um monstro sedento e insaciável, que, entre outras aberrações, se regozija em ser um matador de passarinho:
Aqui tem João-de-Barro, pintassilgo, pinta-roxo,
Pica-pau e colibri.
Aqui tem canário belga, araponga, açum-preto,
Curió e bem-te-vi.
Aqui tem tanta andorinha, cambaxirra, quero-quero,
Rouxinol e juriti …
Que servem de tiro ao alvo
para espantar o tédio
e o vazio do existir.
Pá, pá, pá …
Matador de passarinho,
Matador de passarinho,
Matador de passarinho…
[…]
Tico-tico quando voas,
Tico-tico tão arisco, tico-tico tu beliscas
Uns grãozinhos de fubá.
Tico-tico me perdoa mas me vem uma vontade,
Não posso me segurar.
Pá, pá, pá…
Matador de passarinho,
Matador de passarinho,
Matador de passarinho,
Matador de passarinho…
Beija-flor de flor em flor
Beija-flor tu és o rei
Beija-flor te quero bem
Beija-flor se tu soubesse
Beija-flor ah! Se eu pudesse
Beijaria a flor também
Beija-flor tu vais levando
Numa nuvem cor de rosa
Grãos de pólen para quem
Beija-flor tu és tão lindo
Mas chegou a tua hora
Não beijarás mais ninguém
Matador de passarinho,
Matador de passarinho,
Matador de passarinho,
Matador de passarinho…
Essa figura sinistra e niilista sai das entranhas do tímido bancário, como a criatura de “Alien, o Oitavo Passageiro”, e se põe a produzir seus filhotes em forma de poemas e canções escatológicos, terrificantes e iconoclastas, que apavoram pastores e bispos, homens e mulheres pios, criancinhas e velhinhas:
Hei, moço, já matou uma velhinha hoje?
Dessas que atravancam
O meu, o seu, o nosso caminho.
Hei, moço, já matou uma velhinha hoje?
O pensamento lateja
Na minha, na sua, na nossa cabeça.
Hei, moço, já matou uma velhinha hoje?
Tremei pais de família, Mr. Skylab veio para corromper vossos filhos e filhas, abalar vosso mundinho acomodado e certinho.
Há muitos anos faz isso, insuflando nossos baixos instintos a nos falar de excrementos e excrescências, doenças e violências, serial killers que estrangulam freiras, decepam namoradas com motosseras e sentem saudade dos velhos matadouros sanguinolentos:
No Convento das Carmelitas eu entrei.
Esperei uma freira passar, esperei, esperei.
A primeira freira que passou, estrangulei.
Eu não gosto de freira, eu não gosto de frei.
[…]
No Convento das Carmelitas eu entrei.
Esperei outra freira passar, esperei, esperei.
A sexta freira que passou, estrangulei.
Os dias e as mortes em série me fazem tão bem.
Tinha 25 anos de amores e sonhos,
Você era pra mim o meu drops de anis, alecrim,
Era meu rabo de saia,
minha doce amada, linda, linda,
era tudo que eu queria, Rosa e jasmim.
Mas o tempo foi passando,
o tempo é louco, o tempo é todo tempo,
o tempo come o tempo, chegamos ao fim.
Te vi nos braços de um outro,
revirei na cama, passei a noite em claro,
mas no fim das contas, eu descobri:
Moto-serra, moto-serra,
Era a peça que faltava
no meu quarto de dormir,
Moto-serra, moto-serra,
Hoje entendo porque tu olhavas
tanto pro jardim.
Fui serrando os seus pezinhos
que eram para mim a coisa mais bonita
que eu nunca esqueci, prossegui.
Serrei suas duas mãos que eram diamantes
E quando rezavam
pareciam conchas de marfim.
Serrei suas duas pernas,
os seus dois bracinhos,
Você ficou sendo a Vênus de Millus do meu jardim.
[…]
Quanta saudade dos antigos matadouros,
Da vaca prenha abatida sem perdão,
Dos bezerrinhos que gritavam em agonia,
Do sangue quente espalhado pelo chão.
Quanta saudade das mosquinhas varejeiras,
Dos velhos tempos de mulheres e homens sãos,
Dos viadinhos pendurados no curtume,
Do jeito simples de viver uma paixão.
Vem cá, meu bem.
Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol.
Aí então, vou te mostrar o amor pungente.
[…]
Mas família, tradição e propriedade podem agora se tranquilizar, pois em breve estarão salvas e livres de Rogério Skylab que se acha em face terminal. Acaba de lançar seu último disco, de uma coleção de dez, e vai partir para sempre, segundo ele próprio diz:
“Assim, chego ao SKYLAB X.
Com esse “X” que pode ser a letra do alfabeto, mas pode também ser o número dez em algarismos romano, dou por encerrada essa série de discos, iniciada há mais de dez anos.
Aqui, assim como nos anteriores, tem a sátira, o lirismo, o rock, a MPB e a música experimental. A novidade fica por conta de Pedro Dantas no baixo.
Faço parte dos primórdios da música independente no Brasil. E toda minha carreira primou por uma independência que me permitiu fazer do jeito que sempre quis, com absoluta liberdade. Vivi a fase de transição do mercado, quando a indústria fonográfica era pujante e depois passou por uma série crise com o advento da internet. Conheci, portanto, os dois lados da moeda e sou um sobrevivente.
Todavia, me defino como um cadáver dentro da MPB.
Diante da nova configuração do mercado, esse é meu último disco. O curioso é que há mais de dez anos vaticinei esse fim. Meu tema preferido, ao contrário do que muitos afirmam, não é a escatologia, nem a piada, nem o terror. É a morte, simplesmente a morte. E por todos os meus discos, encontram-se referências a ela.
No SKYLAB X não poderia deixar de ser diferente.”
Nessa agonia final, não louva o Brasil, mas a sua verdadeira pátria amada, Plasil:
Entro numa farmácia,
O farmacêutico é fanho,
Pânico na madrugada.
Minha cabeça rodando,
Tomo mais um comprimido,
Se parar eu vomito.
Minha pílula dourada,
Egito que resplandece.
Vício, minha pátria amada.
Plasil, Plasil, Plasil.
Dentro das minhas entranhas
O câncer se desenvolvendo.
Ânsia, vômito, espasmo.
Os nervos à flor da pele,
Sinto um cheiro de ópio
Que bate e me conecta.
Olha só minha glande,
O pensamento é glande,
O meu desejo é glande
.
Plasil, Plasil, Plasil
.
Mais um pico na veia.
De noite eu quase não durmo,
Lexotan na cabeça.
Todo dia Prosac,
Um barulho no quarto,
Um susto, um rato.
Da minha cama eu avisto,
Livros, teias, traças,
O canto negro de um pássaro
.
Plasil, Plasil, Plasil.
Sem o talento, a verve, irreverência e originalidade de Rogério Skylab, haja Plasil para suportar o enjoo e a náusea de um Brasil enfadonho, povoado de sertanejos de afalto, DJs, MCs, funkeiros e pagodeiros idiotizados.
Quem viver, lamentará!
P.S. Com este post já escrito, mas ainda sem publicar aqui, tive a grata surpresa de assistir ontem de noite, no Programa do Jô, a uma entrevista com Rogério Skylab. Foi no mesmo programa que o vi há muitos anos, pela primeira vez. Não me agrada Jô Soares como entrevistador. Acho que quase sempre busca se sobrepor aos convidados, usando-os de escada para se exibir e pontificar, enquanto o bom entrevistador, para mim, deve fazer exatamente o contrário. Mesmo assim, justiça lhe seja feita, Jô foi um dos primeiros a reconhecer os méritos Rogério Skylab e prestigiá-lo, como aconteceu de novo ontem.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=PP50CZmIjgQ]
Antonio, esse indivíduo – vide forma e conteúdo – é limítrofe…
Infelizmente, a mídia abre espaço para ele e o público ri, aplaude. Era da Mediocridade.
Ótimo fim de semana para você e família.
Beijocas da Selminha
Querida amiga, pela primeira vez discordamos (o que não é nada de mais). Acho que Rogério criou um grande “tipo” (esse sim, limítrofe), que denuncia de forma divertida e inteligente as boçalidades e neuroses dos nossos tempos. Essas figuras e bocas malditas sempre existiram, cumprindo um papel importante de nos sacudir e tirar da zona de conforto, Beijão, e ótimo fim de semana para todos daí, também.
Pois é meu bom amigo Antonio Carlos Augusto, eu achei meio assustador! Mas tudo nesse mundo tem seu valor e seu merecimento. Só não pode o artista ser perseguido pelos ecologistas e os membros dos conselhos das crianças e dos adolescentes (risos). Nessa linda terra tupiniquim tudo é permitido, tudo é possível…
forte abraço do seu leitor
c@urosa
Nossa, que nojo! Para quem teve Cazuza e Lobão como expoentes máximos do limite, da inconformidade, esse cara é… um morto vivo. Poderia perfeitamente integrar aquele ballet de zumbis do Thriller do Michael Jackson. Pensando, vendo, melhor, não. Um idiota como esse não deve saber dançar.
http://www.youtube.com/watch?v=lcJmESJlcX0&feature=related
Eu acho então que só eu e vc compartilhamos desse humor bem tosco, bem politicamente incorreto q não tem mais espaço no mundo. Será q vamos sair por aí matando passarinhos ou freiras? q coisa…vou tomar meu plasil, então…
Pois é Carol, o que seria do amarelo se todos gostassem do vermelho!
Há os que gostam do olho e os que gostam da remela (como nós).
Beijão.
Vai me dizer que vocês estão comparando esse cara com um Gregório de Matos?
Se assim for, até as bocas do inferno mudam com o tempo… rsrs
Vejamos um pequeno, e até gracioso, poema do Gregorinho:
“A cada canto um grande conselheiro.
que nos quer governar cabana, e vinha,
não sabem governar sua cozinha,
e podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequentado olheiro,
que a vida do vizinho, e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
para a levar à Praça, e ao Terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
trazidos pelos pés os homens nobres,
posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
todos, os que não furtam, muito pobres,
e eis aqui a cidade da Bahia.”
Lilian, como já disse acima para outra querida amiga, Selma Barcellos, toda controvérsia é saudável e bem-vinda, e todas as opiniões devem ser ouvidas, ainda que para discordar delas.
Cada época tem suas bocas malditas, e como elas são necessárias!
Você citou o grande Gregório de Matos, e eu vou de Carlos Drummond de Andrade. Sempre gostei de música barata, e como ele dizia, “não quero Haendel para meu amigo, nem ouço a matinada dos arcanjos. Basta-me o que veio da rua, sem mensagem, e, como nos perdemos, se perdeu.”
Um beijo.
Esse cara é ótimo, certamente não vai conseguir parar…