.
.
.
“Querido Diário”, a nova canção de Chico Buarque, que — como o seu “Leite Derramado”, — vazou na internet, mas logo foi de novo envasilhada, diz a certa altura:
. .
“Hoje pensei em ter religião
de alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício
por uma estátua ter adoração
amar uma mulher sem orifício.”
.
Para a revista “Veja”, trata-se este último do pior verso da MPB, no século XXI:
.
“Divulgada nesta semana na internet, a música Querido Diário traz o pior verso da MPB no século XXI: “Amar uma mulher sem orifício”. Incensado como “gênio” e “melhor letrista da música brasileira”, o autor do verso é Chico Buarque. A escorregada foi tão feia que quase causa o efeito conhecido como vergonha alheia aquele misto de compaixão e constrangimento que as pessoas sentem por alguém que foi flagrado numa situação ridícula. Quase.
A gama de sentidos de “Amar uma mulher sem orifício” vai de “cultivar um amor platônico” a “desejar uma mulher frígida”. Alguma coisa por aí. Mas havia um desafio a vencer, para além de fazer sentido. Dois versos atrás, encontra-se a palavra “sacrifício”. E esses poetas, o que eles não fazem por uma rima… Lá se foram as vergonhas da moça, e surgiu essa aflitiva “mulher sem orifício”. Pô, Chico. Não podia ser só uma “mulher difícil”?”
. .
A implicância da revista com Chico não é de hoje e decorre das posições políticas dele, de que muitas vezes também discordo. E daí? Isso não invalida nem compromete a qualidade de sua obra e o papel importantíssimo que desempenhou na luta contra a ditadura militar. Aliás, também preferia a “Veja” daqueles tempos.
Chico é sim um excepcional letrista, se não o maior, entre os maiores do nosso cancioneiro. Quem compôs “Construção”, e outras tantas preciosidades, não será por certo daqueles poetas que fazem de tudo por uma rima, como diz maldosamente a crítica da “Veja”.
O verso e a metáfora questionados hão de deliciar alguns e ferir a suscetibilidade de outros, mas longe estão de envergonhar ou desmerecer o poeta. Após ouvir a música, não a incluo pelo menos por enquanto no rol das que mais me agradam da vasta produção de Chico . A meu ver, letra e melodia (que, talvez pelo arranjo, e sem a mesma qualidade, me fez lembrar “Futuros Amantes”, uma das minhas preferidas) alternam altos e baixos, como se os longos períodos de inatividade estivessem a afetar a fluidez e o brilho costumeiros do grande compositor. Mas tudo isso pode ser fruto de um “estranhamento” que as primeiras audições costumam provocar. Não quero, pois, emitir um juízo definitivo sem ouvir muitas outras vezes não apenas esta como as demais músicas do novo disco, que já encomendei.
De todo modo, críticos também desancavam Vinicius de Moraes pelo cacófato “mas cada volta tua há de apagar”, na monumental “Eu sei que vou te amar”, assim como Tom Jobim e o parceiro Newton Mendonça pelos versos “fotografei você na minha Roleiflex / revelou-se a sua enorme ingratidão”, da antológica “Desafinado”.
As duas canções tornaram-se verdadeiros clássicos e daqueles críticos ninguém mais sabe o nome, a reafirmar outros versos de “Desafinado”: “quanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada / ou quase nada”, o que definitivamente não se aplica a Chico Buarque, mas reflete muito bem grande parte do que costuma publicar a revista “Veja”.
.
.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=6i8CsWQZuY0#at=57]
.
.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=LOwQLarDhvI]
.
.
.
.