Língua de trapo

 

 

 

            À primeira vista eles parecem idênticos.

            Como irmãos gêmeos, têm a mesma procedência, a mesma cor clara, as mesmas características.

            Estão sempre juntos, no trabalho e no lazer. Caminham lado a lado, e provavelmente terão o mesmo fim.

            Com um pouco mais de convivência e atenção, porém, as diferenças começam a ser notadas.

            A mais evidente delas é a postura permanentemente à direita de um e radicalmente à esquerda do outro.

            Observando-se bem, outras distinções ressaltam

            O da direita se mantém firme e impecável o tempo todo. Impassível, jamais perde a linha, conservando o mesmo posicionamento.

            O da esquerda, ao contrário, vive destrambelhado. Tem uma língua de trapo, incompatível com a mínima elegância que se deve manter em quaisquer circunstâncias.

            Gosto deles, e como saio frequentemente com ambos, faço de tudo para controlar o da esquerda, impor-lhe boas maneiras, mas não consigo vencer sua rebeldia.

            Como último e desesperado recurso, chego a atá-lo o mais fortemente que consigo, mas mesmo assim escapa e quando me dou conta está com a língua destravada e desaviada à esquerda.

            Desisto!

            A língua do pé esquerdo do meu caro tênis de passeio, por mais que eu faça, insiste em deslizar adentro e para o lado, a me tirar o conforto e o sossego de pequeno burguês.

 

 

 

 

 

 

 

7 comentários

  1. sonia kahawach
    31/08/11 at 22:05

    Vencer o TOC é muito difícil mesmo. Quase uma luta insana.
    Mas, quando comecei a ler e v. tocou no da direita muito certinho, sei lá porque veio-me à mente a figura engomadinha do nosso octogenário presidente do Senado. E o da esquerda todo desalinhado e desengonçado, teimoso convicto, outros me chegaram à lembrança. Ainda bem que era só um declarado TOC com os tênis. Bjs

    • Antonio Carlos
      01/09/11 at 10:59

      Sonia, tenho algumas manias com simetria (talvez porque a vida seja tão assimétrica) e me fiscalizo para não virarem TOC. Por isso desisti, e ando com meu tênis com sua língua de trapo sem me importar com os desvios dela.

  2. Lilian
    01/09/11 at 0:00

    Já não estaria na hora de trocar o tênis, meu caro?
    Ainda mais porque, se for o mesmo da ilustração, aquele acabamento de borracha nas pontas deve quase “esmagar” os dedos.
    Pense num tênis Mizuno; tem uns modelos bem confortáveis, apesar de caros…

    • Antonio Carlos
      01/09/11 at 10:39

      Lílian, o tênis é confortabilíssimo, apesar da língua rebelde. O Mizuno é bom para corridas e caminhadas (tenho um), mas não gosto deles para outras ocasiões.

      • Lilian
        01/09/11 at 15:35

        Acho que entendi: o senhor quer um tênis pra balada!
        Peça ajuda à Dona Macena que ela escolherá um bem legal!

  3. 01/09/11 at 8:39

    Caso típico de incompatibilidade, de rejeição ao conteúdo que vem sendo imposto a ele. Talvez preferisse, desde sua confecção, algo mais feminino e delicado a lhe preencher os espaços e a alma. Sairá do armário.

    Que análise meia-sola…

    Beijocas!

    • Antonio Carlos
      01/09/11 at 10:53

      Minha querida analista, o universo feminino sempre me fascinou e dele me tornei um vivente (ainda que clandestino) com a minha casa e a minha vida plena de meninas (minha mulher, minhas três filhas e agora a Manuela).
      Mas minha alma feminina (acho que todas as almas são femininas) conflita com os pés toscos e dedos destroçados pelos muitos anos de futebol, com tênis e chuteiras horrorosos (como invejo os tênis e chuteiras levíssimos e confortáveis de hoje!). Acho que o tênis, que é delicado, neurotizou esse conflito. Beijocas freudianas.

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