Ao cabo da dura semeadura,
o semeador se farta ao poente
contando com as favas da semente
e a virtude percuciente da espera
engendra a vida, esse largo instante,
na aquarela distante do horizonte.
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A Caixa Econômica Federal resolveu tirar do ar o comercial de comemoração dos seus 150 anos em que Machado de Assis era o protagonista, e emitiu nota pedindo desculpas “a toda a população e, em especial, aos movimentos ligados às causas raciais, por não ter caracterizado o escritor, que era afro-brasileiro, com a sua origem racial.”
Sim, Machado de Assis era interpretado por um ator branco, ou não afrodescendente, para continuarmos com o politicamente correto.
Havia assistido ao comercial apenas uma vez e o que mais me incomodou foi ver o circunspecto Machado de Assis, à sua revelia, bancando o garoto-propaganda de um banco (para mim todos os bancos e banqueiros são suspeitos, e se não soubermos bem do quê, eles, como a mulher de malandro, saberão).
Cheguei a me indagar se apesar disso não seria salutar a divulgação da figura do nosso escritor maior para as novas gerações e outros incautos que só reconhecem a vida e o mundo pelas telas, telinhas e telões. Mas, daquele jeito — francamente! — como Bartleby achei melhor não.
A atuação do ator não me agradou, nem mesmo se assemelhava no gestual e na expressão a Machado de Assis (ou à ideia que faço dele), e cheguei a comentar com minha mulher que ele estava muito branco.
Aliás, há tempos se controverte sobre um paulatino embranquecimento de Machado ao longo da vida, desde o serelepe Machadinho até o augusto patriarca da Academia Brasileira de Letras. Alguns chegam a criticá-lo por isso, pasme-se!
O que lhe embranqueceram foram a barba e os cabelos, além de ter assumido a postura de dignidade que lhe trouxeram o passar dos anos e a madureza, e era comum aos homens de antanho.
Pasquale Cipro Neto comentou o assunto na sua coluna de quinta-feira passada na Folha de S. Paulo, citando os versos da canção “Sugar Cane Fields”, registrada como parceria de Caetano Veloso e do poeta Sousândrade: “Sou um mulato nato / No sentido lato / Mulato democrático do litoral”. Anotou ainda: “Já li e ouvi gente dizendo que a peça publicitária da CEF é racista etc. Cá entre nós, caro leitor: em sã consciência, alguém acha mesmo que nos dias de hoje alguém “embranqueceria” Machado de Assis por preconceito racial? Nem o mais ardoroso e idiota adepto da Ku Klux Klan teria a “brilhante” ideia de “embranquecer” o grande Machado. Será que o problema não é outro? Será que o problema não se chama pura e simplesmente desinformação? Ou, para quem não gosta de eufemismos, ignorância?”
Talvez o professor Pasquale tenha razão, mas racismo e qualquer outro tipo de preconceito são filhotes da madre ignorância, o que em nada atenua o equívoco grosseiro da CEF, dos publicitários e dos demais responsáveis pelo vídeo.
Ocorre-me, a propósito, uma passagem das memórias do ensaísta, poeta, historiador, embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, Alberto da Costa e Silva, que consta do seu livro “Invenção do desenho — Ficções da Memória” (que belo título!), editado pela Nova Fronteira.
No início da sua carreira diplomática, Da Costa e Silva — como o chamavam no Itamaraty — acabou designado para a embaixada em Lisboa, num momento particularmente delicado das relações entre os governos brasileiro, com Juscelino na presidência, e português, sob o comando do ditador Salazar. O mal-estar se agravara em razão da atitude do crítico literário Álvaro Lins, então embaixador em Lisboa (já removido àquela altura e de volta ao Brasil amargurado e furioso por se sentir traído), que dera asilo político na embaixada brasileira ao general oposicionista Humberto Delgado.
Quando teve uma pequena folga em Lisboa, Alberto da Costa e Silva participou de um episódio de sabor machadiano, por ele relatado brevemente:
“Fanor Cumplido trouxe-nos uma novidade: havia localizado nos arredores do Porto duas sobrinhas de Carolina de Machado de Assis e acertara um encontro com elas. Para lá fomos cheios de expectativas, ele, Victor José da Silveira e eu.
As senhoras nos receberam muito bem. E, enquanto nos serviam o chá, perguntaram qual a razão de nossa visita. Por serem elas sobrinhas de d. Carolina Dias de Novaes — explicamos —, queríamos saber se podíamos ter acesso a fotografias, cartas ou qualquer outro documento que dela tivessem. Uma das senhoras respondeu-nos, atenciosíssima, que infelizmente não tinham uma só foto, carta ou memória da tia. Tudo o que dela sabiam é que fora para o Brasil e lá se casara com um preto.”
A CEF — que se jactancia no comercial de haver tido Machado de Assis como cliente — e seus publicitários nem mesmo disso sabiam.
P.S. Este texto foi escrito para o Blog da Maria Helena e publicado lá, ontem. Suscitou diversos comentários, todos reflexivos e carinhosos, embora nem sempre concordando com minha crítica ao equívoco crasso do comercial.
Explico-me, pois.
Alfredo Pujol, um dos primeiros biógrafos de Machado de Assis, informa que ele nasceu “numa pobre habitação de agregados, dependência de antiga chácara do morro do Livramento”, acrescentando que era filho de “um casal de gente de cor, Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis”. Quase todos os demais biógrafos convergem para tais informações, referindo-se a Francisco José de Assis como “pardo forro”, “pintor de casas e dourador” que era um dos agregados daquela chácara, onde conheceu a futura mulher, a açoriana Maria Leopoldina Machado Câmara.
Parece não haver dúvida, pois, de que o Bruxo do Cosme Velho era pelo menos mulato (designação que também vem sendo banida pelo politicamente correto).
Mas isso terá alguma importância?
Parece-me que sim, pelo traço de brasilidade que imprime ao nosso escritor maior, a representar a multiplicidade de matizes de cor da pele do nosso povo, que nunca se verificara antes, em nenhum outro lugar, fruto da caudalosa miscigenação entre o branco europeu, o negro escravo e o índio. É, pois, o menino mestiço, pobre, gago, epilético e sem educação regular que se transformará no criador da língua literária brasileira.
Por isso, a meu ver, quem quiser — por melhores que sejam as intenções — homenagear Machado, e na sua figura e trajetória a própria identidade do povo brasileiro, não pode se descurar disso.
Tornei a assistir ontem ao ótimo documentário (porque isento), Simonal — Ninguém sabe o duro que dei, sobre a trágica trajetória de Wilson Simonal, sem dúvida alguma um dos maiores cantores brasileiros de todos os tempos.
Esse trecho, em que ele, no auge do prestígio, canta com a diva Sarah Vaughan é um exemplo disso. Vejam como ela fica absolutamente fascinada com a interpretação dele, digna de qualquer um dos grandes ícones norte-americanos, como Nat King Cole, Sammy Davis Jr, Johnny Mathis, Tony Bennett e outros do mesmo estilo.
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Selma Couri Barcellos, que conheci pela internet e se tornou uma querida amiga, tem um blog maravilhoso, cujo link se encontra ao lado e merece ser visitado diariamente.
Embora sempre nos reserve surpresas deliciosas e arrebatadoras com sua extraordinária sensibilidade, seu bom humor e talento de ser, há poucos dias superou-se com a descoberta e postagem de um vídeo tão raro quanto precioso, produzido pelo Instituto Nacional do Livro em 1959, com roteiro e direção de Joaquim Pedro de Andrade, tendo nada menos do que Domingos de Oliveira como assistente.
Trata-se de um pequeno documentário primoroso em que transitamos ao lado de Manuel Bandeira, acompanhando o poeta nas prosaicas atividades do seu cotidiano de uma simplicidade franciscana, ir até à mercaria para comprar o leite em garrafa (atenção para a célebre tossinha de tísico profissional, enquanto aguarda), e depois, já em casa e vestindo o robe, esquentá-lo, torrar o pão e saboreá-los diante da janela aberta para o mundo.
Atender ao telefone, conversar com alguém (quem seria?) e abrir o largo sorriso dentuço e cativante, desvestir o pijama, calçar as meias, dar o nó na gravata e, de terno composto, sair para a rua, comprar o jornal do dia (quase que se esquece do troco), cumprimentar efusivamente um amigo com o qual cruza (quem seria?). Tudo isso com sua voz tão característica ao fundo, dizendo alguns de seus inesquecíveis poemas.
E aquele engenho de marcenaria, que se desloca e lhe permite escrever confortavelmente recostado na cama? A máquina portátil (ainda conservo uma, parecidíssima, que foi a minha primeira), as lindas estantes com seus livros e objetos de estimação, o apartamento de solteirão, com cada coisa em seu lugar.
Poderia ser aquele mesmo quarto por ele eternizado em Última Canção do Beco. Façamos de conta que sim.
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amôres,
Dos meus beijos, dos meus sonhos)
Adeus para nunca mais!
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternindade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Beco das sarças de fogo,
Das paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!
Beco das minhas tristezas
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas…
E eras só de pobres quando
Pobre, vim morar aqui.
Lapa — Lapa do Destêrro —
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)
Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmola para os pobres,
Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida que é santa,
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante,
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!
Consta que Manuel Bandeira gostava de ser fotografado e de posar para amigos pintores (ao lado um desenho de Portinari), daí talvez o completo à vontade em que se apresenta no filme.
Para ir direto ao post da Selma e assistir ao vídeo (imperdível, acho que já o vi umas vinte vezes), basta clicar aqui.
Há alguns dias “los hermanos” argentinos perderam o Campeonato Mundial de Tango disputado em plena Buenos Aires, no esplendoroso Teatro Colón.
Não chegaram sequer na final, disputada por um casal venezuelano e outro colombiano, que ganhou o título.
Não bastasse isso, eis aqui uma lindíssima violinista chinesa tocando Astor Piazzolla em ritmo de bossa-nova (com um pianinho jobiniano ao fundo).
Em seguida, o próprio mestre Piazzolla e o grande Anibal Troilo interpretando o clássico “Volver”, de Gardel (que teria nascido em Toulouse, França, ou em Tacuarembó, Uruguai) e Le Pera (que nasceu em São Paulo).
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[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=pPHflQeHCyg&feature=related]
Do inigualável e sempre mestre Millôr Fernandes
“O destino cruzou o caminho de D. Pedro em situação de desconforto e nenhuma elegância. Ao se aproximar do riacho do Ipiranga, às 16h30 de 7 de setembro de 1822, o príncipe regente, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, estava com dor de barriga. A causa dos distúrbios intestinais é desconhecida. Acredita-se que tenha sido algum alimento malconservado ingerido no dia anterior em Santos, no litoral paulista, ou a água contaminada das bicas e chafarizes que abasteciam as tropas de mula na serra do Mar. Testemunha dos acontecimentos, o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo, subcomandante da guarda de honra e futuro barão de Pindamonhangaba, usou em suas memórias um eufemismo para descrever a situação do príncipe. Segundo ele, a intervalos regulares D. Pedro se via obrigado a apear do animal que o transportava para “prover-se” no denso matagal que cobria as margens da estrada.
A montaria usada por D. Pedro nem de longe lembrava o fogoso alazão que, meio século mais tarde, o pintor Pedro Américo colocaria no quadro “Independência ou Morte”, também chamado de “O Grito do Ipiranga”, a mais conhecida cena do acontecimento. O coronel Marcondes se refere ao animal como uma “baia gateada”. Outra testemunha, o padre mineiro Belchior Pinheiro Oliveira, cita uma “bela besta baia”. Em outras palavras, uma mula sem nenhum charme, porém forte e confiável. Era esta a forma correta e segura de subir a serra do Mar naquela época de caminhos íngremes, enlameados e esburacados.
Foi, portanto, como um simples tropeiro, coberto pela lama e a poeira do caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo e de seu tempo, que D. Pedro proclamou a Independência do Brasil. A cena real é bucólica e prosaica, mais brasileira e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo. E, ainda assim, importantíssima. Ela marca o início da história do Brasil como nação independente.
[…]
“Quatro anos mais tarde, em depoimento por escrito, padre Belchior registrou o que havia testemunhado a seguir:
D Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para mim e disse:
— E agora, padre Belchior?
Eu respondi prontamente:
— Se Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das cortes e, talvez, deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação.
D. Pedro caminhou alguns passos, silenciosamente, acompanhado por mim, Cordeiro, Bregaro, Carlota e outros, em direção aos animais que se achavam à beira do caminho. De repente, estacou já no meio da estrada, dizendo-me:
— Padre Belchior, eles o querem, eles terão a sua conta. As cortes me perseguem, chamam-se com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora o que vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal.
Respondemos imediatamente, com entusiasmo:
— Viva a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva D. Pedro”
O príncipe virou-se para o seu ajudante de ordens e falou:
— Diga à minha guarda que eu acabo de fazer a Independência do Brasil. Estamos separados de Portugal.
O tenente Canto e Melo cavalgou em direção a uma venda, onde se achavam quase todos os dragões da guarda.”
[…]
“A proclamação de D. Pedro descrita pelo coronel Marcondes é chamada por alguns historiadores de “Segundo Brado do Ipiranga”. Aconteceu alguns minutos depois do primeiro, já na meia encosta da colina, a cerca de quatrocentos metros do riacho. É interessante observar as sutilezas entre os dois gritos do Ipiranga. O primeiro ocorreu de forma mais simples, na presença de um grupo restrito e revela traços de indecisão na atitude de D. Pedro. O segundo, solene e convicto, perante a guarda de honra, é o que ficou registrado na memória nacional. O relato do padre a respeito desse segundo grito confirma a versão de Marcondes, embora com palavras diferentes. Por ele, diante da guarda, o príncipe repetiu, agora em tom mais enfático, a declaração que fizera momentos antes:
— Amigos, as cortes portuguesas querem mesmo escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais.
E, arrancando do chapéu o laço azul e branco, decretado pelas cortes como símbolo da nação portuguesa, atirou ao chão dizendo:
— Laço fora, soldados! Viva a Independência e a liberdade do Brasil.
Respondemos com um viva ao Brasil independente e a D. Pedro.
O príncipe desembainhou a espada, no que foi acompanhado pelos militares. Os acompanhantes civis tiraram os chapéus. E D. Pedro disse:
— Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil.
— Juramos — respondemos todos.
D. Pedro embainhou novamente a espada, no que foi imitado pela guarda, pôs-se à frente da comitiva e voltou-se ficando em pé nos estribos:
— Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte; e as nossas cores, verde e amarelo, em substituição às das cortes.”
Excerto do ótimo livro “1822”, de Laurentino Gomes.
De manhã, minha filha me telefona de São Paulo, e pelo tom de sua voz ao me cumprimentar já sei que aconteceu algo.
Ela acabara de receber a notícia da morte de um antigo companheiro de trabalho, vítima de uma doença degenerativa. Estava comovida e carente, pois o colega havia sido uma espécie de mentor dela quando dava os primeiros passos no ofício.
“Com quantos anos ele estava?”, pergunto-lhe, para logo me dar conta da estupidez dessa indagação. O que importa isso agora?
No fundo, quero saber se ele era mais moço ou mais velho do que eu, como se tal circunstância servisse de alguma coisa.
Ela parece captar meu propósito inconfesso e responde: “Não sei bem, acho que regulava com você. Tinha dois netinhos.”
Em seguida conta-me sobre o sofrimento dele com o avanço devastador da doença. Não mais saía de casa, nem atendia telefone porque a voz se tornara trôpega e quase inaudível. Comunicava-se apenas por e-mail e pelo Facebook.
“Entrei há pouco no Facebook dele”, me diz, “e ainda está lá a mensagem de aniversário que você postou”.
Tivemos pouco contato, mas gostava dele e lhe era grato pelo apoio que deu à minha filha.
Outra idiotice me ocorre, mas dessa vez me calo. Quem irá remover o Facebook e o e-mail dele? Que triste missão para um familiar ou alguém de sua intimidade! Não será melhor deixar tudo como está, até que suas pegadas pouco a pouco se apaguem na poeira da rede?
Conversamos longamente sobre a vida e a perplexidade que a morte sempre nos causa, apesar de a carregarmos o tempo todo conosco, como aquela tarde de maio.
A trezentos quilômetros de distância, ela quer colo. Não sei se posso dá-lo. Preciso de colo também, e já não tenho quem possa me dar.
Como era bom quando ela era pequenina e o meu colo, algumas palavras, um carinho, segurar-lhe a mão tinham um efeito mágico.
Ela foi muito arteira e se machucava com frequência. Quando tinha de ir ao médico para suturar as feridas, e até mesmo para tirar um anel enfiado à força no dedo que inchara e começara a roxear, só queria a mim por perto, falando com ela, acalmando-a, dando-lhe uma força que eu mesmo não tinha, ao vê-la sofrendo. Isso bastava para lhe dar coragem de enfrentar tudo, e ela saía orgulhosa de si mesma depois, exibindo os curativos como se fossem medalhas.
Como curá-la agora dessas outras feridas, se a vida não tem cura?
Conversamos longamente. Eu a consolo; ela me consola.
No final da conversa, ela me parece melhor, um pouco aliviada.
Também eu estou melhor e aliviado, ao sentir que talvez não se perca de todo a magia de ser pai.