Posts from setembro, 2011

O "preto" Machado

 

 

 

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            A Caixa Econômica Federal resolveu tirar do ar o comercial de comemoração dos seus 150 anos em que Machado de Assis era o protagonista, e emitiu nota pedindo desculpas “a toda a população e, em especial, aos movimentos ligados às causas raciais, por não ter caracterizado o escritor, que era afro-brasileiro, com a sua origem racial.”

            Sim, Machado de Assis era interpretado por um ator branco, ou não afrodescendente, para continuarmos com o politicamente correto.

            Havia assistido ao comercial apenas uma vez e o que mais me incomodou foi ver o circunspecto Machado de Assis, à sua revelia, bancando o garoto-propaganda de um banco (para mim todos os bancos e banqueiros são suspeitos, e se não soubermos bem do quê, eles, como a mulher de malandro, saberão).

            Cheguei a me indagar se apesar disso não seria salutar a divulgação da figura do nosso escritor maior para as novas gerações e outros incautos que só reconhecem a vida e o mundo pelas telas, telinhas e telões. Mas, daquele jeito — francamente! — como Bartleby achei melhor não.

            A atuação do ator não me agradou, nem mesmo se assemelhava no gestual e na expressão a Machado de Assis (ou à ideia que faço dele), e cheguei a comentar com minha mulher que ele estava muito branco.

            Aliás, há tempos se controverte sobre um paulatino embranquecimento de Machado ao longo da vida, desde o serelepe Machadinho até o augusto patriarca da Academia Brasileira de Letras. Alguns chegam a criticá-lo por isso, pasme-se!

            O que lhe embranqueceram foram a barba e os cabelos, além de ter assumido a postura de dignidade que lhe trouxeram o passar dos anos e a madureza, e era comum aos homens de antanho.

            Pasquale Cipro Neto comentou o assunto na sua coluna de quinta-feira passada na Folha de S. Paulo, citando os versos da canção “Sugar Cane Fields”, registrada como parceria de Caetano Veloso e do poeta Sousândrade: “Sou um mulato nato / No sentido lato / Mulato democrático do litoral”. Anotou ainda: “Já li e ouvi gente dizendo que a peça publicitária da CEF é racista etc. Cá entre nós, caro leitor: em sã consciência, alguém acha mesmo que nos dias de hoje alguém “embranqueceria” Machado de Assis por preconceito racial? Nem o mais ardoroso e idiota adepto da Ku Klux Klan teria a “brilhante” ideia de “embranquecer” o grande Machado. Será que o problema não é outro? Será que o problema não se chama pura e simplesmente desinformação? Ou, para quem não gosta de eufemismos, ignorância?”

            Talvez o professor Pasquale tenha razão, mas racismo e qualquer outro tipo de preconceito são filhotes da madre ignorância, o que em nada atenua o equívoco grosseiro da CEF, dos publicitários e dos demais responsáveis pelo vídeo.

            Ocorre-me, a propósito, uma passagem das memórias do ensaísta, poeta, historiador, embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, Alberto da Costa e Silva, que consta do seu livro “Invenção do desenho — Ficções da Memória” (que belo título!), editado pela Nova Fronteira.

            No início da sua carreira diplomática, Da Costa e Silva — como o chamavam no Itamaraty — acabou designado para a embaixada em Lisboa, num momento particularmente delicado das relações entre os governos brasileiro, com Juscelino na presidência, e português, sob o comando do ditador Salazar. O mal-estar se agravara em razão da atitude do crítico literário Álvaro Lins, então embaixador em Lisboa (já removido àquela altura e de volta ao Brasil amargurado e furioso por se sentir traído), que dera asilo político na embaixada brasileira ao general oposicionista Humberto Delgado.

            Quando teve uma pequena folga em Lisboa, Alberto da Costa e Silva participou de um episódio de sabor machadiano, por ele relatado brevemente:

 

“Fanor Cumplido trouxe-nos uma novidade: havia localizado nos arredores do Porto duas sobrinhas de Carolina de Machado de Assis e acertara um encontro com elas. Para lá fomos cheios de expectativas, ele, Victor José da Silveira e eu.

As senhoras nos receberam muito bem. E, enquanto nos serviam o chá, perguntaram qual a razão de nossa visita. Por serem elas sobrinhas de d. Carolina Dias de Novaes — explicamos —, queríamos saber se podíamos ter acesso a fotografias, cartas ou qualquer outro documento que dela tivessem. Uma das senhoras respondeu-nos, atenciosíssima, que infelizmente não tinham uma só foto, carta ou memória da tia. Tudo o que dela sabiam é que fora para o Brasil e lá se casara com um preto.”

 

            A CEF — que se jactancia no comercial de haver tido Machado de Assis como cliente — e seus publicitários nem mesmo disso sabiam.

 

 

 

P.S.     Este texto foi escrito para o Blog da Maria Helena e publicado lá, ontem. Suscitou diversos comentários, todos reflexivos e carinhosos, embora nem sempre concordando com minha crítica ao equívoco crasso do comercial.

            Explico-me, pois.

            Alfredo Pujol, um dos primeiros biógrafos de Machado de Assis, informa que ele nasceu “numa pobre habitação de agregados, dependência de antiga chácara do morro do Livramento”, acrescentando que era filho de “um casal de gente de cor, Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis”. Quase todos os demais biógrafos convergem para tais informações, referindo-se a Francisco José de Assis como “pardo forro”, “pintor de casas e dourador” que era um dos agregados daquela chácara, onde conheceu a futura mulher, a açoriana Maria Leopoldina Machado Câmara.

            Parece não haver dúvida, pois, de que o Bruxo do Cosme Velho era pelo menos mulato (designação que também vem sendo banida pelo politicamente correto).

            Mas isso terá alguma importância?

            Parece-me que sim, pelo traço de brasilidade que imprime ao nosso escritor maior, a representar a multiplicidade de matizes de cor da pele do nosso povo, que nunca se verificara antes, em nenhum outro lugar, fruto da caudalosa miscigenação entre o branco europeu, o negro escravo e o índio. É, pois, o menino mestiço, pobre, gago, epilético e sem educação regular que se transformará no criador da língua literária brasileira.

            Por isso, a meu ver, quem quiser — por melhores que sejam as intenções — homenagear Machado, e na sua figura e trajetória a própria identidade do povo brasileiro, não pode se descurar disso.