“Que nada João! Deixa de ser bobo! Pára com isso! Que mania que vocês têm de dizer que fulano é bom, que beltrano é melhor, que Cartola é bom, que o Tom e Vinicius são bons, que eu sou o máximo… Eles são tudo igual a gente, rapaz: eles fazem música porque não gostam de trabalhar!” (Em resposta ao parceiro e compadre João da Viola, que o censurava por tê-lo apresentado a Tom Jobim como um “grande compositor.”)
Se tentássemos cumprimentá-lo agora, por certo ele daria de ombros, soltaria um muxoxo roufenho e sairia andando sem olhar para trás, com o cigarro no canto da boca.
A sua resposta ele já havia dado em vida, muitos anos atrás:
“Sei que amanhã
Quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração
Alguns até hão de chorar
E querer me homenagear
Fazendo de ouro um violão
Mas depois que o tempo passar
Sei que ninguém vai se lembrar
Que eu fui embora
Por isso é que eu penso assim
Se alguém quiser fazer por mim
Que faça agora.
Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga,
Para aliviar meus ais.
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais.”
Mas ele merece preces, flores e muito mais, nos seus cem anos completados neste 29 de outubro.
Completados sim, porque artistas da grandeza dele não morrem jamais, nunca vão embora, permanecem na sua obra e na nossa saudade, por mais que o tempo passe.
Denominado por muitos de “profeta dos desenganos” devido aos seus sambas em que canta as desilusões amorosas, as angústias e traições da vida, sempre com uma dose de pessimismo e amargura, Nelson Antônio da Silva nasceu no dia 29 de outubro de 1911 e ganhou o apelido de Nelson Cavaquinho por ser esse o seu instrumento nas rodas de choro que frequentava na juventude. O apelido se manteve mesmo após trocar o cavaquinho pelo violão.
Seu pai tocava tuba na banda da Polícia Militar carioca e ele próprio tornou-se policial, fazendo rondas noturnas a cavalo pela cidade, durante as quais conheceu músicos como Cartola, Carlos Cachaça, Zé da Zilda, dos quais se tornou amigo (e que certa vez lhe esconderam o cavalo depois de uma noitada). Logo aderiu ao samba e a boêmia, adotou a Mangueira como sua Escola, e tratou de dar baixa da tropa antes que dessem baixa dele. A PM perdeu um soldado sem vocação, e o Brasil ganhou um dos seus compositores de maior talento.
“Totalmente desapegado de bens materiais, vendeu grande parte de sua produção, ou pagou dívidas dando parcerias a desconhecidos”, relata Arley Pereira em “A história da música popular brasileira por seus autores e intérpretes”.
Em razão disso, andou estremecido com Cartola, que nunca aceitou negociar suas canções e reclamou com ele quando soube que vendera um samba que haviam feito em parceria (“Devia ser condenada”). Como tinha composto sozinho a primeira parte, e Cartola, a segunda, Nelson não se intimidou e respondeu: “Eu vendi a minha parte…. Tava duro e vendi.”
Resolveram, então, não mais trabalhar juntos para manter a amizade.
O grande parceiro de Nelson, apesar do estilo de vida e temperamento opostos, foi o excepcional Guilherme de Brito. São dos dois entre tantas outras as antológicas “Folhas secas”, “Choro do adeus” “Pranto do poeta”,“O Bem e o Mal”, “Minha festa”, “Luto”, “Tatuagem”, “Quando eu me chamar saudade”, “A flor e o espinho”.
O verso de Orestes Barbosa em “Chão de Estrelas” — “Tu pisavas os astros, distraída,” — era considerado por Manuel Bandeira como um dos mais belos da poética brasileira. Certamente diria o mesmo deste outro: “Tire o seu sorriso do meu caminho / que eu quero passar com a minha dor”, de “A flor e o espinho”.
Nelson deixou mais de 400 composições, nenhuma delas menos do que ótima. Sua primeira música a ser gravada, pelo iniciante Alcides Gerardi, foi “Não faça vontade a ela”, em 1939, mas somente quando Cyro Monteiro o descobriu, muitos anos depois, é que começou a se destacar no meio artístico. Seu primeiro disco, “Depoimento de poeta”, só viria a ser lançado em 1970.
Em 18 de fevereiro de 1986, aos 74 anos, vítima de enfisema pulmonar, ele passou a se chamar saudade.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=ZVSK931MSzk&feature=related]
Parte final do documentário realizado em 1969 por Leon Hirszman.