Quem é esse sujeito mofino que espantado me olha do espelho?
Até que se parece comigo, mas que é dos óculos que há tanto uso e sem os quais não me enxergo?
Desde 28 de outubro passado é assim que me vejo, e me estranho, no espelho logo de manhã, quando lavo o rosto e escovo os dentes.
No dia anterior, submeti-me à cirurgia de catarata no olho esquerdo e, além da dita cuja, a lente colocada em substituição ao cristalino corrigiu minha miopia e meu astigmatismo, companheiros velhos de guerra.
Já na manhã seguinte, sem o tampão que o médico me autorizou a tirar, me vi com um olho de águia, sem necessidade dos óculos no nariz.
O problema é que o outro olho continua de morcego, e aí parece que estou com um tampão invisível nele.
E o olho de águia só funciona para longe. De perto, é o de morcego que ainda me vale (e mal).
Segundo o médico, é só um pequeno incômodo passageiro, e tudo se resolverá com a cirurgia no outro olho, que farei até o final deste mês.
Enquanto isso, porém, além do estranhamento com minha nova figura, tenho penado para ler e escrever. Os dois olhos não se entendem, as letras e linhas começam a embaralhar, acabo me irritando e desisto, lacrimejante. Diante do computador é mesma coisa, e como sou obrigado a usá-lo o dia todo no trabalho, não me sobra ânimo nos breves momentos de folga, como agora.
Por isso, enquanto não escrevo, deixo aqui as razões de um grande e verdadeiro escritor para escrever.
Por que escrevo?
Julio Cortázar
“Eu gostava de algumas palavras, não gostava de outras, algumas tinham certo desenho, uma certa cor. Uma de minhas lembranças de quando estava doente (fui um menino muito doente, passava longas temporadas de cama com asma e pleurisia, coisas desse tipo) é a de me ver escrevendo palavras com o dedo, contra uma parede. Eu esticava o dedo e escrevia palavras, e via as palavras se formando no ar. Palavras que eram, muitas vezes, fetiches, palavras mágicas. Isso é algo que depois me perseguiu ao longo da vida. Havia certos nomes próprios ― e sei lá por quê ― que para mim tinham uma carga mágica. Naquela época havia uma atriz espanhola que se chamava Lola Membrives, muito famosa na Argentina. Bom, eu me vejo doente – aos sete anos provavelmente – escrevendo com o dedo no ar Lo-la-Mem-bri-ves, Lo-la-Mem-bri-ves. A palavra ficava desenhada no ar e eu me sentia profundamente identificado com ela. De Lola Membrives, a pessoa, eu não sabia muita coisa, nunca a tinha visto. Na realidade, eram meus pais que iam ver as peças onde ela trabalhava. E foi nesse mesmo momento que comecei a brincar com as palavras, a desvinculá-las cada vez mais de sua utilidade pragmática e comecei a descobrir os palíndromos, que depois apareceram nos meus livros… Desde muito pequeno, minha relação com as palavras, com a escrita, não se diferencia da minha relação com o mundo em geral. Eu não acho que nasci para aceitar as coisas tal como estão, tal como me são oferecidas”.