Posts from janeiro, 2012

Truffaut e Doinel

 

 

 

            Alguns dias de férias (tão poucos!) proporcionam isso.

            Pouco mais de 11 horas da manhã, deparo num canal a cabo com o início de Domicílio Conjugal (1970) de Truffaut, e posso me refestelar na poltrona para continuar a assisti-lo até o final.

            Domicílio Conjugal é o quarto filme da trajetória de Antoine Doinel, tido como alter ego de Truffaut.

            Os filmes anteriores traçam a adolescência traumática (Os Incompreendidos, 1959, vencedor do prêmio de direção em Cannes), os primeiros amores (Amor aos 20 Anos, em que se acha inserido o curta Antoine e Colette, 1962) e o despontar da vida adulta com suas desilusões (Beijos Proibidos, 1968) de Doinel, sempre interpretado por Jean-Pierre Leáud na mesma faixa etária do personagem (e que me parece muito mais expressivo quando jovem, nos dois primeiros filmes, tornando-se um tanto caricato depois).

            Consta ter sido Henri Langlois, o célebre fundador da Cinemateca Francesa, quem estimulou a sequência ao comentar com Truffaut após uma sessão de Beijos Proibidos, que termina com Doinel fazendo juras de amor a Christine (Claude Jade), a curiosidade em vê-los casados e constituindo família.

            Truffaut entendeu, porém, que Doinel não poderia seguir um padrão acomodado às regras sociais, e em Domicílio Conjugal o representou como um tipo empenhado em se ajustar, mas ainda à margem, como refletem seus trabalhos incomuns de tingir flores e controlar o tráfego de navios em miniatura numa maquete.

            Nessa tentativa de se adaptar à vida burguesa, e depois do nascimento do filho Alphonse, Doinel sucumbe à sedução de uma jovem japonesa (Hiroko Berghauer) e põe a perder o casamento, que depois tenta desesperadamente recuperar. Enquanto isso, frequenta bordéis e se comporta como se fosse solteiro, a demonstrar sua insegurança e imaturidade.

            Tudo isso, contudo, transcorre numa atmosfera leve e poética, que explora o aspecto de crônica do cotidiano, entremeada de memórias afetivas e observações sobre a vida, tão características de Truffaut.

            Além de Doinel, outros personagens são inspirados em lembranças do diretor, que quando criança observava fascinado em sua rua um tingidor de flores. Uma tia de Truffaut, assim como Christine, ensinava violino, e até mesmo o homem misterioso conhecido como O Estrangulador — que depois se revela humorista na TV — foi inspirado no amigo de infância e comediante Claude Vega.

            Apesar de todos os filmes protagonizados por Antoine Doinel terem sido feitos a intervalos regulares, a série nunca foi concebida como tal por Truffaut, que sempre pensava não mais voltar ao personagem.

            Mais do que qualquer outro, Domicílio Conjugal deveria ser o último, entretanto Truffaut ainda faria O Amor em Fuga (1979), este sim a conclusão da vida cinematográfica de Doinel (Truffaut morreria em 1984, ano profético da obra de George Orwell).

            Numa das muitas cenas deliciosas de Domicílio Conjugal, Doinel comenta com um vizinho sobre a dificuldade de encontrar um bom título para o livro que está escrevendo, travando-se o seguinte diálogo:

J’aimerais trouver un titre à mon livre.

— Il y a des tambours dans votre livre? 

— Non.

— Des trompettes?

  Non.

— Alors appelez-le “Sans tambour ni trompette” (que, por sinal, é um ótimo título).

            Em O Amor em Fuga, Doinel afinal lançaria — e com sucesso — o seu projetado romance autobiográfico, com o duvidoso título de Les salades de l’amour.

 

 

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Estrada branca

 

 

  

            “Estrada Branca” é o exemplo acabado do encontro de dois talentos na sua plenitude e exata completude.

            A fina melodia de Tom Jobim é uma ária à altura de qualquer um dos maiores compositores clássicos, e a letra de Vinicius de Moraes, na sua aparente simplicidade, é um poema de grande sofisticação e absoluto domínio técnico (rimas internas, aliterações, jogo de palavras), em perfeita harmonia com a melodia de Tom.

            A interpretação de Chico Buarque (que muitos desconsideram como cantor) nada deve a de mestres como Frank Sinatra, Caetano Veloso, Gal Costa, e até mesmo a divina Elizeth Cardoso, entre outros, que gravaram a canção.

  

 

                                    Estrada branca, lua branca, noite alta, tua falta,

                                    caminhando, caminhando, caminhando, ao lado meu.

                                    Uma saudade, uma vontade tão doída,

                                    de uma vida, vida que morreu.

                                    Estrada, passarada, noite clara,

                                    meu caminho é tão sozinho, tão sozinho, a percorrer,

                                    que mesmo andando para a frente,

                                    olhando a lua tristemente

                                    quanto mais ando, mais estou perto de você.

                                    Se em vez de noite fosse dia,

                                    e o sol brilhasse e a poesia

                                    em vez de triste fosse alegre de partir.

                                   Se em vez de eu ver só minha sombra nessa estrada

                                   eu visse ao longo dessa estrada, uma outra sombra a me seguir.

                                   Mas a verdade é que a cidade ficou longe, ficou longe

                                   na cidade, se deixou meu bem-querer,

                                   eu vou sozinho sem carinho,

                                   vou caminhando meu caminho,

                                   vou caminhando com vontade de morrer.

 

 

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Se não me agacho…

 

 

 

 

 

“Rio de Janeiro — Os prédios do quarteirão compreendido entre as Avenidas 13 de Maio e Almirante Barroso, a Rua Senador Dantas e a Travessa dos Poetas de Calçada, no centro do Rio, foram interditados na manhã de hoje (26) pela Defesa Civil. Todas as pessoas que estavam nesses edifícios estão sendo retiradas. O quarteirão fica em frente ao prédio que desabou na noite de ontem (25).” (Fonte: Agência Brasil, repórter Vitor Abdala)

 

 

            Há exatamente um ano caminhava pelo quarteirão onde ocorreu agora o desabamento dos três prédios no Rio de Janeiro, para conferir a Travessa dos Poetas de Calçada, que havia descoberto numa viagem curta, pouco antes.

            Escrevi, então, uma pequena crônica, que poderá ser lida ou relida clicando aqui.

            Se não me agacho…

 

 

 

Parece janeiro

 

 

 

                        (Publicado no Blog da Selma Barcellos)

 

 

 

            Caminhava pela praia quando tropeçou nos olhos dela.

            Aqueles olhos eram inconfundíveis.

            Quase da cor do mar (quase, porque nenhum mar transborda tantos verdes e azuis).

            O olhar, que era quase um sol (quase, porque sol algum tem aquele fervor), estava agora mais sereno, quase um luar (quase, porque lua nenhuma reluz assim).

            Era ela!

            Era ela?

            Os cabelos louros estavam mais curtos, os seios, mais fartos, o mesmo nariz e a mesma boca incomuns em surpreendente harmonia.

            Era ela!

            O corpo ainda esguio na sua insinuante madureza.

            Os olhos pousaram nele brevemente, mas o olhar se desviou pouco depois, como o luar que uma nuvem encobre.

            Era ela?

            Era ele?

            A cidade e a praia já não eram as mesmas.

            Aquele janeiro não era o mesmo janeiro.

            Eles mesmos não eram os mesmos.

            Mesmo?

 

 

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Paraíso borgeano

 

 

 

 

«Siempre imaginé que el Paraíso sería algún tipo de biblioteca.»

Jorge Luis Borges

 

 

 

 

 

Como se Desenha uma Casa

 

 

 

 

«Porque a literatura é uma arte escura de ladrões que roubam a ladrões.»

 

 

                                                           Os livros

 

                                                                                                          Manuel António Pina

 

                                               É então isto um livro,

                                               este, como dizer?, murmúrio,

                                               este rosto virado para dentro de

                                               alguma coisa escura que ainda existe

                                               que, se uma mão subitamente

                                               inocente a toca,

                                               se abre desamparadamente

                                               como uma boca

                                               falando com a nossa voz?

                                               É isto um livro,

                                               esta espécie de coração (o nosso coração)

                                               dizendo “eu” entre nós e nós?

 

 

                                                           O quarto

 

 

                                               Quem te pôs a mão no ombro,

                                               a faca que te atravessou o coração,

                                               são feridas alheias, talvez algo que leste;

                                                entretanto partiste

 

                                                para lugares menos iluminados

                                                e corações menos vulneráveis,

                                                pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui

                                                se já cá não estás.

 

                                                A hora havia de chegar em que

                                                nos perderíamos um do outro.

                                                E acabaríamos necessariamente assim,

                                                mortos inventariando mortos.

 

                                                Morrer, porém, não é fácil,

                                                ficam sombras nem sequer as nossas,

                                                e a nossa voz fala-nos

                                                numa língua estrangeira.

 

                                                Apaga a luz e vira-te para o outro lado

                                                e acorda amanhã como novo,

                                                barba impecavelmente feita,

                                                o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

 

(in “Como se Desenha uma Casa”, Assírio & Alvim, 2011)

 

 

            Poeta, autor de livros infantis, tradutor e jornalista, Manuel António Pina nasceu em Sabugal (Portugal), no ano de 1943, e vive hoje na cidade do Porto. Somente em 2003, após já haver publicado dezenas de livros, aventurou-se na ficção para adultos, com “Os papéis de K.”.

            Em 2011, por escolha unânime dos jurados, recebeu o “Prêmio Camões”, maior premiação literária de língua portuguesa (cujo ganhador em 2010 foi Ferreira Gullar). Ainda em 2011, a Associação Portuguesa de Escritores conferiu-lhe o “Grande Prêmio de Poesia”, pela publicação de “Os Livros”, também editado pela Assírio & Alvim, e esgotado!

 

 

 

 

 

Machado de Assis e o Big Brother

 

 

 

 

 

 

            Escrevi este textinho em 2009.

            Parece que continua atual.

 

 

 

            Reler livros que amamos, mais do que um exercício de prazer, é uma nova e apaixonante aventura.

            Coisas que passaram despercebidas antes aguardam pacientemente durante anos para então nos assaltar num canto de página, não para nos arrebatar a bolsa e a vida, mas para sortir um pouco mais nossa bolsa e nossa vida.

            Coisas que de outra feita tinham despertado nossa atenção desaparecem ou ganham nova forma, novo matiz, com astúcias de prestidigitador.

            Tem toda a razão Alberto Manguel ao dizer que um livro se remodela a cada leitura, e que a famosa frase de Heráclito sobre o tempo aplica-se igualmente à leitura: “Nunca mergulhamos no mesmo livro duas vezes”.

            Pois não é que num canto de página do Memorial de Aires (livro subestimado por muitos, que o consideram apenas uma obra crepuscular, de adeus, com enredo pobre, sem atentar para as sutilezas do mestre, que alcançam o seu grau máximo), deparo com uma observação do Conselheiro que antecipa o furor voyeurista do Big Brother de Orwell e das patranhadas escabrosas da Vênus Platinada: “Tempo há de vir em que a fotografia entrará nos quartos dos moribundos para lhes fixar os últimos instantes; e se ocorrer maior intimidade, entrará também.”

            Não nos esqueçamos de que Memorial de Aires foi publicado em 1908, quando a fotografia era por excelência o instrumento de registro e difusão de imagem.

            As primeiras transmissões experimentais de televisão só ocorreriam na década de 1920.

            1984, de Orwell, foi publicado em 1949.

            O velho e bom Machado era mesmo um bruxo.

 

 

 

Capitão ao mar

 

 

 

 

 

 

            Dizia Oscar Wilde que só as pessoas superficiais não julgam pelas aparências.

            Se assim for, a fotografia do intrépido capitão do Costa Concordia, Francesco Schettino, não deixa dúvida da sua vigarice: a bela estampa, o olhar tristonho, o cabelo longo e engomado, as costelas e o bigodinho afilado de galã do passado ou cantor de tango são o arquétipo do vigarista, digno de um personagem de Fellini.

            Posso vê-lo antes do acidente, a desfilar pelo navio com o uniforme impecável e seus galões dourados, jantando com os passageiros, dançando com senhoras e moçoilas encantadas.

            Quando a embarcação fez água e o naufrágio era iminente, tratou de se safar, “Mateus, primeiro os teus”.

            Segundo noticiado, a gravação da conversa que ele manteve com a Capitania de Livorno demonstraria que omitiu a colisão durante mais de uma hora, não tinha a menor ideia de quantas pessoas estavam sob risco e foi um dos primeiros a abandonar o navio. “Volte a bordo, capitão” teria lhe ordenado o comandante da Capitania, mas o bravíssimo Schettino se esquivou: “Não posso voltar, está escuro lá dentro”.

            É claro que como bom italiano o comandante da Capitania lhe falou com toda a delicadeza: “Vada a bordo, cazzo” já virou frase da moda que estampa camisetas na Itália, envergadas por aqueles que adoram manter as aparências.

            Seria cômico, se não fosse trágico.

 

 

 

 

Matinês

 

 

 

Big Duke

 

        

                                    Depois de tantos anos

                                    ele chegou de madrugada como um peregrino

                                    e subiu a escada até a porta

                                                                      com o ar fatigado da Grande Jornada noite adentro.

                                    Tirou o chapéu e bateu a poeira das botas

                                    de sete léguas de aventuras.

 

  

                                    O Último Pistoleiro cruzou o velho oeste

                                    No Tempo das Diligências, seguindo Rastros de Ódio.

                                    Com Bravura Indômita defendeu O Álamo

                                    e foi O Homem que Matou o Facínora,

                                    levando a lei e a ordem onde começava o inferno

                                    em Rio Bravo e El Dorado.

                                    Com seu Espírito Indomável

                                    lutou a grande guerra na Legião Invencível

                                    e nas areias de Iow Jima chegou ao Portal da Glória,

                                    com aqueles que foram os sacrificados

                                    no Mais Longo dos Dias.

                                    Depois do Vendaval, pouco tempo lhe sobrava para o amor,

                                    Quando Um Homem é um Homem há de ser

                                    um  Justiceiro Implacável, Detetive Acima da Lei,

                                    enquanto A Morte Segue os Seus Passos

                                    até o confronto final num duelo ao pôr do sol.

 

 

                                    De noite quando me batem à porta

                                    nunca sei se é gente viva ou morta

                                    (mas isso pouco me importa).

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=Mi_Eahem79M&feature=related]

 

 

 

 

No tempo da delicadeza…

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=kfBLC3WMvhg&feature=related]

 

  Há jeito melhor de terminar a semana, e começar (finalmente) minhas férias?