«Porque a literatura é uma arte escura de ladrões que roubam a ladrões.»
Os livros
Manuel António Pina
É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo “eu” entre nós e nós?
O quarto
Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste
para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.
A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.
Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.
Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.
(in “Como se Desenha uma Casa”, Assírio & Alvim, 2011)
Poeta, autor de livros infantis, tradutor e jornalista, Manuel António Pina nasceu em Sabugal (Portugal), no ano de 1943, e vive hoje na cidade do Porto. Somente em 2003, após já haver publicado dezenas de livros, aventurou-se na ficção para adultos, com “Os papéis de K.”.
Em 2011, por escolha unânime dos jurados, recebeu o “Prêmio Camões”, maior premiação literária de língua portuguesa (cujo ganhador em 2010 foi Ferreira Gullar). Ainda em 2011, a Associação Portuguesa de Escritores conferiu-lhe o “Grande Prêmio de Poesia”, pela publicação de “Os Livros”, também editado pela Assírio & Alvim, e esgotado!