Alguns dias de férias (tão poucos!) proporcionam isso.
Pouco mais de 11 horas da manhã, deparo num canal a cabo com o início de Domicílio Conjugal (1970) de Truffaut, e posso me refestelar na poltrona para continuar a assisti-lo até o final.
Domicílio Conjugal é o quarto filme da trajetória de Antoine Doinel, tido como alter ego de Truffaut.
Os filmes anteriores traçam a adolescência traumática (Os Incompreendidos, 1959, vencedor do prêmio de direção em Cannes), os primeiros amores (Amor aos 20 Anos, em que se acha inserido o curta Antoine e Colette, 1962) e o despontar da vida adulta com suas desilusões (Beijos Proibidos, 1968) de Doinel, sempre interpretado por Jean-Pierre Leáud na mesma faixa etária do personagem (e que me parece muito mais expressivo quando jovem, nos dois primeiros filmes, tornando-se um tanto caricato depois).
Consta ter sido Henri Langlois, o célebre fundador da Cinemateca Francesa, quem estimulou a sequência ao comentar com Truffaut após uma sessão de Beijos Proibidos, que termina com Doinel fazendo juras de amor a Christine (Claude Jade), a curiosidade em vê-los casados e constituindo família.
Truffaut entendeu, porém, que Doinel não poderia seguir um padrão acomodado às regras sociais, e em Domicílio Conjugal o representou como um tipo empenhado em se ajustar, mas ainda à margem, como refletem seus trabalhos incomuns de tingir flores e controlar o tráfego de navios em miniatura numa maquete.
Nessa tentativa de se adaptar à vida burguesa, e depois do nascimento do filho Alphonse, Doinel sucumbe à sedução de uma jovem japonesa (Hiroko Berghauer) e põe a perder o casamento, que depois tenta desesperadamente recuperar. Enquanto isso, frequenta bordéis e se comporta como se fosse solteiro, a demonstrar sua insegurança e imaturidade.
Tudo isso, contudo, transcorre numa atmosfera leve e poética, que explora o aspecto de crônica do cotidiano, entremeada de memórias afetivas e observações sobre a vida, tão características de Truffaut.
Além de Doinel, outros personagens são inspirados em lembranças do diretor, que quando criança observava fascinado em sua rua um tingidor de flores. Uma tia de Truffaut, assim como Christine, ensinava violino, e até mesmo o homem misterioso conhecido como O Estrangulador — que depois se revela humorista na TV — foi inspirado no amigo de infância e comediante Claude Vega.
Apesar de todos os filmes protagonizados por Antoine Doinel terem sido feitos a intervalos regulares, a série nunca foi concebida como tal por Truffaut, que sempre pensava não mais voltar ao personagem.
Mais do que qualquer outro, Domicílio Conjugal deveria ser o último, entretanto Truffaut ainda faria O Amor em Fuga (1979), este sim a conclusão da vida cinematográfica de Doinel (Truffaut morreria em 1984, ano profético da obra de George Orwell).
Numa das muitas cenas deliciosas de Domicílio Conjugal, Doinel comenta com um vizinho sobre a dificuldade de encontrar um bom título para o livro que está escrevendo, travando-se o seguinte diálogo:
— J’aimerais trouver un titre à mon livre.
— Il y a des tambours dans votre livre?
— Non.
— Des trompettes?
Non.
— Alors appelez-le “Sans tambour ni trompette” (que, por sinal, é um ótimo título).
Em O Amor em Fuga, Doinel afinal lançaria — e com sucesso — o seu projetado romance autobiográfico, com o duvidoso título de Les salades de l’amour.
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