Posts from setembro, 2012

O colecionador

 

 

 

          Para ficar mais próximo do Rio de Janeiro, do seu dia a dia e dos amigos que tenho por lá, tornei-me assinante da versão digital do jornal “O Globo”.

          O relacionamento do leitor com um jornal não difere muito dos relacionamentos da vida. Existem aqueles com quem simpatizamos e aqueles que nos aborrecem ou nos são indiferentes; pessoas com que nos identificamos de imediato e das quais nos sentimos próximos como se convivêssemos desde sempre.

          Assim também com os cronistas e colunistas permanentes dos jornais. Alguns, esperamos ansiosos o dia do encontro marcado; outros, viramos logo a página, como dobramos a primeira esquina para não cruzar com aquele chato de galochas.

          Nessas semanas de leitura de “O Globo” só tem aumentado meu encantamento com as crônicas de Joaquim Ferreira dos Santos, com seu jeito de “Gente Boa”, seu estilo simples e gostoso, sua sensibilidade na apreensão das coisas e dos fatos.

          Outro dia ele escreveu sobre o que seria um novo subgênero literário, como a nossa jabuticaba, a “crônica do vovô”, cujos autores “[…] passeiam ao redor de suas netas usando a mesma estupefação com que já observaram o Rio de Janeiro — a “crônica de exaltação da cidade” é outro subgênero — ou refizeram suas memórias de infância, uma ramificação em que todos também acabam mexendo. Do outro lado da página do jornal, o leitor reconhece, no texto do vovô babando as netas, o movimento universal do tempo que passa, das vidas que se renovam e da esperança do novo. A crônica faz a aposta lírica, nas entrelinhas, de que vem aí um mundo melhor.”

          Selminha, com seu inesgotável carinho, além de me avisar para ler a crônica do vovô Joaquim, logo me incluiu na categoria, capitaneada por Ricardo Noblat, Luis Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura, vejam só!

          Segunda-feira passada, Joaquim Ferreira dos Santos escreveu deliciosamente sobre uma mania que também tenho, a de anotar frases que ouço, vejo ou leio por aí.

          Sou, porém, mais dispersivo do que ele. Não mantenho um caderno (o que talvez passe a fazer), vou anotando em papeluchos que geralmente se perdem nas páginas de livros, em gavetas e pastas esquecidas. O que não é de todo mau, pois ao reencontrá-las de repente as frases me despertam o mesmo prazer que me levou a anotá-las.

 

 

O COLECIONADOR

 

Acho que já disse outrora, alhures, quiçá aqui. Quero enfatizar. Anoto frases. Ouço na rua, vejo num muro, leio num livro. Anoto. Um dia, perguntado de onde vinha tanta inspiração, Cole Porter respondeu: “Do telefonema do produtor”. Anoto frases como essas num caderno, frases não necessariamente inspiradoras, mas que por algum motivo me provocam um esgar no cerebelo e, um dia, se o telefone do produtor tocar, poderão ajudar no milagre de já encontrar fumegando o caldeirão das ideias. Não discuto com elas. Boto para dentro e esqueço. Quem sou eu para entender o que me vai nas internas.

Vou anotando, que é um modo como outro qualquer de salgar a carne para o banquete futuro. Pode ser Muhammad Ali ensinando a boxear (“Flutua como borboleta, ferroa como abelha”) ou Fabrício Carpinejar ensinando a se tocar a vida (“O bom humor é a cirurgia plástica de baixo custo”). Tudo sem hierarquia, um açougue de chã de dentro, gordura e letras. Anotei “Se o mundo fosse bom, o dono moraria nele”, de um parachoque de caminhão. Anotei também o artilheiro Dario Maravilha explicando aos repórteres, espantados com a boa direção de suas caneladas, que “não existe gol feio, feio é não fazer gols”.

De que isso me servirá, não lo sei. Pode ser o desabafo do Otto Lara, cansado da ignorância urbana dos jovens (“Não quero mais conhecer ninguém que não saiba o que é goiaba”) ou o jingle “Peço licença pra mandar Detefon em meu lugar”. Gostei, quero preservar aquele prazer. “Cada minuto é um milagre que não se repete”, dizia o locutor da Rádio Relógio — e eu já teria esquecido tamanha delícia se meus garranchos não a tivessem preservado.

Eis o meu hobby. Anoto frases, que é uma forma de expressar meu carinho para com elas. Cubro-as em seguida com um cobertor das lojas Pernambucanas e ponho para dormir com as minhas. Torço em silêncio para que elas se locupletem todas ou que pelo menos se restaure a moralidade do verbo, como dizia, e está anotado, o Stanislaw Ponte Preta. De mais não sei, de mais não encuco e nem me preocupo com o que delas vai resultar. “Depois de um século de atividade, a psicanálise chegou a uma conclusão científica: gafanhoto não tem grilo”, disse o Millôr.

As minhas frases dormem com as estranhas que eu trago da rua e rezo para que se reproduzam. Temos sido felizes em nossa cornucópia semântica. O que nasce daí, um tiroteio interminável de frases iluminando a noite das ideias, vai empacotado em papel de seda azul para o produtor. Em seguida, às vezes no formato de livro, outras mais em jornal, ele distribui o palavrório pelas boas casas do ramo. Vivo disso.

Na semana passada, o jornalista Marcel Souto Maior e a revista “Veja” lançaram livros com coleções de frases ditas por outros. Respirei aliviado. Eu não estava sozinho no culto da obsessão. Um dia, quem sabe, eu transfiro todas do caderno humilde em que dormitam as minhas para o luxo protetor da capa dura. São moças simples. Nenhuma delas foi tirada de um evento épico (“Amanhã não vai ser possível, porque encomendei um franguinho assado”, de Moreira da Silva, desmarcando uma entrevista), mas me são todas queridas e lhes quero o melhor. Haveria um capítulo com as do “Poderoso chefão”:

“Fique perto dos amigos, e muito mais dos inimigos”, “Nunca diga para alguém de fora da família o que está fazendo”, ou “Dom Corleone nunca pede um segundo favor quando lhe recusam o primeiro”. Haveria um outro capítulo com mandamentos de machões:

“Fale com calma, fale devagar e não diga muita coisa” (John Wayne), “Sexo é uma das nove razões para a reencarnação, as outras oito não têm importância” (Henry Miller) e “Perdoar, sim, esquecer, nunca” (John Kennedy).

Eu anoto essas frases com o fito de mantê-las sempre por perto, e brincar com a cara delas. Leio “Quem bebe Sukita não engole qualquer coisa”, e é impossível não rir. “Sapo não pula por boniteza, pula por percisão”, dizia Guimarães Rosa, e já são duas risadas.

Frank Sinatra escreveu, na parede do salão onde guardava seus trenzinhos, que “Quem morre com o maior número de brinquedos, ganha”. Tinha sido garoto pobre, queria uma quantidade enorme de trenzinhos. Eu acho que ganha quem morre com a maior diversidade. Tenho outros brinquedos, quase todos inconfessáveis diante de grandes plateias. Garimpar frases e cultuá-las no altar de um caderno é apenas um deles, e os livros lançados sobre o assunto me autorizam a dizer alto que eu também sou do clube. Elas não servem de autoajuda, nem para encaixar num discurso de formatura. São moças da venerável estirpe das que não se dão ao respeito. “Não há nada mais gostoso do que um ‘mim’ sujeito de verbo no infinitivo”, dizia Manuel Bandeira — e em seguida suspirava a delícia de um “para mim brincar”.

Era o que eu queria dizer. Anoto frases porque o joelho não me deixa mais subir no skate. É para mim brincar.

 

Joaquim Ferreira dos Santos

O GLOBO

3/9/2012