Diogo Mainardi chorou.
Ali onde ele chorou, qualquer um chorava:
“82
Passei o dia na UTI.
Acariciei o rosto de Tito, Ele permaneceu morto. Acariciei o peito de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei a perna de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei as costas de Tito. No momento em que acariciei suas costas, deu-se o inesperado. Subitamente, ele contorceu o corpo e arqueou a coluna.
Tito ressuscitou.
Chorei por meia hora. Depois de ter chorado por meia hora, chorei por uma hora. Depois de ter chorado por uma hora, chorei por duas horas.”
Mas Diogo Mainardi não quer comiseração nem simpatia por ele e pelo filho Tito, que sofreu paralisia cerebral em consequência de barbeiragens absurdas praticadas durante o parto, no hospital de Veneza.
Mainardi não faz concessão alguma ao bom-mocismo:
“3
[…]
Quando chegamos ao Campo Santi Giovanni e Paolo, à altura da estátua de Bartolomeo Colleoni, Anna disse:
— Estou com medo do parto.
Ela já manifestara o mesmo temor nas semanas anteriores, porque o hospital de Veneza, que agora se erguia à nossa frente, era conhecido por erros médicos.
Contemplei sua fachada por um instante.
O hospital de Veneza instalara-se no prédio da Scuola Grande di San Marco em 1808. A fachada arquitetada por Pietro Lombardo, em 1489, tornara-se sua porta de entrada.
Respondi:
— Com esta fachada, aceito até um filho deforme.”
Castigo divino?
Diogo Mainardi não acredita em Deus (tampouco eu consigo acreditar num deus que agisse assim):
“143
Eu soubera que minha mulher estava grávida exatamente um ano antes.
Tratei do assunto em 23 de fevereiro de 2000, em minha coluna na revista Veja.
Comecei dizendo que, até aquele momento, a recusa da paternidade fora uma das raras certezas que eu jamais questionaria em minha vida. Em seguida, comentei que meu desejo — reproduzo palavra por palavra — era ter um “filho tartaruga: toda vez que ele se agitasse demais, bastaria revirá-lo de barriga para cima, e ele permaneceria parado, silencioso, sacudindo os bracinhos”.
Eu tive meu filho tartaruga.
“134
Eu nunca cultuei Deus. Eu nunca cultuei o Homem. Passei a cultuar Tito. Passei a cultuar a vida doméstica. Meu evangelho é uma conta de luz. Meu templo é uma quitanda.
Tito é o Todo. Um tomate é o Todo.”
Dizia Fernando Pessoa que “A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta”, ideia essa retomada por Ferreira Gullar ao dizer que “A arte existe porque a vida não basta”.
Antes de Tito, a vida não bastava para Diogo Mainardi, e ele a vivia por meio da arte e da literatura:
“138
[…]Quando Tito nasceu, eu estava escrevendo meu quinto romance.
Era assim que eu vislumbrava meu futuro: sempre em Veneza, pulando de romance em romance.
O nascimento de Tito mudou tudo.”
“331
Para Marcel Proust, a “vida verdadeira, a única vida plenamente vivida, era a literatura”. Para mim, a vida verdadeira, plenamente vivida, passou a ser Tito.
Depois de seu nascimento, repudiei minha literatura e fui ganhar dinheiro.”
Diogo Mainardi já não precisa se preocupar em ganhar dinheiro para cuidar do filho.
Tito está rico. Recebeu uma indenização milionária:
“350
Depois de sete anos, o processo contra dottoressa F e o hospital de Veneza finalmente chegara ao fim.
Tito ganhara 3.162.761 euros.
No caminho de volta da Fondamenta delle Zattere, Tito e eu passamos pela Calle Querini, onde morou Ezra Pound.
O meu parasita deixara de ser um parasita.”
Por que, então, o livro sobre Tito?
De novo a vida, a literatura e Proust:
“309
No último volume de Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust pisa em falso e quase cai no pátio do castelo de Guermantes.
O incidente recorda-lhe suas caminhas pelas lajotas desiguais de Veneza.
Subitamente, os eventos de seu passado encaixam-se como um mosaico, e ele é tomado por um sentimento de felicidade.
Ele compreende que as memórias de suas caminhadas por Veneza — com as imagens e as analogias que elas evocavam — podiam dar sentido à sua vida.”
“310
Naquele instante, Marcel Proust pensa em escrever um livro sobre seu passado, porque para interpretar os sentimentos era necessário, antes de tudo, transforma-los em ideias, “convertendo-os em seu equivalente intelectual”.
O livro que ele pensa em escrever é o próprio Em Busca do Tempo Perdido.”
“311
Em nossas caminhadas por Veneza, Tito sempre pisava em falso.
Quando isso ocorria, eu era tomado por um sentimento de felicidade. Impedir uma queda de Tito em Veneza dava um sentido à minha vida.”
“312
O livro que converte meus sentimentos em seu equivalente intelectual é este aqui.”
O livro é todo assim, circular como a vida e a história, com as imagens, analogias e referências da vida de Mainardi e Tito evocadas em itens curtos, cada um representando os 424 passos que Tito conseguiu dar sem cair, contados um a um pelo pai, que sempre recomeçava a contar após uma queda.
Diogo vive para evitar as quedas de Tito.
Ele é “O apanhador no campo de centeio” de Tito.
“24
[…]Assim como a Scuola Grande di San Marco, a espasticidade de Tito remete-o ao passado, paralisando seu amadurecimento motor. Eu me encanto com cada detalhe bizantino da sua motricidade.
Assim como a Scuola Grande di San Marco, Tito tenta resistir à queda. Ele sempre cai. Ele sempre cai gargalhando.”
Diogo Mainardi chorou.
Ali onde ele chorou, qualquer um chorava.
Dar a volta por cima, quero ver quem dava.
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