A origem do mundo

 

 

 

 

 Autorretrato de Courbet

 

 

          Selma Barcellos, com a sensibilidade e graça que lhe são características, suscitou no seu delicioso Bloghetto o quiproquó (sem trema não é a mesma coisa…) entre a Academia Brasileira de Letras e o historiador Jorge Coli que acusa a ABL “[…] de haver censurado sua conferência “Sexo não é mais o que era” para os que a acompanhavam ao vivo pelo site da casa. Motivo do corte? O alerta do conferencista de que seriam exibidas imagens pornográficas (fotos de felação em detalhes e por diversos ângulos, o quadro “A Origem do Mundo”, de Courbet, com genitália feminina em close avassalador…). A ABL se defende da acusação com base na lei que proíbe sites abertos de exibirem material pornográfico e a presidente Ana Maria Machado já convocou os ilustres colegas, o bolo de rolo e o chá para reunião urgente.”

          Selminha tem toda razão, a nudeza feminina do quadro de Courbet é avassaladora. Ninguém fica indiferente diante dela.

          Conhecia a pintura por fotos, que por melhores que possam ser nem de longe conseguem reproduzir o seu realismo extasiante (ou chocante). Fiquei definitivamente fascinado pelo quadro desde que o vi de perto no Musée d’Orsay. Como o menino Bandeira na sua velha Recife, diante de uma moça nuinha no banho, fiquei parado o coração batendo. Foi um alumbramento!

          Courbet, arrogante e desafiador, dizia que a sua pintura era contra a falsidade vigente na Arte e na sociedade oitocentista, enfurecendo os críticos da época que o acusaram de cultivar a fealdade, de se arvorar de paladino da causa do povo contra a Arte e de ser um revolucionário sem ideal.

          Consta que a obra, datada 1866, foi encomendada por um diplomata turco, colecionador de arte erótica, e mais tarde vendida para um antiquário, camuflada debaixo de outra tela de aspecto mais inocente. Passou de mão em mão até chegar a seu último dono, nada menos do que Jacques Lacan. Após a sua morte, a família doou o quadro ao Musée d’Orsay, onde passou a ser exposto somente a partir de 1995, deixando de representar então o paradoxo, quase lacaniano, de uma obra famosa, mas pouco vista.

          Creio também que a conferência de Jorge Coli possa ser muito interessante e gostaria de assisti-la.

          Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

          A transmissão ao vivo pela internet da palestra, ilustrada com as imagens tidas como pornográficas ou obscenas, sem controle algum daqueles que acessam o site da ABL, parece-me uma demasia, e até mesmo uma afronta às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente.

          Alegar “censura” e “conservadorismo”, como o fizeram Jorge Coli e alguns outros, é uma falácia típica de quem, julgando-se iluminado e sapiente, pretende impor o seu senso estético e os seus valores à sociedade toda, sem respeitar as diferenças, as empatias, os contrários e até mesmo aqueles que ainda não têm maturidade e discernimento suficientes, o que se assemelha muito ao modo de pensar e agir dos fundamentalistas religiosos.

          A ABL errou no primeiro momento ao negar que houvesse tirado do ar a conferência. Deveria ter assumido desde logo a sua conduta acertada, o que só fez mais tarde.

          Logo depois de ver o quadro de Courbet, cheguei a perpetrar um poema sobre ele, que não lhe faz jus, mas expressa o que senti diante dele.

 

 

                              A origem do mundo

 

 

                                                                             Diante do quadro de Courbet

 

 

                    Súbito, tudo o que antes fora oculto,

                    obscuro, fechado, abotoado,

                    revela-se escancarado e descarado

                    como um hirsuto e bendito fruto

                    que se abre em dobras para o interior carnudo

                    numa explosão de cheiros e sabores

                    pressentidos mais do que sabidos.

 

                    Monte venusto, ígneo e absurdo,

                    cuja lava nos leva para o fundo

                    onde, misto de temor e deslumbre,

                    se encerra o começo e o fim de tudo.

 

 

 

Quem quiser ter uma pálida impressão do quadro, clique aqui

 

 

 

5 comentários

  1. André
    19/09/12 at 18:20

    Tom Gama como sempre escreveu um poema inspiradíssimo… a Selma realmente tem muito bom gosto e inteligência, também todos os dias entro no Bloghetto – excelente, por sinal – pra ver se tem alguma novidade.
    Vi a pintura que vc postou e gostei muito – aliás, a pintura em telas de quadro é outro tema que me atrai muito a curiosidade. Quem me dera ter dom pra fazer isso.
    Abraços,
    André

  2. Carol
    19/09/12 at 20:16

    Eu confesso q nao conhecia o quadro e ao vê-lo em Paris fiquei estupefata! E olha q entre Van Goghs e Monets.. Cheguei a voltar ao primeiro andar pra ver de novo..

  3. 19/09/12 at 21:37

    Antonio, seu poema – de final arrebatador – é infinitamente mais belo que o quadro. Faz-nos prescindir dele. Daí, possivelmente, a expressão de espanto de Courbet no autorretrato. _ Como assim?, terá exclamado.
    Entre a palavra e a pintura, minha paixão será sempre a palavra e seu poder encantatório.

    Obrigada pelo link e referências tão gentis.

    André, sensível e musical comentarista, gratíssima.

    Beijocas!

     

  4. Sophie
    22/09/12 at 23:19

     
    Antonio, eu gosto muito do autorretrato, mas, do outro quadro eu não gosto. Porque é feio! rs…se fosse um nariz eu também acharia feio! Porque pouco temos de bonito. Talvez os olhos, a boca…de resto, somos muito feios! rs…eu penso que o outro quadro não é algo para se olhar e dizer “oh, que belo”! A técnica, o talento inegável, a mensagem, a provocação, tudo isso é belo, mas, o “objeto” pintado é feio…rs…
     
     

  5. Antonio Carlos A. Gama
    23/09/12 at 13:27

    Selminha e Sophie, eu não considero realmente “A origem do mundo” “bela” no sentido clássico com que normalmente definimos o “belo”. 

    A “beleza” da pintura é de outra categoria: a audácia, o simbólico, a técnica, o desafio, até mesmo o incômodo ou a provocação, mas, sobretudo, as sensações despertadas em mim.  

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